João, Henrique, Lia e Mafalda têm passado os dias em frente ao computador de onde agora lhes chega a voz da professora e dos colegas. O estudo passou a ser feito exclusivamente em casa. E as brincadeiras, que antes da pandemia aconteciam no recreio da escola, são agora feitas a quilómetros de distância e através de um ecrã. Além da idade, estas quatro crianças têm uma coisa em comum: terminam, no fim de Junho, o último ano do ensino primário em escolas e pontos diferentes do país. E, tal como a outros milhares de crianças, o novo coronavírus vai impedi-las de assinalar o fecho de um ciclo, porque quando transitarem para o 5.º ano podem não ficar na mesma escola, nem ter o mesmo professor, ou conviver com os mesmos colegas dos últimos quatro anos.
“O Henrique senta-se ao computador de manhã para ver quando alguém fica online. Volta e meia aparece um amigo e ficam ambos a jogar um jogo, ora aparece outro e ficam a fazer os trabalhos de casa juntos ou, quando é hora, vão todos para a aula”, descrever Inês Cortesão, a mãe, ao telefone (...). “De vez em quando pergunta-me se vai voltar à escola e a ver alguns dos amigos. Há a possibilidade de encontrar a grande maioria, mas nunca mais será naquele conforto da turma porque vão-se separar e a ligação da primária perde-se. É uma pena porque não fecham o ciclo de uma forma saudável, é online”.
Já Ana Moreira, mãe de João, que frequenta a escola primária do Agrupamento de Escolas dos Carvalhos, em Vila Nova de Gaia, diz que o filho vê os amigos todos os dias por videochamada, mas refere que “não é a mesma coisa”, até porque João diz ter saudades dos colegas e da professora. “Ele vai para uma escola nova e quer saber onde é e como será, faz muitas perguntas. Não temos abordado muito o assunto porque ainda faltam alguns meses e se falarmos de algo com muita antecedência ele fica ansioso”, explica Ana Moreira.
Os pais das crianças da turma de João têm tentado que a turma se reencontre. Ana afirma que a professora mencionou a possibilidade de um piquenique, por exemplo. “É uma turma pequena, com 16 alunos, e eles são muito unidos. A professora disse que fazia todo o gosto em que eles estivessem reunidos porque foram quatro anos juntos e eles sentem que falta ali qualquer coisa”, conta a encarregada de educação.
Também Henrique, que frequenta uma escola do concelho de Lisboa, tem tentado estar com uma parte dos colegas porque, segundo a mãe, ainda não é claro se existirão actividades nas férias. “Um grupo pequeno de mães tem tentado levar os miúdos a jardins várias vezes por semanas para que eles se vejam ao vivo e a cores, mas com todos os cuidados. A primeira vez que que se viram foi uma gritaria, foi uma coisa emocionante mesmo para nós”, diz a mãe, acrescentando que numa altura em que a tecnologia impera, tem sido cada vez mais importante realizar actividades ao ar livre.
Já a mãe de Mafalda, Idalina Abreu, diz que os meios digitais facilitam muito a comunicação, mas estar em casa desde Março não tem sido “fácil”. Mafalda, que frequenta o quarto ano no Externato Paraíso dos Pequeninos, pertencente ao grupo Escolaglobal, em Santa Maria da Feira, tem-se adaptado bem às aulas em casa, mas sente que o estudo presencial era “muito diferente”. “Ela está com alguma ansiedade, mas já lhe explicamos que em princípio este ano não regressará à escola. Até fez anos em Março e prometemos que se as coisas melhorassem fazíamos uma festa cá em casa com alguns amigos, para fechar o ciclo e celebrar”, conta a mãe. A criança de dez anos não vai mudar de grupo escolar, mas as aulas terão lugar noutro edifício e localidade e vai ter, de certeza, novos professores.
Para os especialistas, o fechar de ciclo é “essencial"
Apesar de, em muitos casos, as festas de final de ano serem algo simbólico, os especialistas ouvidos (...) defendem que é “essencial” e importante que as crianças sintam que vão fechar um ciclo no fim de Junho e que, dali a uns meses, vão iniciar um muito diferente, com outras disciplinas, mais professores e outras responsabilidades. Para tal, é importante que exista um “adeus” ou “até já” que é dito não só aos colegas, mas aos docentes e à própria escola, que pode nem ser a mesma no ano seguinte.
“Este é um tempo meio estranho e muito novo para todos, inclusivamente para os miúdos. Acho que as festas são uma coisa simbólica e os simbolismos têm importância. É uma maneira de fechar o ano e todas as escolas e creches têm uma celebração em que os alunos se preparam e se apresentam perante os pais com as coisas que fizeram no último período, e isso tem um carácter de transição, ajuda-os a terminar o ano ou o ciclo”, começa por dizer Nuno Reis, psicólogo clínico do Centro do Bebé, em Lisboa.
O especialista acredita ser possível existir um compromisso entre cumprir as regras de distanciamento e higiene a que a situação obriga e, por outro lado, permitir “alguma coisa mais do que uma festa através do ecrã”. Nuno Reis fala mesmo num regresso lento ao contacto social e a uma vida mais próxima daquilo que era a realidade antes da pandemia. “Se isso incluir fazer um ATL durante o mês de Junho ou uma festa de final de ano isso já é parte de um todo e fica a cargo dos pais e da escola”, refere.
Ana Vasconcelos, pedopsiquiatra, diz, por sua vez, que os pais têm de encontrar mecanismos para dotar os filhos de capacidades para ultrapassar uma situação que se poderá manter por vários meses e que isso tem de ser feito “com imaginação”. “Os miúdos, que são muitas vezes mais resilientes que os próprios adultos, podem com certeza adaptar-se a boas soluções que os pais arranjem”, refere a especialista. “Acho importante dizer aos pais que usem a experiência que tiveram na escola para fazer uma festa que fique na memória dos miúdos, mas tendo sempre em conta que estamos no meio de uma pandemia. Essa parte tem de ficar clara”, diz Ana Vasconcelos. E vai mais longe: "é uma boa altura para haver um diálogo entre os pais e os professores e os miúdos também ficam muito contentes se sentirem que são parte da solução”.
Há crianças que estão a lidar bem com a situação
Nuno Reis fala ainda do caso das crianças que estão confortáveis por estar em casa e que não pedem para se reencontrar com os colegas. É o caso de Lia, que também frequenta o Externato Paraíso dos Pequeninos e que se tem adaptado muito bem às aulas em casa. “Tem saudades da escola? Tem, mas se eu lhe disser que amanhã tem que voltar ela não ia querer, mesmo sendo uma criança que gosta muito de estudar e de aprender”, refere Marta Amorim, encarregada de educação.
O psicólogo clínico diz que, nestes casos, é preciso de ter respeito pela “individualidade das crianças” que não tiveram tempo de processar “tudo isto”.
Ainda assim, e apesar de se sentir bem em casa, Marta está certa de que se houvesse uma festa de final de ano, a filha ia querer participar, mas não é algo que mencione aos pais. “Quando lhe expliquei que pode não ter festa, achou tudo muito normal e reagiu muito bem à situação, uma perspectiva que pode ser diferente de outras crianças”, confessa a mãe. “Além disso, como ela vê os colegas todos os dias no ecrã não sente tanta falta e não chega a perguntar por eles”.
Nuno Reis menciona ainda que, tendo em conta o que se sabe sobre a transmissão do vírus entre crianças, se acontecerem, estas festas ou encontros não podem pôr em causa o cumprimento das regras, quer da parte dos pais, quer da parte das crianças.
Fonte: Público
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