sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Há uma rede para salvar os jovens que as malhas da escola deixam cair

Fábio Daniel chumbou no 5.º ano. Uma, duas vezes. Ainda fez 6.º, mas acabou por desistir, quando tinha uns 12, 13 anos. Agora, com 24, fala como se o período que decorreu entre o início e o fim da adolescência, que viveu num dos bairros sociais do Porto, não existisse. O que é que fizeste quando saíste da escola? A resposta é breve: “Nada”. Quer falar do que aconteceu depois de aos 22 ter entrado no Arco Maior, o projeto que salva as crianças que caíram por entre as malhas da escola. Foi por causa dele que voltou a estudar e que começou “a encarar a vida destemidamente”.

O Arco Maior não é uma escola. E também não é uma alternativa às escolas já existentes. É provável que nesta sexta-feira o coordenador daquele projeto e especialista em Educação da Universidade Católica do Porto, Joaquim Azevedo, insista nesta ideia.

Terá oportunidade de intervir, durante a cerimónia de formalização do apoio financeiro de Alexandre Soares dos Santos, do Grupo Jerónimo Martins, ao projeto lançado em 2013. E tem feito sempre questão de que isto fique claro: o Arco Maior aparece quando tudo o resto falha, quando a exclusão definitiva das crianças e dos jovens está a um passo, quando “eles já abandonaram a escola e foram abandonados por ela”.

Nasceu no Porto, onde há centenas de jovens em situação de abandono escolar sinalizados pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, mas podia ter nascido noutra cidade em que eles também existem. É “um local e um tempo que oferece a quem já caiu por entre malha de todas as escolas e centros de formação da cidade o tempo e a oportunidade de se reencontrar e recomeçar”, descreveu Joaquim Azevedo no relatório sobre o primeiro ano de atividade do Arco Maior.

Já tinha havido vários arranques em falso, quando o projeto se iniciou, em 2013, envolvendo, para além da Universidade Católica do Porto, a Santa Casa da Misericórdia, que ofereceu as instalações; o Ministério da Educação e Ciência (MEC), que cedeu os professores; o Instituto de Emprego e Formação Profissional, que pagou aos formadores; e vários mecenas que asseguraram o pagamento de equipamentos e despesas de funcionamento.

A ideia inicial era que abrangesse jovens com idades compreendidas entre os 15 e os 18 anos, em situação de abandono escolar efetivo. Mas estes só chegarão neste ano letivo. Naquele primeiro ano, o MEC determinou que deveriam ser acolhidas apenas pessoas com 18 anos ou mais. E foi com base nessa regra que, com a ajuda das Comisssões de Proteção de Jovens em Risco e instituições de apoio social, foram selecionados e convidados a participar no projeto socioeducativo 20 rapazes e raparigas. Em comum, para além de terem abandonado a escola sem completar o 9.º ou mesmo o 6.º ano de escolaridade, tinham o facto de fazerem parte das 24% de pessoas da cidade do Porto que vivem em bairros sociais e “ilhas”, espaços que concentram fenómenos de violência quotidiana, tráfico de droga e pobreza, como os caracteriza Joaquim Azevedo.

Na casa do Arco Maior, aqueles 20 jovens, entre os quais Fábio, comprometeram-se a fazer um percurso de formação de 30 horas por semana, ao longo do equivalente a um ano letivo, recebendo, caso tivessem sucesso, a respetiva certificação escolar. As áreas nucleares da formação seriam Linguagem e Comunicação, Matemática para a Vida, Inglês, Cidadania e Empregabilidade, complementadas com as práticas oficinais de Restauro, Restauração e Cozinha, Artes e Ofícios e Tecnologias de Informação e Multimédia. O objetivo era ensiná-los, sim, mas promover, também, a sua autonomia e a inserção social.

No final do ano letivo, havia apenas três baixas: “um desistiu, um foi para o estrangeiro e outro foi detido”, pode ler-se no relatório. Dos restantes, dez transitaram e continuaram em formação no ano seguinte; e sete atingiram os objetivos definidos para aquele período: três obtendo a certificação do 6.º ano e inscrevendo-se para o passo seguinte; e quatro concluindo o 9.º ano.

Os dados relativos ao ano letivo 2014/2015 (em que a equipa do Arco Maior trabalhou com 29 jovens) também deixam adivinhar casos de sucesso e de insucesso. Nos estudos, mas não só: uma pessoa abandonou o projeto depois de um furto naquela casa, outra viu suspensa a frequência no Arco Maior pelo tribunal, depois de ter praticado atos de violência sobre uma companheira que participava no projeto e com quem namorava.

“O Arco Maior não é uma varinha mágica que muda bairros, famílias, situações de pobreza e de exclusão”, escreveu Joaquim Azevedo no relatório que enviou para o MEC, em 2014. Alguns dos jovens que passaram pelo projeto, no entanto, falam como se fosse.

“Mudou a minha vida”, dizia, esta semana, Bruno Filipe, de 20 anos, a horas de iniciar uma semana de estágio do Curso de Cozinha e Pastelaria no Hotel da Música, no Porto. Bruno, que tem como colega no novo curso outro ex-formando do Arco Maior, refere-se à maneira como os professores ensinam e à sua “imensa paciência”, mas, principalmente, ao facto de ali ninguém ter “desistido” dele.

“Por exemplo, no Arco eu também faltei, como fazia na escola normal. Tinha arranjado uma namorada e estava a ser difícil conciliar as coisas. Mas eles não desistiram de mim. Procuraram-me, fizeram-me voltar, conversaram comigo, importaram-se, importaram-se mesmo. Acreditaram que eu podia ser alguém”, resume. Agora, explica, também ele acredita nele próprio. E apesar de às vezes ser assaltado por dúvidas - "Três anos é muito tempo e na nova escola também já faltei..." - acredita que em 2018 terá a equivalência ao 12.º ano e uma habilitação profissional.

Bruno inaugurou o projeto, à semelhança de Fábio, que completou o 9.º ano em abril e está a aguardar vaga num curso de Turismo “para começar mais uma jornada, desta vez até ao 12.º ano”. Também este fala da "importância" do Arco e dos professores na sua vida. “Quando uma pessoa se sente sem força e sem vontade, se alguém acreditar e depositar toda a sua fé nessa pessoa, ganha-se uma confiança e uma autoestima muito forte, e isso era coisa que eu não tinha em mim antes do Arco Maior”, explicou, numa conversa através do Facebook.

Como Bruno, refere-se às faltas às aulas e ao facto de os professores os procurarem. Por o fazerem e pela maneira como o fazem: “Reparamos na sinceridade deles, porque isso dá para ouvir na voz deles e também se lê nas mensagens deles”.

Sim, não é teatro, explica nesta quinta-feira Isabel Lagarto, uma das professoras coordenadoras do projeto, enquanto aguarda na fila para comprar o passe de transportes públicos para “os meninos”, na companhia de duas jovens do Arco Maior que, a seguir, há de acompanhar ao médico. Não sabe quando acabará o dia: “Aqui não temos outra hipótese senão envolvermo-nos profundamente. Ou era assim ou não servia de nada estarmos aqui”, comenta.

Este ano, o Arco Maior acolhe, pela primeira vez, crianças mais novas e talvez seja diferente, diz Isabel Lagarto. Mas, pelo menos com os mais velhos, não costuma haver exceções: “Chegam-nos muito castigados pela vida, muito desgastados, não esperam compreensão nem carinho. Normalmente, há um momento em que nos querem contar as suas vidas, as coisas menos boas que fizeram. E é nessa ocasião que eu aproveito para lhes dizer: “Para mim, o teu passado não existe, estamos a partir do zero. De bom e de mau, só me interessa o que fizeres a partir daqui”. Também lhes diz que não agradeçam. Fá-los crer - e é verdade, assegura - que vê-los felizes é a única coisa que lhe importa.

O sentimento de proteção ali é tão forte, conta Joaquim Azevedo, que alguns dos jovens fazem por retardar a saída faltando a algumas aulas, demorando, de propósito, a atingir os objetivos. Isso, apesar de os professores que fazem parte do projeto se desdobrarem para os apoiar e encaminhar nos passos seguintes (a procura de emprego, para uns, ou a continuação dos estudos, para outros).

Fábio diz que não é o caso dele, que é verdade que dantes “não tinha autoestima”, mas que agora já não tem medo. Escolheu o curso de Turismo porque é dos que têm mais saída no mercado de trabalho, explica, e está ansioso por começar: “O Arco deu-me a chance de encarar a vida destemidamente, vou agarrar este novo desafio com unhas e dentes”. Diz que o faz pelos pais. E também por ele.

Fonte: Público

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