quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Um retrocesso sem precedentes na democratização da escola pública

O ensino vocacional, cuja generalização foi agora decretada, criará inevitavelmente uma clivagem social e um retrocesso sem precedentes na democratização da escola pública.

Se nos centrarmos apenas no ensino básico, verificamos que o ensino vocacional nasceu como experiência encoberta – nos primeiros tempos não eram sequer conhecidas as escolas onde decorria –, à revelia da Lei de Bases do Sistema Educativo, segundo a qual o ensino básico se organiza num tronco comum até ao nono ano de escolaridade. A Portaria n.º 341/2015, agora publicada, vem institucionalizar uma segunda via no ensino básico, destinada aos alunos que encontraram dificuldades no seu percurso escolar.

O conhecimento dos modos de organização dos percursos escolares adotados na Europa induz perplexidade sobre o caminho que está a ser seguido no nosso país, tanto mais que a configuração em tronco comum com oito a dez anos de escolaridade é a seguida por um grande número de países. Suscita, sem dúvida, dificuldades causadas pela heterogeneidade das populações e dos ambientes escolares. Mas sabe-se como os anos da adolescência são determinantes para o autoconhecimento e construção de uma identidade vocacional e daí a importância de evitar decisões prematuras, determinadas, em grande parte, pela origem sociocultural.

É certo que existem troncos comuns nos países do Sul da Europa, onde, apesar de sucessivos esforços e reformas, continuam a existir elevados níveis de retenção. Mas também é certo que os países do Norte, em geral com via unificada, não adotam o regime de retenções (ou quando existem são residuais) e apostam, em sua substituição, numa intervenção oportuna, logo que surgem dificuldades. Modelo bem distinto, conhecido por modelo germânico, é o que assenta na orientação precoce dos alunos com dificuldades e atrasos escolares para vias consideradas mais práticas. Esta estratégia obriga os alunos a opções vocacionais precoces, inevitavelmente marcadas pela origem social, não deixando aos jovens tempo para amadurecer.

É com grande perplexidade que se vê Portugal seguir um modelo que tem vindo a ser responsabilizado pelo “desviar” precoce de uma parte significativa dos alunos para uma via efetivamente desvalorizada! A carência de técnicos superiores na Alemanha, designadamente engenheiros, tem vindo a ser associada a este desvio precoce de vocações.

Por que fazer a rotura em Portugal com um modelo de tronco comum que se vinha progressivamente afirmando com mais qualidade e equidade, mesmo havendo ainda muito a melhorar?

Não tem sido fácil adotar a diversidade na escola pública como um valor da democracia. O sério agravamento do dia a dia escolar, provocado designadamente por restrições de carácter financeiro e ideológico, terá contribuído para a aceitação no terreno desta reforma.

A necessidade de um ensino mais prático, uma das razões invocadas para a criação desta deriva vocacional, não diz respeito unicamente a uma parte da população escolar, mas sim a todos os alunos portugueses, porque, ao investir na pertinência do trabalho escolar, assim se produzem efeitos positivos no sucesso educativo de todos os alunos. É frequente, noutros países europeus, existirem tempos significativos destinados a componentes práticas, trabalho experimental e “experiências de trabalho” para todos os alunos, durante os ciclos de orientação.

É preciso notar que a generalização do ensino vocacional, frequentado agora por mais de 26 mil alunos (ver informação importante em artigo de Graça Barbosa Ribeiro, no PÚBLICO de 11/10/2015), prescindiu de um debate indispensável na sociedade sobre as suas consequências para o futuro do país e para o agravamento das desigualdades.

Algumas escolas e professores inseridos neste modelo até poderão ter desenvolvido experiências de integração positiva, mas a generalização desta política significa sem dúvida um retrocesso na construção de uma escola mais inclusiva, mais preocupada em abrir as perspetivas de cada um e não limitar os seus futuros possíveis.

As vias profissionais, a partir do ensino secundário, devem ser uma opção tão digna como o ensino superior, mas realizada quando os alunos têm maturidade para o fazer.

Espera-se que a Assembleia da República, onde a Lei de Bases do Sistema Educativo foi aprovada, chame a si a grave situação criada pela confirmação deste tipo de ensino vocacional.

ANA MARIA BETTENCOURT

Professora, presidente do Conselho Nacional de Educação entre 2009 e 2013

Fonte: Público

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