Muitos anos foram precisos para que a Educação chegasse a todas as crianças. Houve grupos que chegaram mais cedo por terem nascido em famílias que valorizavam e tinham recursos para assegurar a educação dos seus filhos, outros chegaram mais cedo porque moravam em regiões onde a escola pública se estabeleceu primeiro, outros ainda, chegaram mais cedo por causa do seu género. Apesar de Martinho Lutero (1483-1546) já ter preconizado a educação tanto para rapazes como para raparigas, o certo é que este desiderato levou centenas de anos a ser cumprido e, mesmo assim, com os rapazes a terem durante muitos anos melhor acesso à escola que as raparigas. Este esforço de universalização da Educação a todas as crianças foi um esforço longo, custoso e que, no nosso país, só recentemente se pode considerar bem-sucedido.
Talvez todo este esforço de proporcionar Educação a todas as crianças tenha reforçado a ideia que a Educação era um bem indiferenciado que ou se tem ou se não tem. Só depois deste longo e penoso esforço estamos agora na fase de, consistentemente, perguntar qual a educação que deve chegar a todos. Por analogia, só depois de a água chegar a todas as casas se começa a questionar a qualidade dessa mesma água. Hoje, o debate público na educação é sobre a sua adequação à contemporaneidade, a sua adequação aos interesses e capacidades dos alunos, a sua pertinência para preparar cidadãos conhecedores e humanamente cultos para participarem em sociedades complexas. É uma evidência que a Educação de hoje não se cumpre só por ser universal: a Educação de hoje só pode ser útil e pertinente se alterar velhos e bafientos paradigmas que demasiado tempo foram julgados como inquestionáveis.
Não temos hoje dúvidas sobre a importância da escola. Não temos, mas já tivemos antes. Há algumas décadas a preocupação era se a escola pode mesmo reduzir as desigualdades que são geradas pelos contextos económicos, culturais e sociais de onde as crianças são provenientes. Hoje este debate está ultrapassado. No passado mês de junho a revista The Economist tratou extensamente qual o papel da escola e dos professores no tecido social. Concluiu-se pelo papel decisivo – quase surpreendentemente decisivo – que as escolas e os professores podem desempenhar. Afirma-se por exemplo que “um só ano de ensino dos 10% dos melhores professores tem um impacto três vezes maior na aprendizagem dos seus alunos que o impacto causado pelos 10% piores”. Por outro lado, “se os alunos negros fossem ensinados pelos 25% dos melhores professores desapareceria a sua diferença para os alunos brancos”.
A escola faz sim uma diferença se… não persistir em
a) tratar todos os seus alunos como se eles fossem “homogéneos”,
b) conceber o conhecimento como se fosse único que estivesse pronto,
c) avaliar os alunos e as escolas como se existisse uma linha de chegada a ser franqueada ao mesmo tempo por todos.
Tratar os alunos como homogéneos é certamente uma herança dos tempos em que a prioridade era que todos frequentassem a escola. Não haveria muita disponibilidade para olhar diferentemente os alunos: era uma fase que quantidade. Por isso, agora que estamos noutro momento nos impressiona como esta ideia perversa de tratar os alunos como “homogéneos” pode persistir na organização das turmas, no ritmo e estratégias curriculares, no acolhimento de alunos com necessidades educativas específicas. Olhar os alunos como homogéneos (e os que visivelmente não o são, como “diferentes”) é uma herança doentia que nos traz muito mais prejuízos que vantagens.
Olhar o conhecimento como se ele estivesse pronto e só tivesse que ser transmitido a alunos ignorantes, é também um património que precisamos de prescindir. Hoje não é possível motivar todos os alunos exclusivamente por modelos transmissivos de conhecimento. Desde há muitos anos que muitos educadores têm chamado a atenção que, para o aluno se motivar e entusiasmar com o conhecimento, tem de ser implicado por situações-problema, por questões, por atividades, valorizando o seu papel como ator na sua própria aprendizagem.
Por fim, a escola faz diferença se puder ser suficientemente dúctil e próxima dos alunos acompanhando diferentes percursos: uns mais rápidos, outros menos, uns feitos por uns caminhos e outros por outros caminhos. Considerar que todos têm de chegar ao mesmo tempo ao mesmo lugar, não ajuda a escola a fazer a diferença: ajuda-a sim a criar e legitimar desigualdades.
Queremos pensar que estamos no bom caminho para entender que a escola não pode ser a parede granítica que é preciso escalar, mas um conjunto de percursos que possíveis (em terreno acidentado…) que é preciso fazer com motivação, como liderança e com apoio. Nesta conceção de valorizar os percursos, cabe referir como louvável e muito positiva a medida tomada pelo atual Ministério da Educação em avaliar as escolas não só em função dos seus resultados finais (os inefáveis rankings) mas levando em conta os lugares de onde se partiu. Sem olhar os percursos, a avaliação externa é injusta e incorreta.
Não podemos tratar igual o que é diferente. E agora, mais que nunca, estamos em posição (estamos na obrigação) de entender as diferenças para as podermos acolher com mais equidade.
David Rodrigues
Presidente da Pró – Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial. Conselheiro Nacional de Educação.
Fonte: Público
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