A transmutação dos outrora poderosos modelos psicológicos tem vindo a evidenciar-se nos últimos decénios. A psicanálise clássica converteu-se em “lacanianos”, “bionianos”, “grupanálise” e o “behaviourismo”, rapidamente impregnado pelo cognitivo, resvalou para outros cenários, como o “mindfulness”. Esta atração pela serenidade do budismo tornar-se-ia uma nova moda: “Viver em consciência plena o presente.” Ao evanescimento das explicações psicogénicas sucederam-se, por vezes em frenesim, os modelos neurobiológicos. As respostas estariam nos neurotransmissores cerebrais ou nos genes. O hedonismo explicado pela dopamina. O amor pela oxitocina. O pânico pela serotonina. A bipolaridade e a esquizofrenia por mutações genéticas com culpas para o DNA. Tudo o mais se afiguraria irrelevante. Eis o cérebro, já não a mente, em toda a sua pujança.
É inequívoco que a investigação a nível das neurociências tem trazido avanços no conhecimento, mas como acontece frequentemente perdeu-se a visão de conjunto. O Homem como pertença de um Sistema. Onde estão os outros, o ambiente, a família. “O maior erro que se pode cometer no tratamento das doenças é haver médicos para o corpo e médicos para o espírito, quando não se pode separar uma coisa da outra... Mas é precisamente o que acontece. Por isso, tantas doenças lhes escapam. Nunca vêem o todo. É a este todo que devem prestar atenção, porque quando o todo se sente mal é impossível que uma parte deste todo seja sã” (Platão, séc. IV-V a. C.).
Sabemos que muitos neurocientistas trabalham no fio da navalha, nos institutos e nas universidades, amargurados na ânsia de publicar rapidamente as suas pesquisas em revistas de nomeada e com a permanente necessidade de obtenção de fundos, significando isso muitas vezes a sobrevivência das equipas. Há mesmo especialistas em inventar trabalhos de investigação e em sondar fontes de financiamento. Da União Europeia, da Noruega, da Islândia, do Liechtenstein, ou seja lá de onde for. Não surpreenderá que a aspiração dos autores seja sempre ir além das triviais conclusões do “frio em Novembro, Natal em Dezembro”. Mesmo comummente dispersos por dezenas de investigadores, por exemplo em “network” de consórcios internacionais, persistirá o sonho de glórias não efémeras.
O poder inebriante do dinheiro subverte gradualmente aquilo em que muitos dos médicos, romanticamente, quiçá, acreditam ser o seu papel predominante e essencial na sociedade. É assim que a economia invadiu algo tão nobre como o exercício da medicina, visível no conceito propalado: “A saúde é um negócio.” Há muito que na exploração deste filão está instalada a indústria farmacêutica, uma das mais proveitosas no mundo, com lucros superiores aos mercados das armas e das telecomunicações. Só para se ter uma ideia, num sinótico escrito cru, pelo menos cinco grandes casas farmacêuticas “valem mais financeiramente do que o nosso país” (dos jornais, 15 Janeiro, 2017). E se a saúde, como se diz, é mesmo um negócio — ao contrário dos que pugnam por uma não mercadoria e um natural direito de cidadania, uma conquista do pós-guerra na Europa —, não espantará a proliferação de unidades de saúde privadas, principalmente nas grandes cidades com mais poder de compra, tendo por detrás as seguradoras da área. Todo este “tsunami” na condição humana arrisca transformar hospitais em fábricas e faculdades em laboratórios. Precisamente por isso, nem sequer há hoje pudor no uso do vocábulo produção. Tal e qual. Assim, descabelado. Ao menos, que fosse proclamada a palavra produtividade, teria um toque menos agressivo, pintalgada de uma certa erudição. Alguns teóricos do neoliberalismo sonham mesmo ver entrar os médicos ao trabalho de fato-macaco e lancheira na mão. Depois de os nomearem de funcionários, com mais um subtil empurrãozito não será difícil de os chamarem de colaboradores ou mesmo de operários. Aqueles serventuários imaginam sofregamente, já sem uma envergonhada ou secreta excitação, ir ao mercado escolher os médicos, como antigamente se contratavam os jornaleiros nas praças do Alentejo para as mondas e as ceifas. À medida.
A psiquiatria tecnológica e robótica, com o atrevimento dos seus algoritmos matemáticos binários, ou seja, a fria linguagem dos computadores, já está aí a bater-nos à porta. Mesmo para algo tão complexo como emoções e pensamentos. Ou, como ecoariam os poetas, dispersões, mágoas e labirintos. Sem quaisquer falas ou olhares, colher-nos-ão urina e saliva, tirar-nos-ão sangue, um inquérito em computador de “touch screen” com escalas psicométricas que pontuam “scores” fará o diagnóstico e uma máquina servirá a receita dos comprimidos. Ninguém nos escutará, ninguém nos consolará. Mas não catastrofizemos. Sempre poderemos chorar virados para o espelho. Ou talvez, afortunadamente, em casa, o cão labrador nos possa lamber as lágrimas. Uma publicidade de uma famosa clínica de doenças nervosas publicitada na imprensa cor-de-rosa exibirá desempoeiradamente: “Procura um psiquiatra? Não fique no passado, seja moderno! Consulte os nossos neurocientistas, os verdadeiros mecânicos do cérebro.”
Acordo do pesadelo. Afinal, por quem os sinos dobram?
Carlos Braz Saraiva
Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra
Fonte: Público
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