Instâncias com responsabilidade deliberativa na educação formal, tanto de caráter internacional (nomeadamente, as que se situam na União Europeia) como nacional (ministério da educação, departamentos que dele dependem e escolas), parceiros educativos (como sejam, instituições de ensino superior, associações científicas e profissionais, autarquias e empresas) e comunicação social, têm, em convergência e de modo muito assertivo, vindo a fazer notar que vivemos numa sociedade marcada pelos admiráveis e estonteantes avanços da tecnologia, deles decorrendo transformações assinaláveis nos modos de pensar e de agir, designadamente na disposição da pessoa para construir uma representação positiva de si e fazer-se notar em contextos onde a competição se encontra consolidada.
Ora, a escola, que deveria ser pioneira na preparação de todos e de cada um com vista ao triunfo individual e ao progresso da sociedade, encontra-se incompreensivelmente enclausurada no passado e, nessa medida, desajustada face a necessidades e ambições da geração que a frequenta. Urge, pois, construir a “escola do futuro", a verdadeira “escola do século XXI”, do século em que já estamos vai para a segunda década.
Na prolixa linguagem que dá forma ao discurso das mencionadas entidades, emerge o apelo a uma “verdadeira revolução”, justificada por argumentos que já se tornaram slogans. Vale a pena determo-nos nos mais recorrentes.
1. Os alunos de hoje são diferentes dos de gerações anteriores, mesmo das mais próximas, é talvez o slogan de partida. Depois da “geração X”, da segunda metade do passado século, aspirante a alguma coisa excepcional mas com a incerteza no horizonte, e da “geração Y”, do final desse século, habituada a conviver com as novíssimas tecnologias e envolvida em multitarefas que não requeiram grande dificuldade, esta “geração Z”, “nativa digital”, “líquida”, nascida na transição de milénio, movimenta-se por “zapping” na internet e, estando permanentemente “conectada”, acede, de modo imediato, às mais diversas informações.
2. A escola, tal como existe, “conservadora”, “tradicional”, será necessariamente, para esta geração, uma “catedral do tédio” (cf. Viana, 2016), eis um segundo slogan. Os espaços e os tempos prévia e rigidamente organizados, a estruturação do trabalho académico assumida pelo professor e o protagonismo que assume em sala de aula, o estudo pelo manual e as tarefas de aplicação, as rotinas de avaliação, só podem ser vistos como pouco ou nada atrativos, em última instância, aborrecidos e nada significativos por parte daqueles que já prolongam o seu corpo nos tablets e smartphones e neles ancoram a sua identidade. Ao contrário de se contrariar esse “modo de ser” há que compreendê-lo, acolhê-lo e potenciá-lo em temos de aprendizagem.
3. Passemos a um terceiro slogan: o currículo igual para todos, centrado em conhecimentos disciplinares excessivamente “teóricos”, não admite que cada um encontre ou manifeste a sua voz, expresse os seus talentos, capacidades, opiniões e expectativas, reconheça e projete os seus afetos. A falta de enquadramento prático daquilo que se pretende que os alunos aprendam, a distância que se insiste em manter em relação à sua realidade concreta e às suas experiências quotidianas, a desatenção aos seus estilos de aprendizagem, bem-estar psicológico, conforto físico e, mesmo, opções estéticas, conduz à desmotivação e, esta, ao insucesso e ao abandono escolar. Se eles, alunos, os verdadeiros protagonistas do sistema educativo, estão “naturalmente” embrenhados com o digital, que os move nas várias dimensões da sua vida, será de libertar o currículo do conhecimento inerte e distante, abrindo-o ao conhecimento vivo e útil, que está à distância de um clique. Assim se preparará a nova geração para assumir um perfil existencial que já lhe é próprio, no qual se destacam as competências “empreendedoras” e de “cidadania”, com vista a realizar-se num “mercado de trabalho” dominado pela tecnologia e em constante transformação.
4. Chegamos a um quarto slogan que aponta no sentido de se levar os alunos a estabelecerem objetivos concretos para a sua aprendizagem, a recorrerem a abordagens pluri, multi, inter e transdisciplinares para os alcançarem, a responderem a desafios que requerem respostas céleres e pragmáticas, a mostrarem flexibilidade, adaptabilidade e iniciativa, a descobrirem-se e a explorarem as suas vivências, sentimentos e emoções, a investirem em relações sociais diversificadas e gratificantes, a serem críticos, criativos e perseverantes. E, tudo isto de modo desejavelmente (pró-)ativo e autónomo, numa lógica de emancipação face ao professor e ao poder que ele representa.
5. Operacionalizando o acima apontado chegamos a um quinto slogan: a escola deve integrar vias curriculares tão diferenciadas quanto os seus destinatários, todas elas dando supremacia a “atividades” concretizáveis através da “aprendizagem baseada em problemas” (inquiry-based learning), da “sala de aula invertida” ou “papéis invertidos na sala de aula” (invertid ou flipped clas-sroom), da pesquisa, seja ela individual ou colaborativa e cooperativa, de tutorias, se e quando os alunos sentirem necessidade de consultar o professor, de jogos (games), de preferência inspirados nos que lhe são familiares. De modo complementar, técnicas como o mindfulness, importadas de outros campos, aumentarão a sua atenção e concentração, evitando o stresse associado às tarefas académicas, ampliando a sua satisfação, bem-estar, autoconfiança, autoconceito e autoestima.
6. Sendo esta renovação metodológica importante não é bastante, pelo que tem de ser integrada num plano estratégico de fundo, um plano capaz de transformar a imagem e a essência da escola: impõe-se, pois, intervir no espaço e em recursos. Chegamos, assim, a um sexto slogan, já da ordem do material, que destaca a arquitetura, o design e a decoração como potentes fatores de mobilização dos alunos. Admitindo que preferem estar com os seus pares em espaços abertos, coloridos, luminosos e multifuncionais – por exemplo, centros comerciais –, justifica-se recreá-los na escola, bem como espaços destinados a momentos de descontracção (espaços chill out). Apetrechados com mobiliário capaz de assegurar o conforto corporal, todos eles devem permitir aos alunos liberdade para se movimentarem e para realizarem as atividades que têm em mente, ficando a gestão do tempo ao seu critério. Tais espaços informais e agradáveis, que acolhem preferencialmente o lúdico, sendo distintos dos de trabalho, proporcionarão ambientes estimulantes onde a aprendizagem flui de modo espontâneo e sem esforço.
7. Ainda na ordem do material, mas transcendendo-o, chegámos ao sétimo e último slogan que se traduz na apologia do uso das mais recentes e sofisticadas tecnologias da informação e da comunicação como suporte da aprendizagem. Com os equipamentos e aplicações, cuja lista não pára de se expandir, os alunos têm acesso a toda a informação que se encontra disponível no espaço virtual, podendo selecionar e/ou transformar a que lhes permite concretizar os seus propósitos e produzir algo a partir dela, fazer conjeturas e ensaiá-las, delinear e experimentar múltiplos cenários. Podem seguir, ao seu ritmo, programas amigáveis que os põem ao corrente das mais diversas matérias, sem terem a maçada de ouvir o professor ou sentirem retraimento devido à pressão que este possa exercer. Tudo isto deve concorrer para a construção de um novo tipo de pensamento, o “pensamento computacional” (cf. Alves, 2016).
Esse será, pois, o grande desígnio da escola do futuro, empolgante por prometer o próprio futuro. Sem essa escola não haverá, não poderá haver, futuro.
Não obstante a linguagem modernizada patente no discurso que dá corpo ao designado “movimento da revolução digital” (digital revolution), que sintetizar no texto antes publicado, vemo-lo ressurgir com regularidade no já longo percurso dos sistemas de ensino, ficando a ideia de que a escola se encontra numa constante e pungente crise, que, claro está, importa superar depressa e com afincado empenho.
Se recuarmos à anterior passagem de século, do XIX para o XX, aí encontramos o “movimento da educação nova a declarar a inutilidade e inadequação da escola antiga, formalista e intelectualista, advogando, nessa linha, a sua substituição por uma escola moderna, naturalista e para a vida. “A escola ativa vencerá a escola tradicional”, afirmou Ferrière (1920/1934), consubstanciando o que ficou conhecido por revolução copernicana na educação.
Não tendo esse intento sido, à altura, completamente concretizado, haveria de ressurgir em réplicas mais ou menos notadas, como sejam as que aconteceram nos pós-Grandes Guerras e no pós-Maio de 68. Apesar da passagem do tempo, em qualquer uma delas se acusou a escola de fechamento a necessidades, interesses e expressões individuais, étnicas, culturais e sociais, e, de modo muito particular, aos problemas do mundo que tinha obrigação de ajudar a resolver.
Em resultado, foi ganhando forma e consistência um discurso que, na sua matriz, não se afasta substancialmente daquele em que me detive no texto anterior [acima], sendo uma das suas características mais distintivas a declaração de que o aluno é capaz de construir o seu próprio conhecimento.
Apesar dos intermináveis equívocos que esta declaração sempre gerou, foi em grande medida por causa dela que gradativamente se introduziram alterações nos currículos e na avaliação, nos papéis do professor e do aluno, nas abordagens pedagógico-didáticas e, também, tecnológicas.
As consequências nem sempre positivas que tanto esse discurso mais recuado como as suas concretizações sugeriam, muitas delas confirmadas por investigação, desencadearam uma contra crítica que se expressa do seguinte modo: o sentido da educação tem de ser sempre o da perfectibilidade humana; não deve a escola desistir de instruir e terá de continuar a concentrar-se no conhecimento “poderoso” que permite a construção da inteligência; os métodos e os recursos não devem ser escolhidos em função da agradabilidade que possam colher junto dos alunos mas das garantias de aprendizagem que dão; o professor terá de continuar a ser o adulto responsável pela educação dos mais jovens pois estes não se educam sozinhos nem uns aos outros...
Estas são algumas das premissas/recomendações que têm sido trazidas a lume por autores consagrados das mais diversas áreas ligadas à educação e que convém não negligenciar.
A verdade, elas baseiam-se num trabalho de reflexão e de pesquisa empírica que tem feito avançar com segurança o ensino, introduzem a dúvida e a ponderação, tão necessárias na ação pedagógica e, acima de tudo, obrigam a uma interrogação sobre a verdadeira função educativa da escola.
Ora, é precisamente esta abordagem, necessariamente dependente de um estudo demorado e aprofundado, que vejo omitida na retórica, imposta nas mais diversas frentes, sobre a denominada “escola do futuro”.
O que está em causa é uma escola alicerçada na tecnologia com vista à preparação tecnológica das novas gerações, tendo por justificação o argumento de que a sociedade em que vivemos é tecnológica. Trata-se de um raciocínio redundante e reducionista, que conduz a um paradigma educacional “centrado na tecnologia” (technology-centred) (Mayer, 2010).
O foco não é o aluno – como acontecia no paradigma da educação nova –, apesar de se fazer crer que sim, nem as capacidades cognitivas que, com sustentação em conhecimento abstrato, lhe permitem pensar, no sentido mais amplo da expressão. Enfim, não é a consciência humana que se pretende ajudar a formar mas algo perigosamente diferente: a preparação de sujeitos, entendidos como “capital”, “recurso” ou “matéria prima”, para que, com flexibilidade e rapidez, assegurem o funcionamento do mundo laboral e de consumo com vista à economia global, que em pouco ou nada os beneficiará (Innerarity, 2016).
Destas palavras não se deve depreender uma recusa cega da integração das novas tecnologias na educação formal, como frequentemente se quer fazer crer, trata-se, antes, de encontrar o exacto valor dessas tecnologias e estudá-lo com o rigor que a investigação científica recomenda, com vista a criarem-se condições que potenciem a aprendizagem, o que, aliás, tem acontecido com as antigas tecnologias, com destaque para o quadro e o livro, nada indicando que se devam excluir do processo de ensino.
Existe, de resto, nesta área, investigação de grande qualidade com aplicações ponderadas, que têm dado resultados encorajadores e que, por essa razão, ganhariam em ser mais divulgados no nosso país e também usados.
O debate não pode, pois, ser extremado entre a aceitação e a rejeição radicais das tecnologias no campo educativo formal; terá, sim, de ser centrado nas potencialidades que abrem para se conseguirem concretizar as finalidades que, com legitimidade, a escola deve procurar atingir: os mais elevados patamares de educação para todos (D´Orey da Cunha, 1996).
Helena Damião
Referências:
- Alves, V. (2016). Escola do futuro já existe. Saiba onde é. Dinheiro vivo.
- Cunha, P. D. (1996). Ética e educação. Lisboa: Universidade Católica.
- Ferrière, A (1934/1920). A escola activa. Porto: Editora Educação Nacional
- Innerarity, D. (2016). Nueve valores educativos para sobrevivir en una sociedad del conocimiento. Conferência proferida na Fundação Calouste Gulbenkian em 30 de Abril de 2016, no âmbito da Conferência Educação para o século XXI.
- Mayer, R. E. (2010). Learning with technology. In H. Dumond, D. Instance & F. Benavides (Eds.). The nature of learning: using research to inspire practice (pp. 179- 198). Paris: OCDE Publishing.
- Viana, C. (20169. Para que a escola nãoseja uma “catedral do tédio” é preciso que os alunos contem. Público.
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