Inês Cóias não sente a sua deficiência em casa. Só a sente quando vai a sítios em que não pode entrar. A meio da sua formação académica, há quase cinco anos, um incêndio queimou parte do seu corpo e levou à amputação de uma perna. Inês prefere andar de cadeira de rodas, apesar de ter a possibilidade de caminhar, "por causa do cansaço e porque é mais simpático". Nos teatros, "praticamente nunca há camarins acessíveis". Consegue "desenrascar-se, mas há pessoas com deficiência que não conseguem". Antes do incêndio, não imaginava que os teatros, que em termos de acessibilidade "estão sempre prontos para receber o público com deficiência, nunca pensam que um artista com deficiência pode ocupar aquele mesmo espaço". "Todos têm barreiras", resume a actriz ao PÚBLICO.
Sérgio Lopes, que faz stand-up como hobby, é afectado pela tetraplegia. Está sempre a ver se os sítios em Lisboa onde há comédia o podem receber, por isso faz missões prévias de reconhecimento. Há espaços em que não consegue entrar, caves, primeiros andares, outros em que é difícil subir ao palco e ainda aqueles em que actua no meio do público. Já teve convites para actuações em que não havia "conhecimento prático" das suas necessidades. "As pessoas até ficam com pena, não sabem ao certo o que é preciso." Na sua comédia, fala muito de si próprio, seja "como indivíduo com cadeira de rodas", seja "como pessoa comum que vai ao restaurante".
Inês e Sérgio são só dois exemplos de artistas com deficiência que sentem dificuldade no acesso às artes performativas. Há um espectro grande, e variado, de deficiências físicas e intelectuais que não se vêem representadas nos palcos ou nos ecrãs.
Joana Gomes é bailarina e cega. Trabalha na CiM – Companhia de Dança, da Voarte, há dez anos, o que lhe tem dado oportunidades na formação, à falta de licenciatura, como um curso intensivo de dança em Londres. É para ela um "lugar confortável". Tem trabalhado na produção, mas decidiu dedicar-se mais à arte. Confessa que por vezes se limita quando encontra audições que não explicitam se é para artistas com ou sem deficiência. "Fico sempre a pensar se é possível ou não."
Tornar a cidade acessível, e depois...
Mia Meneses, actriz com paralisia cerebral, sublinha que há "uma grande falha" em termos de oportunidades. Em audições para papéis de personagens com deficiência, ainda tem de se "pôr a hipótese de que" tal papel "vá ser feito por uma pessoa normativa". "Não há falta de pessoas, há falta de oportunidades", sublinha. Está agora a trabalhar num espectáculo de dança com a coreógrafa Dinis Machado, na Suécia.
Nunca, afiança, lhe foi "negada a formação". Mas tanto num curso profissional no secundário quanto no mestrado em teatro, era "sempre a única pessoa com deficiência". Até recentemente nunca se tinha cruzado com artistas com deficiência. Acha muito estranho: "A deficiência não brotou ontem da terra." Em 2023, assinalam-se os dez anos da Acesso Cultura, associação cultural que promove o "acesso à participação cultural" e está a mapear os profissionais da cultura com deficiência.
Mia afirma que, para "mudar qualquer coisa, é importante começar por tornar a própria cidade acessível". "É o primeiro passo para que as pessoas consigam chegar ao teatro, à televisão. Depois é abrir espaço para audições e criar lugar. Infelizmente, ainda temos de criar lugar para pessoas com deficiência poderem ter uma voz, estudar o que querem e trabalharem no que estudaram e querem."
Percebeu que era possível uma carreira quando conheceu Diana Niepce, bailarina e coreógrafa com tetraplegia que usa cadeira de rodas. Diana não se pode, isso ela reforça, "queixar de acesso". Ganhou um prémio Autores da SPA. O que faz é "criar acesso a outros". Comunica com salas e estruturas, tenta criar "possibilidades de pontes ou formações" e "dar a conhecer outros artistas com deficiência".
Está num lugar que a protege de "estruturas que não sabem como trabalhar" com pessoas com deficiência. "Posso dizer que as estruturas têm medo de mim, sou muito política." Já teve de se impor. "Não tenho prazer especial em discutir degraus ou casas de banho na minha vida", declara, mas às vezes é necessário: "Antes, chegava aos sítios e via umas escadas. Hoje partem-me a casa de banho para tomar banho." Isso, conta, tem o seu quê de "humorístico", "mas vê nisso um esforço e uma dedicação que não via antes". Mais uma vez: o medo. Ironiza: as pessoas já pensam "a Diana vem aqui, vamos partir tudo".
Sérgio Nogueira, que tem paralisia cerebral espástica, afirma que lhe contaram que há um camarim adaptado no Teatro São João, no Porto, porque ele insistiu muito: "A nossa voz está a ser ouvida." Mesmo na companhia de teatro amador do Teatro do Bolhão, onde tem feito a sua formação, há problemas de acesso. Esperou por uma resposta da Escola Superior de Teatro e Cinema, que acabou por lhe comunicar não haver condições para receber alunos como ele. Apesar de agora se estarem "a fazer esforços para ter um curso mais adaptado" (o PÚBLICO tentou contactar, sem sucesso, a ESTC). "Como é que conseguimos pedir ao mercado de trabalho que nos dê uma oportunidade se nas próprias escolas isso não existe?"
Henrique Amoedo, sem deficiência, é director artístico da Dançando com a Diferença, companhia que existe desde 2001. Fala de como é complicado "organizar uma digressão". Se houver várias pessoas "de cadeira de rodas, os hotéis só têm um quarto adaptado" e "é preciso dividir a equipa", revela. "Os teatros não têm a acessibilidade ideal, mas o teatro não vai saber até você chegar lá. A presença do artista é precisa". Intérpretes da sua companhia são protagonistas de Super Natural, filme de Jorge Jácome que ganhou um prémio da crítica em Berlim no ano passado e deverá chegar às salas em Junho.
A comunicação e os modelos
A Terra Amarela, do actor e encenador Marco Paiva, sem deficiência, que passou pelo grupo Crinabel Teatro foi fundada em 2018. Interessa, explica, "transformar o tecido cultural e artístico em lugares mais heterogéneos e plurais". Tem feito espectáculos como Aldebarã, com actores como Joana Honório e Tony Weaver. Joana tem uma deficiência intelectual. Em pequena via António Coutinho, que viria anos depois a ser seu colega, em Médico de Família. Isso ajudou-a a querer ser actriz. Decora textos, segundo a mãe, Paula Lima, a copiá-los. Ficam-lhe na cabeça as suas falas e as dos outros. Gosta de "pisar o palco". Em Aldebarã, era astronauta, a personagem mais diferente que já fez.
Tony Weaver, que contracenou com Joana nesse espectáculo, é surdo. Em novo, viu Filhos de um Deus Menor, que deu um Óscar à também surda Marlee Matlin. "Foi o meu modelo, percebi que também podia ser um actor." Fez um curso de representação em que era o único surdo e não havia intérprete. Mesmo que houvesse esforço para labializar, não conseguiu usufruir a 100%. Teve experiências em teatro em que era, mais uma vez, um surdo no meio de ouvintes. As coisas foram melhorando, até chegar a Zoo Story, todo em Língua Gestual Portuguesa, que ainda vai continuando a subir aos palcos.
Aí tinha como colega Marta Sales. A actriz teve experiências em que se sentia "tratada como uma pessoa 'deficiente'". Mas o trabalho com a Terra Amarela de Marco Paiva foi bem diferente. Havia, por exemplo, Barbara Pollastri, que serviu de intérprete na conversa dos dois actores com o PÚBLICO. Antes disso, "a grande barreira era a comunicação". Depois foram tratados "como iguais", como "colegas de trabalho", as suas ideias eram ouvidas. "Ele [Marco Paiva] queria acima de tudo comunicar connosco. Havia uma troca de culturas, se calhar era ele que estava a ser incluído por nós, não o contrário", mantém.
Em termos de representação, Inês Cóias está farta de histórias estereotipadas sobre "pessoas com deficiência que não merecem amor", como Viver Depois de Ti, interpretada por actores normativos. "Toda a gente acha que a nossa vida não é digna e não podemos ser felizes." Mas há, para ela, bons exemplos: Campeões, a comédia espanhola, e a série Sex Education da Netflix. Nesta última, há uma personagem com tetraplegia que, ao contrário das personagens demasiado "boazinhas" que costumam surgir, tem más atitudes. Essa história "não gira à volta da deficiência": "ela podia ter ou não ter." "É assim que aparecemos na vida, não andamos na rua com um cartaz a dizer 'tenho uma deficiência'."
Fonte: Público, com fotos.
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