Depois de vários anos a sentir que algo não estava bem, mas sem perceber ao certo o que era, Ana Isabel Paiva recebeu aos 40 anos o diagnóstico de Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA).
O problema acompanhava-a desde criança - ou não se tratasse a PHDA de uma condição do neurodesenvolvimento que está presente desde a infância -, mas foi passando despercebido. “Tinha um excelente desempenho na escola, apesar de não conseguir prestar atenção ao que os professores diziam, e não perturbava ninguém. A minha família era muito estruturada e contribuiu de forma decisiva para o meu percurso escolar.” Durante a faculdade, porém, os sintomas tornaram-se mais evidentes.
“Não conseguia aprender à mesma velocidade do que as outras pessoas. Tinha de me esforçar muito mais. E isso deixava-me muito frustrada." A situação não melhorou quando começou a trabalhar e entrou na vida adulta. Muito pelo contrário. E Ana Isabel Paiva foi-se sentindo cada vez mais diferente dos que a rodeavam, como explica no mais recente episódio do podcast de saúde mental “Que Voz é Esta?”.
“As outras pessoas conseguem ter um pensamento do início ao fim sem serem abalroadas por outros 50 que não têm nada a ver com o pensamento inicial. Ninguém se põe a fazer 12 tarefas em simultâneo para, no final, não concretizar nenhuma. O nosso cérebro não pára. Há um ruído gigante aqui dentro. É insuportável.”
Quando está a trabalhar, e mesmo noutras circunstâncias, tem dificuldade em gerir o tempo. “Eu tenho zero perceção do tempo. Cinco minutos ou cinco horas são exatamente a mesma coisa para mim. Não consigo ter noção de quanto tempo vai demorar cada tarefa. Também aconteceu muitas vezes estar a conduzir e chegar ao destino sem me lembrar do caminho que fiz, ou estar a conduzir e perceber que não sabia há quanto tempo não estava a olhar para a estrada", diz Ana Isabel Paiva, que vive em Palmela e trabalha numa empresa na área da qualidade alimentar.
Na “maior parte dos casos”, a PHDA mantém-se na vida adulta, explica Bernardo Barahona Corrêa, médico e investigador da unidade de neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud, em Lisboa. Manifesta-se por um “conjunto de estilos cognitivos e de características de comportamento cujo elemento central é a dificuldade em manter a atenção concentrada numa tarefa - sobretudo se essa tarefa for monótona ou longa -, a dificuldade em inibir elementos distratores que vêm dispersar a atenção que deveria estar focada nessa tarefa, a dificuldade em controlar alguns impulsos, em adiar a gratificação, em gerir o tempo, em organizar recursos.”
Estes sintomas manifestam-se sobretudo quando as crianças iniciam o seu percurso escolar, mas são “transversais” a todos os contextos de vida. Também podem surgir “entre os dois e os três anos” de idade, sublinha, por sua vez, Cristina Martins Halpern, neuropediatra na consulta de desenvolvimento do CADIN - Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil - e no serviço de neurologia infantil do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. "Nessas idades, pode haver o que se chama perturbação de irrequietude. Estamos a falar de bebés que são muito ativos e agitados, e que exigem uma supervisão constante. Há um impacto funcional no próprio bebé e na família."
Crianças com PHDA não tratada apresentam “muitos problemas ao nível do percurso escolar e das interações sociais, o que mais tarde gera problemas de ansiedade e baixa autoestima, que, por sua vez, criam um campo fértil para outros problemas na vida adulta", avisa Bernardo Barahona Corrêa. Entre esses problemas estão a depressão, a perturbação de ansiedade e o abuso de substâncias - "consumidas muitas vezes numa tentativa de autorregulação das emoções” - mas também o desemprego, a instabilidade laboral, o divórcio.
É importante, por isso, garantir que é feito um diagnóstico precoce, mas isso nem sempre acontece. Antes de perceber que tinha PHDA e iniciar o tratamento, Ana Isabel Paiva recebeu outros dois diagnósticos: depressão e perturbação bipolar. “Tive muitas dificuldades em encontrar especialistas em neurodiversidade. Senti-me muito perdida. Qualquer pessoa com PHDA que chegue à idade adulta sem um diagnóstico correto é uma pessoa extremamente resiliente, mas completamente exausta."
Bernardo Barahona Corrêa admite que há fragilidades na área do diagnóstico. “Uma parte dos psiquiatras de adultos tem pouca ou nenhuma formação em perturbações do neurodesenvolvimento. Como tal, acabam evidentemente por estar pouco disponíveis para contemplarem uma possibilidade de diagnóstico desse género.”
O tratamento da PHDA na infância baseia-se em intervenções que visam o comportamento e no desenvolvimento de estratégias com a criança, a família e as escolas, no sentido de garantir uma "melhor adaptação", diz Cristina Martins Halpern. Se for necessário, são prescritos fármacos.
Ana Isabel Paiva faz medicação hoje em dia para a PHDA. Embora sinta alguns efeitos adversos, garante que os benefícios são claramente superiores. "Sinto um alívio indescritível. O silêncio, a serenidade... A medicação não faz milagres, mas torna tudo mais suportável. Posso dizer que a minha vida começou aos 40 anos."
“Que voz é esta?” é um novo podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento vão dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, vão falar de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.
Fonte: Expresso por indicação de Livresco
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