O Regulamento das Provas de Avaliação Externa e das Provas de Equivalência à Frequência dos Ensinos Básico e Secundário, publicado no anexo II ao Despacho Normativo n.º 4-B/2023, incorpora, pela primeira vez, a referência a situações de perturbação específica da linguagem para efeitos de condições de realização das provas de avaliação externa.
De facto, a designação do artigo 40.º passou a ser "Situações de dislexia e de perturbação específica da linguagem". Nos normativos anteriores, a referência ficou-se sempre por "Situações de dislexia" (artigo 34.º do Regulamento das Provas de Avaliação Externa e das Provas de Equivalência à Frequência dos Ensinos Básico e Secundário, anexo ao Despacho Normativo n.º 10-A/2021; artigo 39.º do Regulamento das Provas de Avaliação Externa e das Provas de Equivalência à Frequência dos Ensinos Básico e Secundário, anexo ao Despacho Normativo n.º 3-A/2020).
A consulta do Guia para Aplicação de Adaptações na Realização de Provas e Exames, na NOTA EXPLICATIVA – FICHA A (p. 57), procede-se a um breve enquadramento das perturbações abrangidas, ao nível da terminologia e da caracterização, que aqui se reproduz:
A maioria das crianças e jovens que recebem uma instrução adequada aquando da aprendizagem da leitura e da escrita aprende a ler e a escrever sem grandes dificuldades. No entanto, uma percentagem significativa depara-se com dificuldades específicas impactantes e persistentes na aquisição e utilização destas habilidades. A dislexia, com uma prevalência estimada de 5,4% a 8,4% em Portugal, definida como uma perturbação do neuro-desenvolvimento de origem genética, ilustra este quadro de dificuldades específicas na leitura com repercussão na escrita. Estas dificuldades, de origem neurobiológica, não poderão ser atribuídas a um baixo nível de inteligência, nem a fatores como a falta de motivação, ambiente social pouco estimulante, défices sensoriais, ou instrução inapropriada.
Crianças e jovens diagnosticados com dislexia geralmente apresentam défices no processamento fonológico (i.e., consciência fonológica, memória de trabalho verbal e/ou rapidez de nomeação de sequências de estímulos familiares), dificuldades específicas na utilização do mecanismo de decodificação grafo-fonológica, no reconhecimento (i.e., acesso lexical) das palavras, na fluência em leitura, e na escrita de palavras, frases e textos. A baixa qualidade da leitura destas crianças e jovens é geralmente acompanhada de uma baixa quantidade/experiência de leitura, com impacto negativo no desenvolvimento e enriquecimento do vocabulário (recetivo e expressivo, i.e., quantidade de palavras que conhecem e produzem, respetivamente) e, em consequência, na compreensão em leitura de palavras, frases e textos.
O processamento fonológico refere-se à perceção, armazenamento, recuperação e manipulação dos sons da linguagem durante a aquisição, a compreensão e a produção quer do código oral, quer do código escrito e é fundamental para a aprender a ler e a escrever num sistema de escrita alfabético.
A decodificação grafo-fonológica corresponde ao procedimento de conversão intencional e sequencial de uma sequência de letras numa forma fonológica. A decodificação com precisão requer consciência fonológica e conhecimento ortográfico.
A Consciência fonológica refere-se ao conhecimento consciente, reflexivo, explícito, das unidades (e.g., rima, sílaba, fonema) e propriedades fonológicas da língua, passível de ser usado intencionalmente.
A identificação das palavras escritas (i.e., reconhecimento das palavras) pode definir-se como o processo de recuperação das características dessas palavras no léxico mental (“base de dados” relativa ao conjunto das representações das palavras). A informação lexical (i.e., as representações mentais) dessas palavras pode ser, por exemplo, ortográfica (escrita), fonológica (som) ou semântica (significado). A chamada leitura ortográfica pressupõe a constituição de um léxico mental ortográfico, onde representações de natureza ortográfica (as letras, ou estruturas maiores do que a letra) estarão armazenadas. É fundamental que, no decurso da aprendizagem, seja atingida automaticidade no reconhecimento das palavras escritas. O conceito de automaticidade refere-se à habilidade de uma criança para reconhecer as palavras rapidamente, prestando pouca atenção à palavra em si mesma.
A automaticidade no reconhecimento de palavras é imprescindível para a fluência em leitura, (i.e., a facilidade na reprodução oral de sequências de palavras escritas isoladas ou organizadas num texto). A fluência na leitura oral é frequentemente definida como a leitura rápida e sem erros de um texto e é, por isso, medida como uma combinação da precisão e da velocidade relativa, expressa através do número de palavras lidas corretamente em voz alta, por minuto. Contudo, a definição pode e deve incluir três dimensões: a precisão, a velocidade relativa e a prosódia. A prosódia refere-se ao componente da fonologia que especifica as variações melódicas (de tom, entoação, acento, intensidade) e ritmo (débito, pausas) das palavras e das frases da língua.
A avaliação da fluência na leitura oral deve considerar as normas relativas à faixa etária e/ou o ano de escolaridade do leitor. Os leitores com boas habilidades de decodificação (o que não é o caso dos leitores com dislexia) apresentam uma prosódia mais apropriada na leitura em voz alta. Assim, o desenvolvimento da prosódia em leitura parece depender das habilidades de decodificação, o que está de acordo com a visão consensual de que a leitura com prosódia é um fenómeno que ocorre apenas quando a habilidade de decodificação é eficiente.
A fluência na leitura oral fornece a ponte entre a decodificação e a compreensão em leitura. Considera-se que os leitores são bem-sucedidos com o mecanismo de decodificação quando o processo usado para identificar palavras é rápido e quase sem esforço ou automático, assemelhando-se o processamento de palavras ao modo como se reconhece uma face familiar.
A leitura automática e precisa, i.e., com fluência, liberta recursos atencionais que o leitor pode usar nos níveis superiores dos processos de compreensão (como a codificação de proposições, inferência, interpretação e integração).
Uma boa compreensão em leitura, segundo o mais influente modelo teórico, resulta do produto entre uma boa decodificação (e reconhecimento de palavras) e uma boa compreensão oral (muitas vezes representada pelo vocabulário oral). De facto, a evidência científica mostra que o vocabulário oral tem um impacto significativo na compreensão em leitura, além da consciência fonémica, do conhecimento de letras e do reconhecimento de palavras. Quando as crianças e jovens se veem confrontados com textos linguisticamente mais complexos, a contribuição do vocabulário aumenta e a contribuição do reconhecimento de palavras diminui.
Dificuldades na escrita surgem também associadas à dislexia. Estas podem manifestar-se no mecanismo de codificação (i.e., conversão fonema-grafema) e/ou no conhecimento ortográfico (i.e., a informação que é armazenada na memória e nos permite saber como representar a linguagem falada na sua forma escrita, que pode dividir-se em lexical e sublexical). O conhecimento ortográfico lexical corresponde às representações de sequências específicas de grafemas que representam as palavras escritas, dando-nos uma clara imagem mental da palavra, possibilitando-nos a sua escrita correta. O conhecimento ortográfico sublexical pode definir-se como o conhecimento de padrões ortográficos e das normas e/ou regras que nos permitem representar a linguagem oral em linguagem escrita. Neste âmbito, a consciência morfológica (e morfossintática), muitas vezes em défice no quadro das perturbações da linguagem oral e escrita, desempenha um papel fundamental na escrita (e na leitura) correta das palavras. Este conhecimento consciente da estrutura interna das palavras e das suas relações de parentesco, permite a reflexão sobre as menores unidades de significado de uma língua e a sua utilização intencional, quer no reconhecimento, quer na estruturação das palavras.
O número significativo de erros ortográficos, lexicais, morfossintáticos e sintáticos, a dificuldade da sua identificação e correção durante o processo de revisão, e o uso de vocabulário pouco rico e por vezes inadequado compromete a qualidade (e quantidade) da produção escrita de frases e de texto na dislexia. Muitas vezes, os estudantes com dislexia apresentam uma fraca qualidade textual por optarem por usar palavras mais fáceis de ortografar.
Crianças e jovens com dislexia apresentam défices na leitura e na escrita, como também em vários aspetos do processamento numérico (e.g., velocidade de contagem e recuperação de factos aritméticos – tabuadas da adição e da multiplicação). Os défices no desenvolvimento da aritmética serão mais marcados num diagnóstico comórbido de dislexia e discalculia, cuja prevalência estimada é de 20% a 70%. Nestes casos, mantêm os défices específicos e partilham défices de domínio geral (e.g., memória de trabalho e velocidade de processamento).
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