sábado, 24 de dezembro de 2022

Maria ensina na escola onde aprendeu que ser surda não a impede de nada

Os gorros natalícios com que os alunos cobriram a cabeça sobressaem no contraste com o fundo verde. Dinis opera a câmara, em frente da qual se põe Rafael. É o mais expressivo dos cinco rapazes desta turma da Escola João Araújo Correia, em Peso da Régua. Tem olhos muito claros e gestos muito vincados. Com as mãos, repete a frase: “Larga o jogo, vem aí o Ano Novo.”

A turma está a criar um material bilingue, em português e língua gestual portuguesa (LGP), sobre “isolamento social”, para ser divulgado na página da Internet onde este agrupamento reúne materiais didácticos para alunos surdos e ouvintes. “As mãos não são só para jogar, são para comunicar” é outra das mensagens do vídeo.

“Temos visto que os jovens estão muito focados nos jogos, especialmente depois da pandemia. A ideia foi falarmos um pouco disso e de como evitá-lo”, contextualiza Maria Oliveira. É a professora dos cinco rapazes que compõem esta turma. Alunos e docente são surdos e a LGP é a sua língua materna. A professora dá hoje aulas nas mesmas salas onde aprendeu.

O PÚBLICO conheceu Maria Oliveira em 2018. Foi um dos 44 alunos que responderam ao exame nacional de Português Língua Segunda (PL2), uma prova feita especificamente para alunos surdos, que nesse ano foi realizada pela primeira vez. Com as notas desse ano, entrou na licenciatura em Comunicação e Design Multimédia, do Politécnico de Coimbra, mas não gostou da experiência.

“Fiz uma pausa. Tive de pensar melhor e percebi que o queria mesmo era ser professora de LGP.” No ano seguinte, mudou de curso, e completou a licenciatura de ensino de Língua Gestual Portuguesa na Escola Superior de Educação de Coimbra. Agora, está a fazer o mestrado, que continua a ser a qualificação mínima obrigatória para entrar na carreira docente.

No entanto, no início deste ano, de modo a responder à escassez de docentes que tem afectado as escolas, o Ministério da Educação passou a permitir que pessoas que tivessem uma licenciatura no currículo fossem contratadas pelos agrupamentos, quando não houvesse um docente disponível. A Escola João de Araújo Correia abriu, logo em Setembro, um horário incompleto, de 11 horas lectivas, com essas condições, destinado à substituição de uma professora que está em licença de maternidade.

Maria Oliveira concorreu, “porque sim”. “Nunca pensei que iria entrar. Acabei agora o curso, há colegas com mais tempo de serviço, mas como tenho uma média da licenciatura de 18 valores, fui eu a escolhida.” Quando soube que ia ser professora na mesma escola onde foi aluna ficou “emocionada”.

“Mandaste-me uma mensagem”, acrescenta Joana Silva. É uma das intérpretes de LGP na escola de Peso da Régua. Conheceu Maria no 7.º ano e hoje acompanha as suas aulas. Trabalha naquela escola há dez anos e viveu de perto a melhoria das condições de trabalho com os alunos surdos. “Há uns anos, quando tudo corria bem, eu era colocada em Outubro”, recorda. Agora, pertence ao quadro da escola.

Faltam materiais

O agrupamento João Araújo Correia é a escola de referência para alunos surdos em todo o interior Norte. Alguns dos estudantes vêm diariamente de localidades como Tarouca, a 20 quilómetros, ou Chaves, que fica a quase 90. No entanto, não integra formalmente a rede de referência para a Educação Bilingue, criada pelo Ministério da Educação em 2008.

Esta rede foi criada pelo Decreto-lei n.º 3/2008, que mudou a forma como a escola encara os alunos com alguns tipos de deficiências, concentrando nestes estabelecimentos de ensino recursos humanos – como professores de LGP, intérpretes e terapeutas da fala – e físicos para dar respostas às necessidades educativas específicas. Há 17 escolas nessa lista que, na região norte, inclui apenas estabelecimentos de ensino localizados no Porto e em Braga.

Apesar da melhoria de condições, o trabalho dos professores de Língua Gestual ainda é “muito duro”. “O ministério não nos faculta materiais, somos nós que temos de os criar”, queixa-se Maria Oliveira. Quase todos os recursos que usa na sala de aula foram desenvolvidos por si ou enquanto professora ou enquanto aluna. “Há muitos materiais que fiz com a Filipa e o Diogo, que eram meus colegas, e que continuam aqui. Isso também me ajudou a tornar a profissional que sou hoje”, recorda com um sorriso.

Maria dá aulas de LGP e Cidadania a turmas do 7.º e 8.º anos e faz algumas horas da semana no pré-escolar no mesmo agrupamento. “Adoro”, atira, em referência ao trabalho com crianças. “Eu sei o quanto as crianças surdas sofrem por às vezes os pais não terem sensibilidade e acessibilidade atempadamente e é muito importante nós estarmos nessa fase com elas. Nós podemos fazer a diferença.”

556 surdos

A Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares contabiliza 556 alunos surdos nas escolas nacionais. A grande maioria (428) são utilizadores de LGP. Há, no entanto, cada vez mais alunos que não optam por ter Língua Gestual, porque fizeram implantes cocleares que lhes permitem aprender em ambiente oralista. Nesses casos, beneficiam do apoio de terapeutas da fala e de professores de Educação Especial.

O Ministério da Educação está a preparar as aprendizagens essenciais para a LGP, disciplina curricular para os alunos surdos que a têm como a sua língua materna, e também para o Português Língua Segunda, o Português aprendido pelos alunos surdos. As duas disciplinas têm grupos de recrutamento de docentes próprios e são ministradas nas escolas de referência. (...)

Fonte: Excerto da reportagem do Público

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