Aprenderam cedo a pensar mais nos outros do que em si, a tornar-se autónomos para não sobrecarregarem os pais, a ser melhores pessoas quando foram tocados pela deficiência na família. Transformaram a fraqueza em força. Mas os outros filhos, irmãos de pessoas com deficiência, nem sempre se sentem compreendidos e valorizados.
A cumplicidade entre Gonçalo Garcia e o irmão é visível em casa e na rua. As mãos dadas, enquanto caminham, e o sorriso sonoro do Rodrigo evidenciam essa ligação. Há brincadeiras que parecem caber num mundo só deles. O Rodrigo tem 15 anos e síndrome de Angelman, uma doença neurológica rara caraterizada por um atraso global no desenvolvimento, dificuldades na fala, descoordenação motora, sialorreia (baba constante), entre outras situações.
Na infância, Gonçalo, hoje com 20 anos, não gostava de ir ao parque com o Rodrigo. Todos olhavam para ele «como se fosse um bicho». Não queria que soubessem que era seu irmão. Antes de ter a noção plena do que era a deficiência na família, chegou a gozar com um menino na escola com trissomia 21. «Depois, surpresa minha, tive um irmão com deficiência! E deixei de fazer aos outros o que não queria que me fizessem. Foi um passo muito grande na minha aprendizagem como humano. O meu irmão veio ao mundo como um professor e eu sou seu aluno.»
A sabedoria para lidar com a adversidade foi adquirida após os períodos menos bons, como aquele episódio em que um colega lhe disse: «És deficiente como o teu irmão.» A autoestima do Gonçalo ressentiu-se e as notas desceram. «Desconfiava-se de um quadro de dislexia e não conseguia acompanhá-lo, porque o foco era o filho com problemas e não ajudava o Gonçalo nos estudos», diz a mãe, Paula Garcia, 59 anos. «Sinto-me culpada. Resolvi pô-lo num centro de explicações e encaminharam-no para uma psicóloga. Na altura tinha 13 anos, mas já tinha crescido muito, não se identificava com os pares, tinha mais responsabilidades do que eles, e a concentração dispersava-se por causa dos problemas em casa.»
Manuel Coutinho, secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança (IAC) e coordenador do serviço SOS Criança, explica que o olhar dos pais fica, nestas circunstâncias, centrado na criança especial: «Quando uma família tem um filho com deficiência fica fragilizada. Normalmente, o irmão mais velho sente-se numa situação complexa, de responsabilidade e sobrecarga. Os compromissos passam a ser distribuídos por todos os elementos da família, na tentativa de suprir as necessidades da criança com deficiência.» Chamadas a cooperar para equilibrar o sistema familiar, «as crianças ditas normais sentem-se em segundo ou terceiro lugar, ficam com alguma ciumeira, porque o irmão com deficiência tem mais regalias aos olhos delas», diz o psicólogo clínico.
Gonçalo tem sido o «braço direito e o esquerdo» da mãe. «O meu marido sai de casa às seis da manhã e chega às sete da tarde. O outro filho mais velho mora longe e tem a sua vida. Quando tenho assuntos para tratar, é o Gonçalo que fica com o irmão.» O jovem diz não ter «férias verdadeiras» há mais de 12 anos. «Todos os verões tenho de ficar a maior parte do tempo com o meu irmão, enquanto os meus colegas podem ir para qualquer lado.» Decidiu que teria de trabalhar o futuro com vista à estabilidade económica e vir, um dia, buscar o irmão à casa dos pais. «O meu irmão Rodrigo é uma âncora que me ajuda a ultrapassar as dificuldades. Tornei-me mais resiliente por causa dele.»
Gonçalo vai para o 3º ano de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores. E tem vários projetos na cabeça. Começou a esboçar um livro para inspirar «outras pessoas a sentirem que também são capazes» de ir mais longe, mesmo quando a vida lhes dificulta os passos. Mais, quer fomentar encontros de irmãos de pessoas especiais, para que não se sintam ilhas.
Foi num colóquio ligado à Pais em Rede, uma organização não governamental para pessoas com deficiência, que conheceu Hélder Monteiro, 25 anos, que também tem um irmão com deficiência. Ambos sentiram empatia imediata quando partilharam vivências. Agora, querem alargar esses encontros. «Toda a gente pensa que o peso de uma criança com deficiência é só dos pais. Eu e o Gonçalo chegámos a falar em criar um grupo para os irmãos desabafarem sobre a sua realidade», diz Hélder.
Uma realidade que «não é fácil». O irmão, João, tem 15 anos e sofre de distrofia muscular de Duchenne. Deixou de andar e está confinado a um par de rodas para se movimentar ou aos braços do irmão e da mãe para se deslocar. E o João já pesa 70 quilos. A mãe, Manuela Monteiro, 50 anos, diz «andar à rasca da coluna e debaixo de medicamentos». A meio da noite é o Hélder que levanta o irmão, se precisar de ir à casa de banho. A vida social é limitada porque «sabe que a mãe já não vai para nova».
Sendo ele jovem, «tem mais força». As poucas saídas têm as horas contadas, sempre a olhar para o relógio e o telemóvel. A namorada sabe que «em primeiro lugar está o João». «Se quiser passar um fim de semana fora, não posso. A minha mãe pode precisar de mim. Às vezes dizem-me para sair à noite, ir à discoteca, e eu digo que não dá.»
O que aperta o coração de Hélder, conta, é o outro irmão que têm não aceitar a doença do João, que só foi diagnosticada aos 9 anos. O pai tem problemas de saúde e não pode fazer esforços. A restante família afastou-se. «Quando o João andava, vinham cá a casa visitar-nos. Agora…», lamenta Manuela. E atira, depois do desabafo: «Uma assistente social disse-me uma vez que eu não posso ir abaixo. Se for, a minha casa também vai.» E ela lá se mantém de pé, a «governar tudo».
A família vive numa casa camarária, com a ajuda do rendimento social de inserção. Hélder já tinha terminado o 9º ano e fez recentemente um curso de soldador. A escola deixou de lhe fazer sentido, sobretudo depois de saber do problema do irmão. Tem enviado currículos e quer trabalhar «em qualquer coisa» para contribuir financeiramente para a casa dos pais.
Quando constituir a sua família, garante, «para onde for, o meu irmão vai. Se ela [namorada] quiser ficar comigo, vou ter de o levar atrás». O irmão tem-lhe ensinado muito sobre a vida: «Afastava-me dos meninos especiais até descobrir o problema do João. Nunca pensei que isto me pudesse acontecer. Agora, quando vejo pessoas na rua com limitações, vou ajudar. Mudei a forma como olho para o mundo. Vemos e sentimos a dor dos outros.»
A solidariedade é um valor presente em muitas destas famílias, constata o psicólogo Manuel Coutinho: «Os irmãos ressentem-se, numa fase inicial, mas, explicada a situação, vemos nas crianças saudáveis uma solidariedade, uma generosidade e um empenho que, por vezes, não são compreendidos pelos adultos. Estes irmãos têm um respeito muito maior pelas pessoas que são diferentes.»
Este é também um sentimento partilhado por Pedro Martins, irmão de Ana, que tem um atraso de desenvolvimento generalizado, epilepsia não controlada, imunodeficiência, e deixou de andar há dois anos, na sequência de uma queda.
Com 20 anos, mais um do que a irmã, Pedro tem vontade de fazer mais alguma coisa pelo próximo. Já esteve num lar com pessoas com deficiência, mas não esconde que ficou sem saber o que dizer ou fazer, «porque cada uma tem necessidades específicas diferentes da irmã».
Desde pequeno que foi habituado a envolver-se com naturalidade no contexto familiar. «Não vejo a minha irmã no dia-a-dia como uma pessoa deficiente. Só quando as pessoas dizem é que me lembro.» Apesar das limitações de Ana, a família tenta fazer uma vida o mais normal possível, com idas ao teatro ou ao cinema, por exemplo. Pedro recorda-se que em criança não gostava dos passeios com a irmã, porque «ficava preocupado com os olhares», tendo até vontade de «bater nas pessoas».
Os pais lembram-se que na altura em que ele entrou para a escola, a irmã foi internada com uma pneumonia grave. A professora comentou com os progenitores que o comportamento do rapaz ficou alterado e até dava mais pontapés aos colegas.
Pedro nunca sentiu que os pais o relegassem para segundo plano. «Acho que sempre deram atenção aos dois. E a atenção que dão em especial à Ana faz sentido – nunca me afetou.» O pai, Nuno Martins, confirma: «Tivemos sempre a preocupação de dar atenção aos dois nas necessidades de cada um.» A mãe, Conceição Martins, coordenadora do Serviço Pastoral a Pessoas com Deficiência da Diocese de Lisboa, diz, de forma pragmática, que «a vida é o que é». E se a vida é assim, então é para prosseguir e procurar as melhores soluções possíveis a cada momento.
Pedro, aluno universitário de Gestão, tem vontade de ficar ao lado da irmã quando for mais velho, dando-lhe as melhores condições que estiverem ao seu alcance. «Há muita coisa que me passa pela cabeça quando os meus pais morrerem. Se eu não estudar, se não tiver boas notas, vai ser muito mais difícil.» Uma pressão imposta pelo próprio para poder dar conforto à irmã no futuro.
Muitos irmãos de crianças com deficiência percebem, desde cedo, que têm de fazer pela vida. Hélder Martins, irmão de Mafalda, com síndrome de Cornélia de Lange, entendeu isso «sem tempo de adaptação». A irmã, com multideficiências, virou-lhe a vida do avesso assim que nasceu. A mãe costumava levá-lo à escola, preparava-lhe o lanche e ia buscá-lo à hora de almoço. Esses «miminhos» ficaram para trás porque a irmã precisava de outros cuidados. Recorda-se de ter 8 anos (hoje tem 40 e a irmã tem 34) e já ir ao pão pelas seis e picos da manhã.
Acordava com o despertador, fazia o pequeno-almoço e ia para a escola. Por volta dos 10, 12 anos, tinha a chave de casa e preparava o almoço (já adiantado pela mãe). Tornou-se autónomo repentinamente, assimilando tudo «naturalmente».
«Eu sempre aceitei a minha irmã como ela é. Trato-a como se fosse normal. É óbvio que tem outras caraterísticas e dificuldades, mas tento fazer com ela o que os outros irmãos fazem, apesar de não saber o que é ter um irmão normal.»
A vida passou a ser toda em função de Mafalda, delineando um horizonte relativamente estável para ela, com conforto e segurança. Hélder fez o 2º ano de Direito e é funcionário público. Tutor da irmã desde os 25 anos, acabou por ter de a matricular num colégio onde está durante a semana.
Os pais, Manuel e Celeste Martins, justificam essa tomada de decisão, «por não serem novos, pelos problemas na coluna, braços, cabeça e tudo». Ao fim de semana e feriados vão buscá-la. Ora está com os pais ora com o irmão e a cunhada. «A gente sabe que o nosso filho nunca vai ter uma vida independente», diz a mãe. «Tem sempre a irmã. Eu tenho-lhe dito: “Fazes aquilo que tens a fazer da tua vida, porque a tua irmã, por enquanto, é problema nosso.”» Hélder considera que a responsabilidade também é dele. Que é parte integrante da vida da Mafalda. E que o afeto não tem deficiência.
Fonte: Notícias Magazine
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