A discussão pública do projeto de Decreto-Lei designado de “Regime Legal para a Inclusão Escolar”, que pretende substituir-se ao Decreto-Lei 3/2008, de 7 de janeiro, tem sido alvo de várias análises, quase todas elas a tecerem considerações que me levantam muitas dúvidas.
A primeira prende-se com afirmações de que a “linguagem deste documento é mais avançada e atualizada” do que a usada no DL 3/2008 e de que, no que respeita à inclusão, “está em sintonia com os documentos mais avançados e considerados ao nível internacional”. Cita-se, até, um documento publicado pela Unesco (2017), intitulado A guide for ensuring inclusion and equity in education. Não posso discordar mais.
A linguagem deste documento e a da publicação da Unesco nada têm de avançado em relação ao que há mais de duas dezenas de anos tem vindo a ser dito sobre o assunto. Já há 20 anos, num dos meus livros publicados pela Porto Editora, Alunos com necessidades educativas especiais nas classes regulares (1997), dizia o seguinte sobre o assunto: “O movimento inclusivo tende a prescrever a classe regular de uma escola regular como o local ideal para as aprendizagens do aluno com NEE. Será aí, na companhia dos seus pares sem NEE, que ele encontrará o melhor ambiente de aprendizagem e de socialização, capaz de, se todas as variáveis se conjugarem, vir a maximizar o seu potencial. Uma escola inclusiva é, assim, uma escola onde toda a criança é respeitada e encorajada a aprender até ao limite das suas capacidades.”
Também o DL 3/2008, no seu preâmbulo, diz o seguinte: um aspeto determinante da melhoria da qualidade do ensino é “a promoção de uma escola democrática e inclusiva, orientada para o sucesso educativo de todas as crianças e jovens. [...] A educação inclusiva visa a equidade educativa, sendo que por esta se entende a garantia de igualdade, quer no acesso quer nos resultados”.
Ainda, há mais de 30 anos, investigadores internacionais de grande envergadura nestas matérias têm usado linguagem semelhante. Ou seja, as “palavras bonitas” já têm barbas. Todos estamos de acordo, de tal forma que muitos de nós, eu incluído, pensamos que é tempo de deixarmos de tratar a inclusão em termos de classes inclusivas, escolas inclusivas, ou mesmo de alunos incluídos e das demais agora já consideradas verbosidades (pós-modernas?) que mais parecem pretender vender um produto a todo o custo à sociedade em geral.
O que é preciso é retirar essas “palavras bonitas” do papel onde já estão a criar bolor e pô-las a saltitar nas escolas para que estas possam efetivamente acomodar uma filosofia inclusiva que permita providenciar serviços para os alunos em risco, com necessidades educativas especiais, sobredotados e talentosos, fazendo-o de uma forma que possa proporcionar sucesso a todos os alunos. Só que esta mudança requer uma restruturação profunda que o documento ora em discussão pública parece querer tratar, embora, a meu ver, não o tenha conseguido fazer dado o seu cariz abrangente, relegando para segundo plano a educação de crianças e adolescentes com necessidades especiais.
Repare-se que o diploma nem sequer define conceitos tais como inclusão, educação especial e necessidades educativas especiais, para mencionar apenas alguns termos que deveriam merecer a nossa atenção. Mesmo o documento da Unesco, citado acima, inclui no seu glossário estes e outros termos necessários à oferta de uma educação de qualidade para todos os alunos centrada no princípio da igualdade de oportunidades.
A segunda consideração aborda “a não centração na categorização” também ela produto do “enfoque que (hoje) é dado à inclusão”. Aqui, também o meu desacordo. Todos sabemos, ou devíamos saber, que, em educação, continua a ser muito atual a discussão sobre as vantagens (ex.: A categorização promove a consciencialização e consequente compreensão da singularidade das dificuldades de um aluno; A categorização leva à intervenção, abrindo portas aos recursos; A categorização reduz ambiguidades, promovendo uma profícua troca de informações entre profissionais de educação e pais) e desvantagens (ex.: A categorização pode alterar as expectativas dos professores; A categorização pode estimular comportamentos de bullying; A categorização pode fazer baixar a autoestima do aluno) da classificação e consequente categorização no que respeita aos alunos com necessidades especiais. É interessante notar-se que nem o próprio documento alvo de discussão pública consegue fugir à categorização (algures no seu preceituado usa termos como “domínio da visão”; “surdez”; “dislexia”), embora no seu preâmbulo se diga que se afasta “a concessão de que é necessário categorizar para intervir.”
Uma terceira consideração que poderá pôr em risco o sucesso das crianças e adolescentes com necessidades especiais é a de se afirmar que a escola deve adequar-se, adaptar-se e acomodar-se em lugar de criar serviços “especiais”. Embora se perceba que haverá uma ponta de ironia nesta afirmação, o leitor menos preparado poderá não perceber que não existem serviços “especiais”, mas sim “especializados” (ex.: educacionais, psicológicos, terapêuticos, sociais, clínicos), tantas vezes absolutamente necessários para responder às necessidades dos alunos. Esta ironia pode até ser considerada uma ofensa para os profissionais que tão diligentemente prestam os seus serviços em prol do sucesso dos alunos, particularmente dos alunos com necessidades especiais (docentes de educação especial, psicólogos, terapeutas, técnicos de serviço social, clínicos).
Uma quarta consideração, bastante positiva, embora pouco ou nada evidenciada nas várias análises a que tive acesso, diz respeito ao facto de o documento agora em discussão pública ter abolido o uso da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Outro fator positivo é o estabelecimento de “uma tipologia de intervenção multinível no acesso ao currículo”, embora, a meu ver, seja necessário considerar-se uma fase experimental para que as escolas a possam vir a implementar. Contudo, tal facto não deve impedir, quando absolutamente necessário, que um aluno seja encaminhado para os serviços de educação especial (cerca de 4 a 6% dos alunos com NEE necessitam desses serviços).
Finalmente, embora esteja ciente de que haveria muitos mais aspetos do documento a analisar (ex.: funções dos docentes de educação especial; papel dos Centros de Apoio à Aprendizagem) que, por falta de espaço, me vejo impedido de fazer, gostaria de terminar afirmando que, pese embora os aspetos positivos, a proposta de decreto-lei não serve os interesses dos alunos com necessidades educativas especiais, desrespeitando, até, os direitos daqueles com problemáticas mais significativas e os de suas famílias. Poderei mesmo dizer, de uma forma construtiva, que ele parece pretender acabar de vez com a Educação Especial e, por arrastamento, com o pressuposto de uma educação de qualidade, em que impere o princípio da igualdade de oportunidades, para os alunos com NEE significativas.
Luís de Miranda Correia
Fonte: Público por indicação de Livresco
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