João sentia a face dormente, deixava cair objectos, referia que os seus membros não seguiam as instruções que o cérebro lhes transmitia. Inicialmente pensou que estaria a envelhecer precocemente, mas as notícias que o seu médico trazia eram, talvez, menos animadoras: o diagnóstico era esclerose múltipla.
João sofre de uma doença que afecta cerca de 2,5 milhões de pessoas em todo o mundo, maioritariamente mulheres, frequentemente nas primeiras décadas da vida adulta. Ao longo dos anos tem-se notado um aumento do número de novos doentes com esclerose múltipla, contudo a contribuição da melhoria global do acesso aos cuidados de saúde, e o estabelecimento de critérios de diagnóstico mais precisos, serão, provavelmente, o contributo mais importante para este aumento, e não tanto um real acréscimo da sua incidência.
A esclerose múltipla é uma doença inflamatória que afecta o sistema nervoso central, caracterizada pela destruição maioritariamente episódica e progressiva da mielina, a bainha que envolve os axónios. Estes, por sua vez, são prolongamentos das células nervosas, os neurónios, que permitem a transmissão de informação para outros neurónios, músculos ou glândulas. A degradação da mielina limita, assim, o normal funcionamento dos neurónios, e os sintomas descritos pelos doentes dependem do local onde a destruição nervosa está a ocorrer em determinado momento, ou ocorreu no passado.
Quais são, então, os principais sintomas da esclerose múltipla? A perda de sensibilidade, parcial ou extensa, de um membro ou face é uma queixa frequentemente inicial, tal como é a perda súbita de visão, a fadiga e a dificuldade de concentração. Por se tratar de sintomas que se podem facilmente confundir com outras doenças, a avaliação por um médico neurologista e a confirmação do diagnóstico por métodos de imagem e, eventualmente, laboratoriais, é essencial.
A evolução da Imagem Médica, desde que Wilhelm Roentgen descobriu o Raio X no final do século XIX, passando por Lauterbur e Mansfield, que foram laureados com o Prémio Nobel da Medicina em 2003 pelo desenvolvimento da Ressonância Magnética, tem sido extraordinária. Porém, não estaremos a assistir, hoje, à maior revolução da imagem médica desde o seu início? De que modo esta transformação poderá beneficiar os doentes com esclerose múltipla?
O diagnóstico e acompanhamento de doentes com esclerose múltipla é feito por Ressonância Magnética, método que permite visualizar a localização cerebral (ou medular) dos focos de inflamação activa das células nervosas, ou as sequelas de episódios que tenham ocorrido no passado. Esta avaliação imagiológica tem sido feita pelos médicos neurorradiologistas de modo semiquantitativo, ou seja, identificando a estabilidade ou aumento do número de focos de inflamação, e a variação qualitativa do seu volume face a exames anteriores. A informação proveniente destes estudos de imagem tem sido essencial, em conjunto com a monitorização clínica, na adequação da terapêutica a instituir durante um surto (inflamação aguda), ou aquela que é modificadora da história natural da doença, ou seja, a medicação que tem a capacidade para alterar o ritmo de progressão da degeneração das células nervosas. A aplicação de algoritmos de Inteligência Artificial em estudos de Ressonância Magnética poderá, no entanto, revolucionar o paradigma actual.
Em Portugal, com recurso a Inteligência Artificial, é já possível fazer a uma avaliação imagiológica verdadeiramente quantitativa, com a determinação detalhada do número e volume dos focos de inflamação cerebral, e notar a progressão da doença ao longo do tempo com elevadíssima precisão, possivelmente antecipando mesmo os sintomas do doente. A detecção de pequenas variações de destruição cerebral, dificilmente anteriormente identificáveis pelo médico sem o auxílio de algoritmos automatizados, poderá permitir o ajuste precoce da terapêutica, e assim contribuir, de modo muito significativo, para a melhoria da monitorização dos doentes, e, desse modo, abrandar a evolução da doença.
Na vertente terapêutica tem-se notado o desenvolvimento de um número crescente de fármacos capazes de alterar a progressão da esclerose múltipla, com diferentes mecanismos de acção, eficácia, tolerabilidade e segurança. No futuro iremos, certamente, assistir ao desenvolvimento de medicamentos capazes de prevenir a neurodegeneração e promover a regeneração cerebral.
Os doentes com esclerose múltipla vão certamente beneficiar da inovação diagnóstica e terapêutica que se prevê. Na medicina o futuro aproxima-se rapidamente, renovando a esperança numa vida com menos incapacidade, mais completa e longa.
Em tempos de pandemia, importa realçar que as unidades de saúde já estão a repor a actividade clínica programada — consultas, exames e cirurgias — com a adopção das medidas necessárias para que todos os doentes tenham acesso a cuidados de saúde em tempo oportuno e em segurança.
Tiago Baptista
Neurorradiologista no Hospital CUF Infante Santo, em Lisboa
Fonte: Público
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