Devem as crianças hiperativas e com défice de atenção, com menos de 6 anos, ser medicadas? O debate não é novo e a discussão não é simples, como sublinha António Vaz Carneiro, diretor do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência (CEMBE). No entanto, agora ganha um novo contorno, com o PAN (Pessoas-Animais-Natureza) a querer legislar para que se proíba a sua prescrição em crianças com menos de 6 anos.
Essa interferência num ato médico, por parte da lei, está a indignar alguns médicos. Que também contestam que seja legislado proibir um medicamento que já deu provas de ser eficaz. Perante esta discussão, o DN foi tentar perceber o que diz a ciência sobre medicar crianças com menos de 6 anos para a perturbação de hiperatividade com défice de atenção (PHDA).
PAN quer proibir antes dos 6 anos
Na quarta-feira deve ficar agendado, para algures nas duas últimas semanas de outubro, o debate para discutir o projeto de lei do PAN no Parlamento, que visa travar a prescrição de metilfenidato - estimulante do sistema nervoso central para tratar a hiperatividade com défice de atenção, conhecido pelos nomes comerciais de Ritalina, Concerta, Rubifen - e de atomoxetina - um agente neurotónico, conhecido comercialmente como Strattera.
Como as bulas dos medicamentos com estas substâncias ativas indicam que não está provada a sua eficácia em crianças com menos de 6 anos, o PAN entende que a sua toma deve ser proibida abaixo dessa idade.
"Não temos conhecimento de evidência científica de que seja eficaz o uso de medicação abaixo dos 4, 5 anos. E o que vimos do que falámos com especialistas é que o seu uso não é a última linha", defende o deputado do PAN André Silva.
Na bula do Straterra está escrito que este "não deve ser utilizado como tratamento da PHDA em crianças com menos de 6 anos e desconhece-se se o medicamento resulta ou se é seguro neste grupo de pessoas".
Na informação clínica da Ritalina, o texto também não é muito diferente. "Ritalina LA não se destina a ser utilizado como tratamento para a PHDA em crianças com menos de 6 anos. Desconhece-se a segurança e eficácia da utilização deste medicamento em crianças com idade inferior a 6 anos."
É por causa desta informação técnica que o PAN entende que deve ser feita uma lei que limite o uso desta medicação. "Apresentámos uma série de projetos de resolução para complementar esta lei. Como a adoção de estratégias e instrumentos para diagnósticos inequívocos, e que privilegie a intervenção psicológica como primeira linha, porque sabemos que a solução medicamentosa é a primeira linha, para ter resultados imediatos. Queremos com esta lei travar a sobremedicação que sabemos que existe", sublinha André Silva.
O que diz a evidência científica
Se é verdade que as bulas dão estes sinais de alerta, também é verdade, lembra António Vaz Carneiro, que há muitos medicamentos que são usados para lá das indicações clínicas para que foram criados. "É o chamado uso off-label, que na pediatria é muito frequente, uma vez que há poucos estudos clínicos com crianças tão pequenas. Não está proibido o uso destes medicamentos em crianças com menos de 6 anos, o que as marcas detentoras da molécula estão a dizer com essa informação é que não se responsabilizam pelos efeitos quando usado fora dessa idade. Mas nada impede um médico de utilizar a Ritalina nestes doentes, e fazê-lo não é sinónimo de má prática médica."
Até porque, lembra o especialista em farmacologia clínica e diretor da Cochrane Portugal (ONG constituída por profissionais da área da saúde para organizar os resultados da investigação em medicina), "a própria Academia Americana de Pediatria recomenda o uso de doses mais baixas nos casos em que a terapia comportamental não resultou. Em idades abaixo dos 6 anos".
Além disso, o uso de medicamentos nos casos de hiperatividade com défice de atenção só é feito como tratamento de última linha, quando a terapia comportamental não resulta, aponta António Vaz Carneiro. Acrescentando que tudo é uma questão de "ter o diagnóstico bem feito".
Uma das razões para proibir este medicamento é também que estes interferem com as conexões cerebrais que estão a criar-se nesta fase da vida e que os efeitos dessa medicação a longo prazo são ainda desconhecidos. Porém, António Vaz Carneiro não considera esta medicação mais perigosa do que qualquer outra que se prescreva aos 5, 6 anos.
"Não podemos esquecer que estes casos, os que claramente precisam de medicação, são muitos disruptivos. E a questão para o médico passa a ser: resolvo o problema com medicação ou não?"
Quando se deve medicar?
A maior parte do diagnósticos é feita depois dos 6 anos, quando as crianças entram para a escola e começam a ser mais evidentes as dificuldades de concentração, de estar quieto e atento. Por isso, os médicos acreditam que antes dessa idade só estarão medicados mesmo os casos graves.
"Está claramente comprovado que o medicamento é o tratamento mais eficaz para o défice de atenção, dos medicamentos mais seguros, que já é usado desde os anos 1950, nos EUA", frisa o neuropediatra Nuno Lobo Antunes, um dos especialistas que estão abertamente contra esta proposta do PAN.
O médico defende que receitar este tipo de medicamentos a crianças "não é mais específico do que receitar antibióticos ou um antidepressivo".
E António Vaz Carneiro explica que, em crianças tão jovens, o diagnóstico médico "é sempre uma arte porque é sempre interpretação de sintomas". A que se soma o facto de que só os casos graves devem ser medicados e se for grave "não passa despercebido e os pais vão procurar ajuda".
E aqui a evidência científica diz que o melhor é medicar, como explica António Vaz Carneiro.
Qual o risco desta proibição?
Nuno Lobo Antunes foi um dos primeiros médicos a insurgir-se contra a lei do PAN. Medicar crianças com PHDA não é consensual em todo o mundo, em alguns casos há sobremedicação, mas noutros certamente ela será necessária.
A questão para o neuropediatra é que deve ser o médico a decidir sobre tal questão. Trata-se de um ato médico, argumenta. Além disso, uma eventual proibição poderá inibir - e já está a fazê-lo, alerta Nuno Lobo Antunes - os pais de aceitarem este tipo de tratamento.
"O medicamento tem tido impacto muito positivo na vida das crianças. Há milhares e milhares de famílias que poderiam atestar do impacto positivo na vida das crianças e das famílias, mas têm medo de falar, por causa do alarmismo que os media têm feito à volta desta questão e com receio de serem julgados publicamente pela decisão", lamenta.
António Vaz Carneiro reconhece que seguramente haverá sobremedicação. "Há colégios dos EUA onde sete em cada dez alunos estão medicados e nós sabemos que a doença é a exceção e não a regra, logo aqui alguma coisa está errada." E, apesar de não haver estudos em Portugal sobre a prevalência desta doença, o médico da Universidade de Lisboa acredita que por cá a sobremedicação será apenas "em alguns estratos sociais". "Os casos graves mesmo em estratos mais baixos não passam despercebidos e esses estarão medicados."
Cabe então ao médico decidir, tendo em conta se "está a medicar para acalmar os pais ou para tratar o miúdo". E é inegável que, apesar de poder ser raro, "haverá com certeza uma criança de 4 anos que beneficia e muito com este tratamento e não lhes podemos negar isso", argumenta António Vaz Carneiro.
Sobre esta lei, é da mesma opinião de Nuno Lobo Antunes: "Os políticos não têm conhecimento para decidir sobre um ato médico." Como médicos, "tentamos fazer tudo na maior evidência científica, a prática clínica moderna. É inconcebível que uma lei venha dizer-me o que devo fazer, indo contra a evidência e a prática da medicina moderna."
Ao DN, a 11 de setembro, André Silva tinha defendido que esta lei surge da necessidade de "criar algumas regras, alguns travões e privilegiar acima de tudo a intervenção psicológica". Agora confrontado com as opiniões dos médicos ouvidos pelo DN, o deputado admitiu, "na especialidade", vir a criar exceções à regra, que permitam a medicação nos casos em que todas as terapias falharam. "Serão casos especialíssimos, mas se o Parlamento for consensual poderemos trabalhar para criar esses alçapões na lei."
Quanto à interferência num ato médico, André Silva reconhece que "a independência técnica é fundamental, mas, quando sabemos que há recomendações para não prescrever estes medicamentos abaixo dos 6 anos e continuam a prescrever, então temos de criar uma regra". "O bem-estar das crianças com estas idades deve impor-se à questão da independência técnica dos médicos", justifica.
Fonte: DN
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