Encontra-se em consulta pública uma proposta de legislação que visa substituir o decreto-lei 3/2008, diploma que organizava os apoios que os alunos com necessidades educativas especiais usufruíam na escola regular. Sendo eu presidente da Pró – Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial, devo dizer, à partida, que a Pró – Inclusão se encontra ainda em fase de auscultação dos seus sócios e tem recebido múltiplas contribuições que informarão a sua posição que será tornada pública logo que que possível. Este artigo é, pois, da minha estrita responsabilidade pessoal e fruto do meu trabalho e reflexão de mais de 40 anos no âmbito da Educação Especial e Educação Inclusiva.
Apontaria em primeiro lugar aspetos de toda esta consulta (e deste documento) que me parecem positivos e pontos de partida que podem balizar uma boa discussão. Antes de mais, saliento o facto deste documento – cuja discussão estava inicialmente circunscrita ao fim do mês de agosto – estar em discussão pública até fim de setembro. Este alargamento do prazo é um sinal de abertura e de lídima vontade do Governo de suscitar uma melhor consciência e reflexão sobre o texto proposto. A quem desvaloriza este assunto, lembraria que o anterior documento (decreto-lei 3/2008) não teve sequer qualquer consulta pública.
A linguagem que é usada nesta proposta de revisão do decreto-lei 3/2008 é bem mais avançada e atualizada do que a do documento anterior. O enfoque que é dado à Inclusão como uma aposta de toda a escola, a não centração na categorização das dificuldades dos alunos, a perspetiva de uma escola que se possa adequar, que se adapte e se acomode em lugar de criar serviços “especiais” está em sintonia com os documentos mais avançados e considerados ao nível internacional sobre Inclusão. Lembro só a título de exemplo o excelente A guide for ensuring inclusion and equity in education publicado pelo setor educativo da UNESCO no mês passado. Pessoas haverá que dirão que são só palavras bonitas mas eu, decididamente, prefiro que a legislação use palavras bonitas do que palavras feias…
Outro aspeto que considero positivo é a criação dos Centros de Apoio à Aprendizagem. Olhar para o apoio à aprendizagem sem restringir este apoio aos alunos “do costume”, isto é, àqueles que se prevê e quase se tem por certo que terão dificuldades, é uma medida que pode ter um grande alcance na melhoria da educação e das aprendizagens. Sabemos que quase todos os alunos podem ao longo da sua vida escolar apresentar dificuldades que, sendo atalhadas precoce e competentemente, poderão ser ultrapassadas. Estes Centros, a funcionarem de forma a honrarem o seu nome, são excelentes apoios e suportes para que todos tenham sucesso na escola.
A existência de três níveis de apoios – universais, seletivos e adicionais– é também, por mim, considerado como um aspeto de melhoria em relação ao documento anterior dado que deve permitir combater “as gavetas” em que costumamos destinar para os alunos com dificuldades. Estas medidas – principalmente se não forem consideradas estanques e, pelo contrário, interdependentes – poderão ajudar a encontrar respostas flexíveis para casos de alunos que não são – nunca são! – padronizados.
Penso também que há aspetos desta proposta que merecem alguma ponderação, propostas construtivas e de discussão. Trata-se sobretudo de explicitar e precisar múltiplos aspetos que pela sua pouca clareza podem alimentar dúvidas e até mesmo opiniões catastrofistas.
Referir-me-ei a dois aspetos que cuja maior clarificação me parece importante para que se disponham de dados suficientes para discutir este texto com propriedade. Antes de mais, a clarificação das funções dos Centros de Apoio à Aprendizagem. Seria importante precisar se estes Centros vão continuar a apoiar alunos com dificuldades complexas e como é (com que estruturas, com que pessoal, com que recursos) que estes Centros vão funcionar. O bom funcionamento destes Centros está dependente de um conjunto de recursos cuja melhoria e aumento não deveriam ser negados à partida. Colocar uma fasquia de “se não implicar aumento de recursos” é um ponto de partida que limita o horizonte das desejadas alterações. Falamos por exemplo do desejável reforço das equipas multidisciplinares e dos reconhecidamente escassos recursos que os “Centros de Recursos para a Inclusão” dispõem presentemente para responder às necessidades das escolas. Estes Centros devem sentir-se com confiança para contribuir para que nenhum aluno seja deixado para trás.
Um segundo aspeto diz respeito ao estatuto dos Professores de Educação Especial (PEE) em todo este processo. Criar uma barreira, uma incompatibilidade entre os PEE e a Inclusão é um péssimo serviço prestado à Inclusão. No nosso país, os PEE têm sido fundamentais para que as nossas escolas regulares tenham melhorado o seu sucesso. E são fundamentais porque estabelecem uma ponte indispensável entre os serviços técnicos e clínicos e os serviços educativos. Compete afirmar mais uma vez que as escolas não são hospitais nem clínicas: as escolas precisam de conhecimento e intervenções técnicas que sirvam a educação e não é a educação que serve para apoiar intervenções clínicas. Os PEE são ainda essenciais para o trabalho direto com os alunos (quem o faria quando os professores do ensino regular se sentem incapazes de o fazer…) e ainda para um indispensável apoio de consultoria e diferenciação curricular à escola, à gestão e aos professores. Precisamos de clarificar melhor o papel dos PEE antes de mais porque são professores e ainda porque são recursos fundamentais de apoio a uma escola que almeja ser equitativa e inclusiva.
Compreenderão os leitores que não é este o espaço para entrar em mais detalhes sobre a apreciação desta proposta. Como disse antes, mais análises serão publicadas e estou crente que poderemos, com esta formidável mobilização, chegar ao melhor documento que, face à condição do nosso país, das nossas escolas, dos nossos profissionais podemos almejar. Discutir um novo normativo é um exercício difícil: rapidamente nos adaptamos a funcionamentos com os quais, mesmo que os consideremos sofríveis, nos tornamos familiares. Até ao presente tenho testemunhado intervenções e posições corajosas de quem se coloca ao lado do documento e de quem lhe faz críticas. Todas estas pessoas sabem de cor (isto é: “de coração”) que esta lei tem de ser aquela que ajudasse de forma competente e humana os nossos filhos na escola quando eles tiverem dificuldades.
David Rodrigues
Presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial; Conselheiro Nacional de Educação
Fonte: Público
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