segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Mais doentes ou mais conscientes?

Selena Gomez, cantora norte-americana, procurou ajuda psicológica com o início da pandemia e descobriu um diagnóstico de doença bipolar. Dwayne Johnson, conhecido como “The Rock”, aproveitou o balanço que a temática ganhou durante os confinamentos e falou acerca da depressão profunda que sofreu ainda jovem. Por cá, nos últimos dois anos, Dino d’Santiago, António Raminhos, Vanessa Fernandes ou Maro também falaram publicamente do assunto e da sua relação com doenças do foro mental (já lá vamos em pormenor). Entre tantos outros. Quer seja para figuras públicas ou para anónimos, a pandemia foi um marco na temática da saúde mental. Mas, afinal, o que mudou?

A resposta é simples: mudou a forma como nós, enquanto sociedade, olhamos para a saúde mental. Em particular, para o estigma que havia (e há, ainda que seja cada vez menor) em partilhar histórias de doença mental com a mesma naturalidade com que se afirma “parti uma perna”.

Pedro Morgado, psiquiatra, professor e investigador na Universidade do Minho, sublinha que o estigma é um dos problemas relacionados com a saúde mental que começou a ser combatido durante a pandemia. Para a estigmatização das doenças mentais contribuem, explica, o desconhecimento e a falta de literacia. E, por isso, se desde a pandemia se fala mais de saúde mental na televisão, nos jornais, nas redes sociais e até nas conversas de café, é natural que o conhecimento da população aumente. “Hoje falamos de saúde mental mais e melhor do que nunca.”

Na mesma linha de pensamento segue a psicóloga Catarina Lucas. Mas, apesar de a pandemia ter sido um marco na visibilidade da doença mental, a profissional ressalva que a consciencialização começou antes. Por volta de 2018 e 2019, refere, apareceram mais contas de psicólogas nas redes sociais, mais publicidades a focar o tema, mais artigos nos meios de comunicação. “No entanto, durante a pandemia tudo isto sofreu um aumento exponencial.”

O outro lado

Mais vozes sobre o assunto implicam, por vezes, o reverso da medalha: passagem de informação errada. Quanto aos meios de comunicação, o psiquiatra Pedro Morgado afirma que, de forma geral, a qualidade da informação transmitida é grande. “Contudo, ainda temos sérios problemas com alguns programas de entretenimento e alguns comentadores, que frequentemente passam mensagens negativas e erradas.”

A associação entre doença psiquiátrica e criminalidade – em parte também responsável pelo estigma existente – é, segundo o professor e investigador, um dos principais problemas a resolver a curto prazo, no que toca à comunicação de saúde mental.

É exatamente para combater este e outros estereótipos (e também para melhorar as condições de acesso aos cuidados de saúde mental) que o Plano de Recuperação e Resiliência prevê um investimento de 88 milhões de euros na área. Manuel Pizarro, ministro da saúde, afirmou no mês passado que a saúde mental é prioritária e que será um dos focos de preocupação do Governo, salientando a pandemia como o momento de consciencialização da sociedade para a relevância de investir em saúde mental.

O investimento referido, aliás, já tem frutos concretos, com a criação de equipas comunitárias de saúde mental. Este é um projeto que pretende criar 40 equipas (20 já estão no terreno), distribuídas pelo país, para prestar cuidados de saúde mental à população nos serviços públicos primários, como centros de saúde.

O bom e o mau do digital

Quanto às redes sociais, Pedro Morgado não se mostra tão positivo. Aí, “a regulação e moderação são mais difíceis”, diz, destacando o exemplo da rede social Twitter, com problemas desde cedo com bullying, estigma e desinformação, exacerbados com o comando de Elon Musk. A solução aqui será, realça o psiquiatra, “a União Europeia e os governos nacionais terem um papel importante na imposição de obrigações de moderação de conteúdos a estas plataformas”.

Falando de redes sociais, falamos também, muitas vezes, de figuras públicas que aproveitam cada vez mais a exposição mediática, e em particular a Internet, para falarem dos seus problemas de saúde mental e, assim, consciencializarem os seus fãs. Apesar de Pedro Morgado admitir que as personalidades com notoriedade têm poder na “construção de narrativas públicas” positivas, quando a informação é transmitida corretamente, alerta para que não se esqueça um dado essencial: “a doença psiquiátrica, como praticamente todas as doenças, tem maior prevalência entre as pessoas mais desfavorecidas socialmente”.

Neste campo, a psicóloga e diretora clínica Catarina Lucas encontra um ponto favorável à “causa”: os profissionais de saúde nas redes sociais. Destinadas a difundir informação sobre sintomas, causas e tratamentos para a doença mental, são cada vez mais as contas de psicólogos ou psiquiatras na Internet.

Considerando esta uma forma direta de fazer passar uma mensagem à população, Catarina Lucas não deixa de alertar para as generalizações. “Cada caso é um caso e eu não posso ler uma frase escrita por um psicólogo e interpretá-la de forma rígida achando que aquilo funciona para todas as pessoas de igual forma.”

Já muito de falou de saúde mental durante a pandemia, mas e agora, como estamos? A psicóloga Catarina Lucas descreve o fenómeno do pós-pandemia como uma passagem “das palavras aos atos”. Ou seja, se todas as pessoas ouviram falar bastante sobre os sinais de doença mental ou sobre os benefícios de ir ao psicólogo, neste momento, há quem esteja a efetivar esse conhecimento. “Há uma procura elevadíssima por psicólogos e psiquiatras, ao ponto de até o serviço privado estar em níveis limite.”

Dualidade de fatores

Afinal, estamos mais doentes devido à pandemia ou estamos mais conscientes das nossas doenças por via de termos mais informação? Catarina Lucas não hesita em destacar a consciencialização como o fator predominante para o aumento do número de pacientes.

Sem querer desvalorizar a quantidade de casos que começaram a ser seguidos devido a consequências diretas da pandemia, a profissional conta que, “mesmo quem chegava ao consultório pela primeira vez durante a pandemia, falava, na grande maioria das vezes, de problemas anteriores”. “Já estávamos doentes antes da pandemia, só não tínhamos as ferramentas ou o conhecimento necessário para o perceber.”

Mas, ultimamente, dentro da saúde mental, nem só de doença mental se tem falado. A profissional Catarina Lucas aponta o foco, cada vez maior, no autoconhecimento e no crescimento emocional. “Preocuparmo-nos com saúde mental não é apenas preocuparmo-nos com depressão, ansiedade patológica ou outra doença. Pode, simplesmente, ser uma vontade de aprendermos mais sobre nós próprios e vivermos um dia a dia mais tranquilo.”

Procura por autoconhecimento

Essa é, aliás, uma das mudanças que a psicóloga tem sentido no pós-pandemia, principalmente entre os jovens: há cada vez mais pacientes nas consultas à procura de uma ajuda profissional para lidar com o dia a dia e aprofundar conhecimento emocional sobre si e sobre os outros. Sem se colocar em cima da mesa uma situação patológica.

Há menor estigma, mais pacientes a querer ajuda profissional e a procurar por autoconhecimento. Chegamos ao fim da jornada de consciencialização da saúde mental? Catarina Lucas frisa que “a pandemia foi só o abrir de um longo caminho que, antes, nem sequer era visível”. Além de se continuar a combater o estigma, o futuro deve ser focado na oferta de serviço público de saúde mental, “que continua a ser deficitário, e, por consequência, os mais desfavorecidos continuam ser acesso ao apoio psicológico de qualidade”, lamenta Catarina Lucas.

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