Texto elaborado por Joaquim Colôa para a audição pública sobre o Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, na Assembleia da República, em Lisboa, no dia 10 de outubro de 2018.
Minhas Senhoras e meus Senhores boa tarde, começo por cumprimentar o Senhor deputado Jorge Falcato moderador desta audição pública bem como todas as participantes da mesa assim como todos e todas as presentes.
Agradeço, em particular, ao grupo parlamentar do Bloco de Esquerda o convite que me endereçou para, conjuntamente, refletirmos sobre educação enquanto ação inclusiva e para a inclusão. Esta é uma oportunidade por excelência para falarmos de uma escola que se pretende realizar enquanto “escola completa”. Uma escola do século XXI que está atenta à atividade técnico-pedagógica com base em evidências científicas e que assume com segurança e convicção que é um microcosmo social que se concretiza através da transmissão, pela comunicação. A evidência de que as pessoas, todas as pessoas, vivem em comunidade porque têm coisas comuns e a comunicação é a forma pela qual eles processam esse comum ( Kricke & Neuber, 2017).
Assim, hoje estaremos inevitavelmente a falar de um dos pilares da democracia, o direito de na diversidade e pela diversidade cada pessoa fazer aprendizagens e se autodeterminar em liberdade e justiça, assumindo natural e criticamente o direito à participação em equidade. Ao sublinhar estes princípios éticos, indissociáveis de qualquer democracia, reivindico como mote central para a reflexão os valores subjacentes aos direitos humanos e, se me permitem, estou convicto de que não existe local mais nobre para falarmos de direitos humanos, como é a Assembleia da República, espaço físico e simbólico do exercício da democracia.
Inicio por dizer que a minha narrativa se centrará somente em alguns aspetos que considero centrais do Decreto Lei 54 de Julho de 2018 e que se me apresentam mais críticos. Assim não pretendo proceder a qualquer interpretação mais ou menos exaustiva do referido diploma legal, não só porque o tempo não o permite como, percecionando-se a sua pouca clareza, correria o risco de me enlear em (re)interpretações sucessivas, diversas e quiçá díspares. Realidade que um mês depois da implementação efetiva de dito diploma é já factual em muitas escolas e formações explicativas e (re)interpretativas que todos os dias são oferecidas, mas também vendidas a todos aqueles a quem foi acometido o dever de operacionalizar o que no citado normativo se pretendeu conceptualizar. Do pouco tempo de vigência do Decreto Lei 54 de Julho de 2018, parece-me podermos reter, já, que quiçá fruto de diversas abordagens mais ou menos formais realizadas a diversos níveis do sistema educativo, inclusão pode ser tudo e o seu contrário.
É hoje um facto que em nome da inclusão, pressupostamente propagada pelo citado normativo, em algumas escolas se têm colocado e repito colocado alunos em contextos de aparente interação que, por não se acautelarem os necessários mecanismos de participação e sentido de pertença, se configuram como antes da publicação de dito diploma legal, em práticas tantas vezes guetizantes. Quantas vezes, durante este mês, temos assistido à descrição de ambientes de exclusão, mesmo quando inscritos em contexto de sala de aula. A sala de aula e/ou o facto de se estar nesta tem vindo a ser entendido, tantas vezes, como imperativo primeiro do normativo. Entendimento que, sem norteamento conceptual e inerentemente operacional consistente, transforma a sala de aula em simples contexto instrumental de definição da própria inclusão. Assim, em nome da diversidade e diferença mais não se substantivam e aprofundam, não só na esfera do simbólico, teorias, atitudes e práticas de normalização.
O Decreto Lei 54 de Julho de 2018 é um normativo eivado de várias contradições tanto no que se refere à sua linguagem como a muito do seu articulado mais específico. É um documento ambíguo logo na conceptualização do modelo multiníveis, aspeto central em redor do qual se pretende organizar todo um racional filosófico e de ação. Esta ambiguidade é facilitadora da emergência de práticas de inclusão que se prestam a ser uma expressão de mudança discursiva, ou seja, uma retórica de boa vontade a que alguns têm relutância em opor-se, mas que tende a perpetuar e mesmo ampliar práticas muito pouco inclusivas. Mais que algumas vezes se tem ensaiado a tese de que se as coisas não funcionarem é porque existem nas escolas resistências e bloqueios mais uma vez assacados, essencialmente, aos professores e, sobretudo, aos Professores de Educação Especial, mesmo sendo esta uma lei dita para a inclusão e não para a Educação Especial. Talvez por este tipo de mensagens mais ou menos institucionais, mais ou menos subliminares alguns Departamentos de Educação Especial, num assumir evidente de tais contradições e ambiguidades, se transformaram eles e só eles mesmo, à revelia de outros diplomas legislativos, em Departamentos de Educação Inclusiva.
Estamos assim perante uma realidade em que alguns aspetos críticos identificados em outros países após alguns anos de implementação do modelo multiníveis se configuram, em Portugal, como emergentes logo na casa de partida ou seja no próprio normativo. Realidade que se amplia pelo facto de no Decreto Lei 54 de Julho 2018 o modelo multiníveis ter sido redesenhado numa versão, diga-se em abono da verdade, muito portuguesa. No normativo agora em apreço o modelo multiníveis apresenta-se como um híbrido conceptualizado numa perspetiva de organização de medidas educativas que se configuram como respostas circunscritas e prescritivas à expetável diversidade de alunos que compõem as escolas do século XXI. Assim, sem qualquer olhar critico e com uma capa de cientificidade, ao modelo multiníveis é, de forma não assumida, atribuída a qualidade de modelo pedagógico. Nesta lógica, ao modelo multiníveis são entrosadas de forma direta e artificial (para não dizer de contornos técnicos questionáveis) ações que, em grande parte, definem outro modelo, o de Diferenciação Pedagógica que como o seu nome indica este sim é um modelo pedagógico. É mesmo com surpresa que verificamos que a própria expressão Diferenciação Pedagógica é destituída da sua substantivação enquanto modelo de ação para se transformar, ela própria, em medida educativa. Deste modo, por força de uma reconceptualização, diríamos que sui generis e quiçá inovadora, ao modelo multiníveis sonega-se-lhe a sua função original.
Como referem Balu et al (2015), as inovações educacionais, como a ferramenta de trabalho “multiníveis”, são mais eficazes se usadas como concebidas originalmente. Assim, como também concluem Durlak & Dupré (2008), que a fidelidade ou a aderência hábil ao modelo, permite que os profissionais compreendam melhor se todos os componentes estão a ser usados e o grau em que esses componentes estão a ser eficazes ou ineficazes. Tomando eu esta premissa como séria e cientificamente sustentada, prevê-se a médio prazo em Portugal algumas barreiras adicionais à monitorização efetiva do Decreto Lei 54 de 2018 bem como à consecução de resultados e processos de qualidade. Mais que os autores referidos afirmam, ainda, que os níveis mais elevados de fidelidade estão ligados aos melhores índices apresentados pelos alunos.
A opção híbrida presente no Decreto Lei 54 de Julho de 2018, que com algumas reservas apelidamos de conceptual, apresenta como já referimos adstritas ao modelo multiníveis medidas prescritivas que se distribuem pelos três níveis e que advém da atomização de ações que compõem, em grande parte, o modelo de Diferenciação Pedagógica. Ações transformadas em medidas ditas educativas e assumidas como contínuas de cariz progressivamente mais restritivo e acumuláveis tal qual como estava inscrito na Decreto Lei anterior, o Decreto Lei 3/2008. Embora fosse pertinente, dispenso-me de realçar, 10 anos depois da sua implementação, alguns dos problemas que tais medidas educativas também de cariz circunscrito e prescritivo colocavam às práticas de inclusão. Tenho consciência de que podem estas considerações ser vistas como meramente opinativas e de leitura técnica e teórica, no entanto é esta realidade que se tem vindo, já, a consubstanciar em parte como fator central de dificuldades na operacionalização do Decreto Lei 54 de Julho de 2018. São vários os relatos de operacionalizações em curso, quantas vezes meramente instrumentais e ao ritmo de (re)interpretações sucessivas, conjunturais e mesmo contraditórias. Assim, um mês após a implementação do Decreto Lei 54 de Julho de 2018 são emergentes aspetos que nos remetem para algumas avaliações realizadas em outras latitudes geográficas, estas feitas alguns anos após a implementação do modelo multiníveis. De entre várias realçamos a não coincidência entre a apropriação de termos e conceitos relativos ao modelo e a alteração de práticas, observando-se por vezes a manutenção de um conjunto de práticas pouco consistentes e mesmo marginais (Kavale, Holdnack & Mostert, 2005). Para além disso este facto tenderá a consubstanciar, mais cedo e de forma menos avisada, uma realidade também constatada algumas vezes nas diversas avaliações à implementação do modelo multiníveis, dizem essas avaliações que este ora pode ser ignorado tanto por professores, gestores e outros decisores escolares como pode ser manipulado e mal implementado reduzindo-se, muitas vezes, a um conjunto de dados que servem tão só para o preenchimento de diversos formulários (Cicek, 2012). Facto que se poderá tornar ainda mais pertinente se assistirmos à monitorização de processos, a vários níveis do sistema e à luz do Decreto Lei agora em apreço também eles desprovidos de princípios científicos e pedagógicos consistentes e por isso acantonando-se em interpretações de interpretações e em ações de cariz essencialmente administrativo, nomeadamente no seu afã de recolher dados/números que ilustrem e corporizem quadros que, independentemente dos seus objetivos quantas vezes questionáveis, assentam mais no preconceito conjuntural que na racionalidade necessária à mudança qualitativa que muitos almejamos estrutural.
Para que essa mudança seja na realidade diferenciadora e qualitativa, diversa literatura produzida em vários países e que se tem dedicado a relatar a monitorização (cientificamente sustentada) da implementação do modelo multiníveis refere que, para além de ser importante respeitar o modelo original, o elemento mais crítico é definir uma visão clara e conquistar o empenho da liderança escolar, das estruturas intermédias, bem como dos líderes de professores e daqueles que influenciam as práticas dos professores em cada escola (Maier et al., 2016; O’ Connor & Freeman, 2012). É fazendo justiça a esta ideia que, por entre outras razões, em todas as escolas, estados e países (dependendo de organizações políticas e administrativas) onde se decidiu pelo modelo multiníveis, o prazo de implementação deste é de cerca de três anos letivos. Três anos que são, apelando-se à autonomia de cada organização, devidamente mas também livremente planificados tanto no que respeita a tempos, como a ações nomeadamente formação em contexto real, alocação de recursos disponíveis e a disponibilizar bem como no que se refere à elaboração de documentos diversos como são os de avaliação e monitorização contínua de resultados, e processos.
Na nossa realidade pese informalmente ouvir-se dizer e repito, ouvir-se dizer, que a legislação é para se ir implementando e a sua operacionalização é para se ir fazendo, a verdade é que o normativo nos diz que: “1 - O presente decreto-lei produz efeitos a partir do ano escolar 2018-2019 - 2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, e do regime previsto no artigo 31.º, devem as escolas proceder à sua aplicação na preparação do ano letivo 2018-2019”. Peço desde já desculpa por não transcrever o articulado no artigo 31º, mas parece-me mais assertivo tomar esse tempo para assumir que decorrente da letra da lei encaramos como natural que tomem forma medos também eles contraditórios. Também este clima pouco propício a inovações e mudanças tem sido tónica na maioria das escolas. Decorrente tanto da publicação do diploma legislativo em Julho de 2018 para ser considerado na preparação do ano letivo de 2018/2019 como dos climas, quantas vezes (en)formativos e pouco propícios à reflexão a que temos vindo a assistir, parece-nos natural que o stress de diversos agentes educativos tenha vindo a aumentar colocando em causa a já frágil resiliência de muitas organizações escolares. Apelamos agora a um documento de monitorização de implementação do modelo multiníveis, produzido noutras geografias em que se refere que: Implementar um novo modelo pode criar muito stress, reduzindo o envolvimento. Quando o envolvimento é baixo, o novo modelo tem menos probabilidades de ser implementado a longo prazo (Damschroder et al., 2009; Fixsen, Naoom, Blase, Friedman, & Wallace, 2005).
Mais que como já referimos o modelo multiníveis é na sua origem um (re)organizador de serviços que remete para um conjunto de respostas que em determinada organização já existem ou necessitam ser mobilizadas de forma a concorrerem para a adequação precoce de comportamentos de aprendizagem e de interação social, claramente identificados. Este modelo no seu original, por não ser um modelo pedagógico, necessita relacionar-se, sem se confundir, com modelos de essência pedagógica como poderão ser o Desenho Universal para a Aprendizagem e/ou o Modelo de Diferenciação Pedagógica.
Consciente ou inconscientemente e parecendo-nos que para suprir a função original denegada, em Portugal, ao modelo multiníveis, inscreve-se no Decreto Lei 54 de Julho 2018 uns putativos Centros de Apoio à Aprendizagem. Estes, pressupostamente, pretendem ser aglomeradores (físicos e virtuais – dizem alguns) de serviços e respostas. Função que, repetimos, no seu original o modelo multiníveis assumiria. Aliás diga-se em abono da verdade que esta função do modelo multiníveis é verdade tanto para os ambientes educativos como em outros cenários nomeadamente e como mero exemplo, os financeiros e os de marketing.
Mas voltando aos Centros de Apoio à Aprendizagem, quer corporizem grosso modo e como tem vindo a ser assumido em diversas instâncias, os recursos já disponíveis em cada um dos agrupamentos de escolas, quer não, tenderão inevitavelmente pela forma simplista e omissa como são descritos no articulado do Decreto Lei 54 de Julho de 2018, a transformarem-se gradualmente em lugares físicos de segregação. Deste modo, a médio prazo, estou convicto que será ainda mais real a guetização já antes observada em alguns serviços disponibilizados pelas escolas. Falamos nomeadamente das unidades referenciadas a diversas tipologias de deficiência, mesmo podendo estas apropriar-se de novas denominações que a alguns parecerão mais inclusivas.
Acreditamos que tenderão também a efetivar-se e a assumirem-se como legais em algumas escolas determinadas práticas marginais que têm sido informalmente toleradas a diversos níveis de decisão e em algumas zonas do país até mesmo incentivadas por decisões mais ou menos informais da própria tutela. Para ilustrarmos referimos como exemplo as turmas constituídas somente por alunos a quem tinha sido prescrito um Currículo Específico Individual. No futuro a denominação poderá ser a de qualquer nova medida educativa, possivelmente alguma das consideradas mais restritivas, quiçá a denominada “adequação curricular muito significativa”, ou esta prática segregadora referenciar-se ainda a qualquer pensamento seletivo e/ou categorizador assumido como interpretação legítima do que pode ser a operacionalização dos Centros de Apoio à Aprendizagem. A acontecer esta realidade que nos parece cada vez mais emergente, estaremos perante mais um aspeto crítico assacado ao modelo português. Pese, no entanto, este aspeto crítico também ser identificado em diversas avaliações realizadas, em outros países, após algum tempo da implementação do modelo multiníveis, o original. Aspeto critico que levou Basham, Israel, Graden, Poth & Winston, (2010) a chamar a atenção de que em nenhum dos níveis a ação pode ser confundida com “medidas seletivas” e argumentativas, com risco de estas se confinarem a procedimentos essencialmente administrativos, para respostas mais restritivas (para ilustrar esta ideia embora tomando novamente a liberdade de não transcrever o artigo 31º, aconselho vivamente a sua leitura atenta). Acrescentando que a acontecer o que antes descrevo estaremos perante um modelo que se baseia em meras ações de elegibilidade de alunos para serviços de cariz mais restritivo. Prática que os autores antes referidos identificaram noutras geografias e que por esse motivo alertam que os níveis de ação propostos pelo modelo multiníveis não podem ser assumidos como “lugares”, o Nível I, a “educação normal”, o Nível II a “educação compensatória” e o Nível III a “educação especial”.
Para finalizar e retomando o tópico recursos quero ainda, se me é permitido, discordar das vozes que apresentam o Decreto Lei 54 de Julho de 2018 como percursor de mudanças inovadoras, pelo menos no que aos Centros de Recursos para a Inclusão diz respeito. É por demais evidente que no que a estes se refere se mantém o status quo tão confortável para algumas organizações. Sobre tal assunto e para não vos roubar mais tempo reproduzo, de cor, as palavras do Presidente da Associação de Docentes de Educação Especial que no essencial vai de encontro ao que defendo desde 2008 e cito: “Sobre os Centros de Recursos para a Inclusão avançamos muito na discussão, mas não avançamos na decisão. Quanto aos Centros de Recursos para a Inclusão parece que estamos todos de acordo, mas não acontece nada. Necessitamos mudar, está na altura de fazermos alguma coisa relativamente aos Centros de Recursos para a Inclusão. O modelo de intervenção é um modelo que está eivado de imensos problemas na relação entre o que são os Centros de Recursos para a Inclusão e as escolas. Os Centros de Recursos para a Inclusão são para a Inclusão, não para as terapias não para a Educação Especial. Deve ser estudado, seriamente estudado, um modelo de financiamento que não seja este e que permita às escolas recrutar os recursos que necessitam para educar os seus próprios alunos.”
Estas palavras foram ditas nesta mesma casa. Casa que reafirmamos e terminando a nossa intervenção, ser por excelência o lugar físico e simbólico da democracia e do poder de todos os cidadãos e todas as cidadãs no efetivo dever de participação discricionária, com ética pessoal, social e profissional, em liberdade e em justiça.
Bem-hajam
Texto original disponível aqui.
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