O coordenador da estrutura de missão nomeada pelo Governo para acompanhar o Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar não acredita num “modelo de regulação coerciva”. Mas fazem falta “modelos de governação por contrato, com compromissos claros e negociados, não apenas circunscritos à escola, mas à comunidade”, diz José Verdasca.
Sabe de cor: foi em Agosto de 2001 que, pela primeira vez, os resultados de todos os alunos que tinham feito exames do 12.º ano nesse ano foram divulgados à comunicação social. Nasciam os controversos rankings de escolas, que comparam resultados entre elas. Com os anos, o Ministério da Educação foi tornando públicos cada vez mais indicadores, para contextualizar os resultados. José Verdasca, coordenador da estrutura de missão nomeada pelo Governo para acompanhar o Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar, vê alguns problemas nas comparações entre escolas. Mas tem uma certeza: “Uma comunidade que não reconheça que o trabalho [da escola] é bom tende a não investir nela.”
O actual ministro da Educação é um grande crítico dos rankings de escolas. Como especialista na promoção do sucesso escolar que utilidade vê neste exercício, se é que vê?
Tenho alguma reserva sobre a possibilidade de comparabilidade entre escolas. Porque, apesar de estas análises multivariadas que já se fazem terem sido capazes de introduzir mais indicadores (como a % de alunos com acção social escolar, o capital escolar das famílias, a idade dos alunos) há outro tipo de variáveis explicativas [dos resultados escolares]. Uma delas é a heterogeneidade. Se tenho 20% de alunos com acção social escolar, esses 20% podem ser de famílias com mais ou menos capital escolar. E isso faz diferença.
Outra variável importante são as ofertas educativas. Nas regiões do interior, com menos densidade demográfica, que vão de Bragança à serra algarvia, há distritos, pela sua própria dimensão, por causa da questão demográfica, onde há só um curso ou, quanto muito, dois. Não há escolha. E aqui são outra vez os mais pobres e os mais carenciados os mais prejudicados. Porque famílias com mais meios económicos e cultura escolar levam os filhos para uma cidade a 30 km ou uma cidade a 40 km onde podem ter uma oferta mais do seu interesse, uma oferta de artes, por exemplo.
Menor diversidade de oferta está associada a mais insucesso?
Sim, é natural.
Ainda assim há um dado interessante, o da idade. Hoje temos mais 6% dos alunos que estão a chegar ao 12.º ano com 17 anos ou menos (comparando com 2014/15) e isto significa milhares de alunos.
É um indicador poderosíssimo: mais alunos concluem no tempo certo e isso não está a ser feito à custa da perda da qualidade das aprendizagens, como aliás os resultados dos exames nacionais vão demonstrando.
Bom, os exames não são o melhor indicador para avaliar isso, porque a própria estrutura dos mesmos muda de ano para ano, todos os anos testam aprendizagens diferentes...
Sim, mas mesmo quando vamos a estruturas de exame que tiveram alguma duração no tempo, percebemos que não há grande oscilação.
Na verdade, há quem sustente que a qualidade das aprendizagens piorou.
Os dados do PISA [estudo internacional da OCDE sobre as competências dos alunos de 15 anos] contrariam isso. E o percurso que os alunos portugueses fazem noutros países da Europa, onde se afirmam de forma notável, na Alemanha, na Inglaterra, na Suíça demonstra-o.
Mas deixe-me dizer mais uma coisa sobre os rankings. Eles são dispositivos de informação. Se cada escola os gerir como recurso estratégico para orientar decisões, estratégias de acção e de melhoria, podem ser importantes.
Ao fim de 20 anos rankings [esta edição é a 21.ª] há escolas que não descolam, que ano após ano aparecem sempre no fim da tabela. Mesmo quando se tem em conta outros indicadores, como a percentagem dos alunos com Acção Social Escolar — que gradualmente o ministério começou a divulgar, o que permite ter hoje várias formas de analisar e comparar as escolas, tendo em conta os seus contextos — há várias que ficam sistematicamente aquém do esperado. E este ano volta a acontecer. Quase as mesmas de sempre. Os sucessivos governos têm tirado as devidas consequências deste exercício anual de avaliação? Porque não se faz nada por estas escolas?
Nas sociedades democráticas em que se deseja a autonomia das escolas o importante é haver um conjunto de informações disponíveis para que as comunidades tomem decisões. Podíamos recorrer à inspecção-geral da Educação – que já faz a sua própria avaliação externa de quatro em quatro anos. Mas o que o ministério deve fazer é manter esta ideia de que sociedades abertas, que querem territorializar a gestão das políticas educativas, que querem envolver os diversos agentes que têm impacto educativo nesses territórios, devem tomar as suas decisões e agir.
Certo. Mas se ano após ano há escolas com maus resultados, são sucessivas gerações de alunos que ficaram e estão a ficar muito aquém, com níveis de insucesso que não deviam ser aceitáveis. São gerações e gerações de alunos em escolas que claramente não estão a ter os meios de que precisam.
O espaço onde vejo a transformação acontecer não é o de um modelo de regulação coerciva. O que defendo são modelos de governação por contrato, com compromissos claros e negociados, não apenas circunscritos à escola, mas à comunidade.
Os problemas que há para resolver são cada vez mais difíceis de categorizar. Se antes numa escola havia 20% de retenção eu tinha na gaveta quatro ou cinco soluções possíveis para aplicar. Hoje é muito mais difícil categorizar, às vezes é um caso, dois casos, muito específicos, que requerem uma intervenção com várias agentes e que têm de se comprometer
As comunidades intermunicipais têm de ser capaz de definir medidas educativas locais para resolver os problemas, mobilizando os actores neste território, com as escolas a liderar. O insucesso de um aluno é o insucesso da escola, mas também é da família, também do município, da CPCJ [comissão de protecção de crianças], da Escola Segura [programa da PSP].
Isto remete-nos para um novo ecossistema educacional, e a negociação destes compromissos deve ser feita numa certa temporalidade, a 4 ou 5 anos, até mais, sendo [que têm de ficar] muito claros os objectivos e metas a alcançar e tem de se retirar ilações locais do que não se está a conseguir fazer e perceber porque não se está a conseguir. Isto gerará um sentido de responsabilidade e colaboração institucionais que permitirá ter respostas mais rápidas para os casos de grande dificuldade de desenvolvimento educacional. Porque persistem, porque persistem, porque persistem…
Há, no entanto, dificuldades que não são do âmbito da decisão local. Caso da colocação dos professores que por lei está centralizada. As escolas públicas, ao contrário das privadas, não podem escolher os professores. Esta é uma questão-chave como afirmam os privados?
Ainda que não subscreva inteiramente as perspectivas mais conservadoras dessa fixação de modelo de colocação de professores, tenho algumas reservas sobre isso.
Há aqui outro problema, sabe? O tempo jornalístico e o tempo político são muito diferentes do tempo educativo. No tempo educativo é preciso tempo, porque são culturas instaladas, pessoas que trabalharam de determinada maneira toda a vida.
Os próprios modelos de formação contínua são modelos que muitas vezes não nascem de uma necessidade formativa naquela escola para a sua estratégia de desenvolvimento, nascem de interesse individuais ou de créditos para progredir. Os próprios modelos de formação inicial perderam há muito o sentido dos desafios que se colocam às escolas hoje, são formações que se desenharam em contextos completamente diferentes.
Repare: a autonomia será tanto mais sólida e profunda quanto mais reconhecida ela for nas comunidades. Se a escola não conseguir melhorar os seus scores, usemos nós os critérios que usarmos, há um momento em que a autonomia se fragiliza. Porque há um momento em que já não se pode dizer: o ministério não dá autonomia, ou nós não temos autonomia para isto. Há 20 anos poder-se-ia dizer, há dez eventualmente poderia dizer-se alguma coisa, hoje é mais difícil dizer que a escola não teve possibilidade de organizar as turmas assim ou assado, que não tem liberdade do ponto de vista da abordagem do currículo, pedagógica, de organização dos grupos de alunos e dos docentes.
Agora o argumento até tem sido o de não terem professores, e aí o problema não é delas. Nem os podem escolher, nem os têm porque há falta de professores.
Na literatura internacional os professores são uma variável crítica. Os professores são chave neste processo, não são únicos, mas são uma chave, não vou excluir isso.
Todavia, jogaria mais com esta ideia de criar equipas educativas alargadas, responsáveis por gerações de alunos que, em cada ciclo, teriam o compromisso de iniciar com aquele grupo de alunos e de os fazer terminar no tempo próprio e com qualidade de aprendizagem, com muita flexibilidade nesse percurso… nessa equipa educativa alargada estão docentes mas podem estar outras pessoas da comunidade, terapeutas da fala, por exemplo, por via do rastreio auditivo, por via do rastreio visual ou fonológico. Para mim faz mais sentido ensaiar, pelo menos, este modelo durante algum tempo. E encaixa bem na ideia da territorialização. E encaixa bem na ideia da governação por contrato e na ideia de compromisso.
É um modelo que cria menos stress às pessoas, é menos individualista, é colaborativo, é mais democrático. Agora com comprometimento e com compromissos
E como é que resolvemos a falta de professores?
Não sei bem, porque a formação não se faz de um dia para o outro. Mas há sempre os problemas da valorização da carreira docente. Há um inquérito, salvo erro de 2018, em que os professores portugueses estão no topo, os melhores do mundo. Para os alunos, comparando com os resultados dos alunos inquiridos noutros países, são os melhores. Mas quando se pergunta aos mesmos alunos qual é possibilidade de virem a ser professor, aí, em Portugal, passamos para penúltimo lugar. Não querem ser professores. Não há muita vontade em ser professor em parte nenhuma do mundo, mas aqui é nenhuma.
A carreira tem de ser atractiva, tem de ser, eu tenho de conseguir que os alunos que vão entrar na universidade não escolhem ser professor como última possibilidade, só porque não conseguiram entrar em mais nenhum curso. Mas isto vai levar algum tempo a resolver. E é, talvez, das questões mais significativas que o país tem para resolver.
Porque é que as escolas do Norte têm em geral melhores resultados do que as do Sul?
As comunidades são muito diferentes. Quando caminho para o mundo urbano do Norte, Braga por exemplo, tenho uma grande percentagem de jovens de famílias para quem a escola foi determinante nas ascensão social dos pais, ou dos avós, são magistrados, professores, advogados… e a escola é altamente valorizada. É uma questão cultural. O mundo rural do interior carrega menos casos onde a escola mudou a vida de avós e de pais. E esta atitude transmite-se para os filhos.
Os exames devem acabar no ensino secundário, como se diz que poderá acontecer?
Temos de ter um sistema para aferir a qualidade dos sistemas educativos. Se é com exame ou com uma prova de aferição [que não conta para a nota dos alunos], eu reajo bem ao instrumento da aferição.
Mas um exame que conta para a nota não é importante para os alunos levarem a sério a avaliação e se empenharem?
Esse é outro problema cultural. Nem sempre a aferição, que não conta para a nota, é valorizada pelos alunos e pelos pais. E, no entanto, se for levada a sério é muito importante para as escolas. Mas é preciso que haja essa mudança cultural. A aferição é essencial, até para a credibilidade que o sistema possa ter. Uma comunidade que não reconheça que o trabalho [da escola] é bom tende a não investir nela.
Fonte: Público por indicação de Livresco
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