Os pais de crianças com algum tipo de deficiência enfrentam uma das batalhas mais árduas que a vida pode confiar a qualquer ser humano. Ora, entre as problemáticas com as quais já trabalhei, as Perturbações do Espectro do Autismo (PEA) representam, sem margem para dúvida, uma das realidades mais complexas e extenuantes, quer do ponto de vista físico, quer do ponto de vista mental.
Importa começar por dizer que estamos perante uma síndrome ainda insuficientemente estudada (como, de resto, quase todas as que se relacionam com o desenvolvimento do enigmático cérebro), tendo apenas sido referenciada, pela primeira vez, durante a II Guerra Mundial (Leo Kanner, 1943 / Hans Asperger, 1944), embora o conceito já tivesse sido introduzido por Bleuler em 1911 (Ana Saldanha – O jogo nas crianças autistas, Lisboa, Coisas de Ler, 2014, p. 45).
Atualmente, as PEA continuam a não ter cura e em cerca de 75% dos casos estão associadas à deficiência mental, sendo que ainda não existe um levantamento estatístico rigoroso do número de casos existentes em Portugal. Os números já conhecidos revelam-se, porém, assustadores, para todos aqueles que veem este nome ligado ao que mais desejaram na vida.
De facto, aceitar que um filho nosso tem problemas não é um processo fácil. Trata-se, contudo, de uma etapa decisiva para que possa depois ser implementado um programa de intervenção eficaz, que vá ao encontro das reais necessidades da criança, tal como ela é e não como os pais um dia desejaram que fosse. Vários investigadores chegam, de resto, a equiparar este doloroso período de aceitação da realidade a um processo de luto: o filho imaginado, desde logo, quando ainda se encontrava no ventre da mãe, “morre”, para poder aparecer no seu lugar a criança que, de facto, temos nos braços. Uma etapa, pois, incontornável, que tem de ser ultrapassada de modo positivo, sob pena de deixar mazelas para o resto da vida, sobretudo no elo mais frágil: a criança.
Talvez o autismo seja ainda mais difícil de aceitar do que a maioria das “incapacidades”, porque, em muitos casos, a criança parece desenvolver-se de um modo perfeitamente “normal” até por volta dos 3 anos, momento a partir do qual começa, inesperadamente, a regredir, perdendo várias das faculdades/competências já adquiridas. A preocupação com o facto de a criança não conseguir falar é, regra geral, um dos sinais que mais preocupa os pais e os conduz à procura de respostas junto dos especialistas. Um caminho complexo que, depois de iniciado (com muita dor e receio…), apresenta sempre um desfecho imprevisível.
Quase sempre, o diagnóstico – por volta dos 4 anos – cai que nem uma bomba sobre a cabeça das famílias. Com ele, inicia-se uma dramática luta de resistência, ao longo da qual – importará reconhecê-lo – nem todos os casais conseguem permanecer unidos (seria importante conhecer, de um modo fidedigno, o número de divórcios também associados a estas matérias). Não raramente, os pais sentem-se sós, desgastados, amargurados e ansiosos, o que pode originar episódios de revolta, incluindo contra os profissionais da educação. De resto, sejamos honestos, é ainda incipiente o trabalho de efetiva articulação que existe entre as escolas portuguesas e as famílias.
De um ponto de vista prático, escolas e famílias permanecem ainda, em grande parte, de costas voltadas, atribuindo-se mutuamente culpas por tudo e mais alguma coisa. Ora, no caso das crianças consideradas como tendo Necessidades Educativas Especiais esta rutura assume consequências ainda mais graves. Faltam-nos, por conseguinte, efetivos projetos de intervenção psicopedagógica junto de famílias nucleares. Falta-nos construir uma Escola de pontes, onde pais, professores e todos os demais profissionais possam colaborar de um modo regular, pensando única e exclusivamente no desenvolvimento integral dos mais novos, procurando soluções em conjunto que permitam rentabilizar todos os momentos da vida da criança, partilhando humildemente dúvidas e inquietações. Faltam-nos pontes e, sobretudo, uma cultura de humildade, onde todos estejam predispostos a aprender...
De um modo muito sintetizado, poderá dizer-se que a criança portadora de uma PEA apresenta problemas de interação social, de imaginação e de comunicação (podendo mesmo nem sequer falar). Poderá preferir isolar-se a ter de conviver com os seus pares, apresenta comportamentos repetitivos (estereotipias), que podem, por exemplo, passar pelo obsessivo interesse em rodopiar todos os objetos que encontra pela frente ou alinhar os brinquedos sempre na mesma posição/repetir invariavelmente as mesmas rotinas ou abanar as mãos. Para além destes comportamentos autorreguladores, poderemos ainda falar de atos de auto e heteroagressão, que habitualmente podem interpretar-se enquanto manifestações da criança para obter rapidamente o que deseja (comportamentos funcionais) ou de episódios de riso incontrolado, que podem ser interpretados pelo adulto como atitudes desafiadoras, mas que, por vezes, mais não são do que comportamentos de autoestimulação ou até de simples manifestações de ironia pela falta de expectativas em relação às suas potencialidades. Acrescentem-se ainda episódios de birra e choro frequentes, uma grande dificuldade em realizar novas aprendizagens, interpretar expressões faciais ou aceder a contextos diferentes do habitual (por exemplo, sair à rua ou frequentar um local desconhecido). O desvio sistemático do olhar e a necessidade de isolamento são talvez as duas características mais conhecidas, mas importa não esquecer que por trás deste conceito (PEA) se esconde uma panóplia extremamente diversificada de situações complexas, pois, de facto, cada caso é sempre um caso, daí que as generalizações sejam muito perigosas. Existem, de resto, um conjunto de representações amplamente divulgadas (nomeadamente pela literatura e pelo cinema), que, no meu entendimento, nem sempre correspondem à realidade subjacente a esta problemática. Assim, a título ilustrativo, nem sempre a criança autista sente desprazer no contacto com o outro – tem, isso sim, grande dificuldade em estabelecer relações afetivas, compreender gestos simbólicos ou sentidos metafóricos, pois o que é intuitivo para a maioria das crianças precisa, no caso do autista, de ser inicialmente explicado e racionalizado, para que possa depois ser interiorizado. Muitas vezes, a criança com autismo não brinca porque, pura e simplesmente, não sabe fazê-lo, não percebe como chegar ao outro, não possui ferramentas para compreendê-lo (empatia) e, por isso, assume comportamentos pouco apropriados, mas que são, frequentemente, a sua forma de dizer “olhem para mim… eu também quero brincar!”. Além disso, o desvio do olhar não significa, de todo, que a criança com autismo não observe o que se passa em seu redor. Bem pelo contrário! Por vezes, existe mesmo uma hipersensibilidade que leva estas crianças a “ler”, em poucos instantes, de um modo quase automatizado, os ambientes sensoriais/emocionais envolventes. E essa hipersensibilidade pode também estender-se ao modo como se percepcionam determinados cheiros, ruídos, luzes, texturas que se acumulam vertiginosamente nos seus cérebros e os conduzem a um momentâneo estádio de insuportável confusão e sofrimento. Um estado de sobre-excitação que os faz desejar ardentemente o refúgio do silêncio. A este propósito, registe-se que as estereotipias (v.g., bater as mãos) constituem, muitas vezes, uma forma que a criança encontrou para se ajudar a si mesma, tal como o condutor tem necessidade de fechar os olhos quando se vê surpreendido com os máximos de um veículo que circula em sentido oposto. Outrossim, a essa hipersensibilidade poderemos associar outras características, que – se corretamente exploradas pelos vários profissionais – poderão ser pontos fortes importantes da criança com autismo: memória visual claramente acima da média e necessidade de respeitar regras, logo menor predisposição para o erro (o ser humano dito “normal”, à medida que se sente confiante na realização das suas tarefas, tende a saltar etapas, o que aumenta exponencialmente a probabilidade de erro).
Sendo uma problemática ainda sem cura, que afeta, sobretudo, o sexo masculino (numa proporção de, aproximadamente, 3 a 4 para 1), existe, contudo, um conjunto de programas de intervenção educativa que podem fazer toda a diferença, sendo que um dos mais conhecidos é o modelo estruturado TEACCH (Treatment and Education of Autistic and Related Communication Handicapped Children). O desenvolvimento e a implementação de programas de comunicação alternativa pode também constituir outra importante via para dotar a criança com autismo de uma maior autonomia e bem-estar, ao mesmo tempo, sublinhe-se, que estimula o desenvolvimento regular da fala (métodos complementares). De resto, as últimas pesquisas científicas têm trazido algumas esperanças, sendo que não posso deixar de destacar esta notícia que o Público divulgou recentemente: “Foi possível reverter sintomas do autismo em ratinhos adultos” (19/02/2016, p. 24). É mais uma luz num mar imenso de escuridão, mas importa não deixar de ter os pés assentes na terra, pois é pernicioso vender falsas expectativas a famílias particularmente fragilizadas por um combate extremamente desgastante. Um exemplo concreto: por vezes, em determinadas palestras que publicitam uma determinada metodologia de intervenção em detrimento de outras são apresentados um conjunto de casos de grande sucesso, silenciando – consciente e deliberadamente – os que não tiveram assim tanto êxito…
Pese embora todos os avanços já verificados (e, nestes casos, os pequenos passos são sempre grandes vitórias), para muitas famílias, a aproximação dos 18 anos e o fim da escolaridade obrigatória trazem consigo uma angústia ainda maior, pois, frequentemente, as instituições de acolhimento não conseguem dar resposta aos inúmeros pedidos que lhes chegam às mãos. Muitas vezes, não resta aos pais, já envelhecidos, ficarem em casa com os filhos, não raramente muito violentos e no auge das suas forças físicas. Uma situação verdadeiramente dramática e que deita por terra todo o trabalho e o investimento que o Estado dito “inclusivo” desenvolveu enquanto o jovem esteve na Escola. Depois, importará perceber até que ponto a institucionalização destas pessoas representa, de facto, a melhor opção para o seu bem-estar físico, mas, sobretudo, mental…
Assim, no momento em que se celebra o “Dia Mundial da Consciencialização do Autismo” (2 de abril), gostaria de dedicar este breve texto a todas as famílias que enfrentam, no seu dia-a-dia, esta complexa realidade. De uma delas, anónima, ouvi ainda recentemente um desabafo, no decurso de uma palestra dinamizada em Lisboa: “O nosso menino tem autismo. Foi diagnosticado há 3 anos. E o autismo foi a melhor coisa que aconteceu na nossa vida. O autismo foi a melhor coisa que aconteceu na nossa vida”. É uma lição de amor – incondicional – que dificilmente poderei esquecer.
São, de facto, famílias especiais, que ainda no passado recente, sublinhe-se, chegaram a ser apontadas como as principais responsáveis pela desordem neurológica dos filhos (teorias psicogenéticas, das quais parece ter sobrado a infeliz expressão “mãe-frigorífico”). Na verdade, trata-se de famílias que ainda hoje mereciam outro tratamento por parte de quem nos governa, mas também de todos nós, enquanto simples cidadãos, nos momentos mais banais do quotidiano (basta estar atento…).
Em abril, mês da conquista da liberdade, vale a pena reflectir nas ditaduras (pessoais e sociais) que ainda não derrubámos. É, afinal, para as identificar, compreender e tentar combater que ainda continuo a escrever.
Por Renato Nunes
PS – Agradecimento à professora Ana Teixeira a produção e cedência da magnífica ilustração que acompanha este texto.
Fonte: Recebido por correio eletrónico
Sem comentários:
Enviar um comentário