quinta-feira, 13 de junho de 2013

"O sintoma não é a lesão cerebral a falar, é o resto do cérebro a falar"


Uma técnica não cirúrgica, que consiste em aplicar um campo magnético a determinadas regiões do cérebro humano, tem permitido obter resultados notáveis, em particular no tratamento de depressões graves - e também, a um nível mais experimental, numa série de perturbações neurológicas e psiquiátricas. 
O neurocientista Álvaro Pascual-Leone é um dos pioneiros mundiais do desenvolvimento da técnica de "estimulação magnética transcraniana" - TMS na sigla em inglês. Nascido em Espanha, é professor de Neurologia na Universidade de Harvard, nos EUA, onde dirige o Centro Berenson-Allen de Estimulação Cerebral não Invasiva. A TMS foi aprovada em vários países para o tratamento da depressão resistente à medicação e os seus efeitos terapêuticos estão a ser testados nas doenças de Alzheimer e de Parkinson, no autismo e numa série de perturbações neurológicas e psiquiátricas.
Nos últimos 25 anos, o potencial terapêutico da TMS tem estado no centro das pesquisas de Pascual-Leone, que, na semana passada, deu uma conferência na Fundação Champalimaud, em Lisboa. Não basta saber onde se situa uma lesão cerebral, diz o cientista, porque essa lesão não está isolada. Está inserida na complexíssima rede de interligações neuronais do cérebro humano e o seu impacto é muito mais lato. Se não, como explicar que certas lesões cerebrais, que destroem áreas não visuais do cérebro, provoquem alucinações visuais?
Pascual-Leone conversou (...) sobre os "espetaculares" resultados obtidos com a TMS. E falou também do seu receio de ver uma técnica semelhante, a TCS (estimulação elétrica transcraniana) - que tem vindo a ser apregoada como capaz de melhorar as capacidades cognitivas humanas, da memória à coordenação motora, passando pelo raciocínio matemático -, vir a ser prematuramente utilizada por pessoas saudáveis com consequências imprevisíveis.

O nome "estimulação magnética transcraniana" parece ficção científica. O que é exactamente?
Consiste em introduzir uma corrente elétrica no cérebro sem recorrer à cirurgia, por exemplo para "desligar" temporariamente uma dada área cerebral e determinar se ela é ou não necessária à produção de um comportamento ou de um sintoma de doença. E também nos fornece a oportunidade de alterar a atividade de uma área cerebral para melhorar o estado de um doente.

Foi um dos pioneiros desta técnica?
Sim, podemos dizer que fui. Participei no desenvolvimento do primeiro aparelho de estimulação magnética transcraniana que permitia fazer uma estimulação repetitiva. Para se conseguir desligar uma área cerebral ou controlar a sua atividade, é crucial estimular essa área múltiplas vezes, com impulsos repetidos.

Como se aplica concretamente a TMS?
Segura-se, por cima da cabeça da pessoa, um dispositivo parecido com uma grande colher de plástico que contém uma bobina de cobre e faz-se passar uma grande quantidade de corrente elétrica pela bobina. Não há contacto elétrico entre o dispositivo e a pessoa, mas o impulso de corrente, que é muito intenso e muito breve, gera um campo magnético que atravessa a pele e o crânio até ao cérebro. E o cérebro, que é um fantástico condutor elétrico, funciona como uma espécie de antena: o campo magnético induz no cérebro uma corrente elétrica que estimula as células cerebrais a disparar impulsos nervosos e promove, por exemplo, um dado comportamento. Assim, se o alvo da TMS for uma certa área motora, a mão da pessoa vai fazer movimentos involuntários sob o efeito da TMS. E quando fazemos repetidamente as células dispararem desta forma controlada, a sua propensão ulterior a dispararem muda. Estamos portanto a alterar a atividade cerebral de forma controlada.

Isso não tem efeitos indesejáveis?
Tudo tem um custo. Se a estimulação for feita de forma inadequada, pode provocar comportamentos indesejáveis. Alguns efeitos são ligeiros e outros mais graves. Por exemplo, a aplicação do estímulo faz tremer alguns músculos e provoca uma sensação semelhante a pequenas pancadas, podendo causar dores de cabeça. Nos casos extremos, podem surgir convulsões. Mas já desenvolvemos diretivas de segurança que, se forem respeitadas, tornam a técnica muito segura.

Usa a TMS em aplicações clínicas. Há muitos doentes a fazer TMS?
Sim. Só nos Estados Unidos, há cerca de 550 clínicas (e no resto do mundo, outras tantas) que usam a TMS para uma série de indicações. A principal é o tratamento da depressão. Foi aprovada numa série de países - do Canadá à Austrália e ao Japão - e em 2008 foi aprovada nos EUA para o tratamento da depressão. Já agora, não tem nada a ver com eletrochoques. Trata-se de alterar a atividade de uma região muito específica do cérebro de forma muito controlada.

E além da depressão?
Também pode ser usada em pessoas que sofreram uma lesão cerebral que as deixou incapazes de falar normalmente [afásicos], para determinar quais são as partes do cérebro que estão a compensar os efeitos da lesão e ajudá-las a recuperar a fala. Na realidade, é possível usar a TMS para estimular toda uma série de circuitos cerebrais, associados a perturbações diferentes. Estimulando outras áreas e com parâmetros diferentes, pode promover a recuperação da função da mão, ou da marcha, ou da coordenação da marcha - ou até do pensamento. É possível ajudar doentes que sofrem de demência estimulando os circuitos cerebrais envolvidos na memória. E quando certos circuitos cerebrais estão a funcionar mal e isso provoca sintomas psicóticos ou alucinações, podemos aliviar esses sintomas diminuindo a atividade nesses circuitos com a TMS.

Como é que determinam qual a área cerebral a estimular?
Esse é o grande desafio. À partida, temos uma ideia, graças à massa de resultados obtidos pelos neurocientistas por ressonância magnética funcional, da possível identidade do circuito em causa. Numa segunda etapa, "arrefecemos" esse circuito durante uns minutos com a TMS para ver se ele está de facto em causa nos sintomas. Mas esta não é uma técnica "tamanho único". Precisamos de informação ao nível de cada pessoa, sobre o funcionamento do seu cérebro e sobre como a estimulação altera esse funcionamento. Por isso, numa terceira etapa, combinamos a TMS a ressonância magnética funcional ou a eletroencefalografia, que nos permitem monitorizar em contínuo a alteração da atividade cerebral de cada doente e ajustar a estimulação.

A área cerebral a estimular para aliviar sintomas como alucinações pode não ser a área onde está a lesão?
Pode. Quando há uma lesão e ela provoca alucinações, o que estamos realmente a ver é como o resto do cérebro está a lidar com essa lesão. Quando uma lesão provoca uma perturbação da fala, o sintoma não é a lesão cerebral a falar, é o resto do cérebro a falar. Representa o impacto da lesão sobre o resto do cérebro. De facto, a localização da lesão é importante, mas não chega para explicar os sintomas dos doentes. Felizmente, hoje temos técnicas que nos permitem "interrogar" o resto do cérebro.

Quando dura o tratamento?
Para obter um efeito terapêutico na depressão são precisos uns 30 minutos diários de TMS durante quatro a seis semanas. Por cada mês de tratamento, os efeitos benéficos duram cinco meses. Embora sejam precisos mais estudos para o confirmar, pensa-se que o facto de ativar repetidamente um circuito faz aumentar a eficácia das ligações cerebrais em causa (através de um mecanismo que os neurocientistas chamam de "plasticidade" cerebral), induzindo alterações que se tornam sustentadas. Mas não permanentes: a patologia subjacente acaba por neutralizar o efeito benéfico. Contudo, é possível "refrescar" o tratamento para manter o efeito.

Qual é a taxa de sucesso da TMS nas depressões que não respondem aos medicamentos?
Os resultados são bastante espetaculares. Trata-se de casos que não respondem à medicação e em que as psicoterapias falharam e sabemos que a probabilidade de estes doentes responderem a qualquer outro medicamento é de apenas uns 5%. Em casos tão graves como esses, pode recorrer-se aos eletrochoques. De facto, cerca de 70% desses doentes respondem aos eletrochoques. Mas é um tratamento com muitos efeitos indesejáveis - problemas cognitivos e outros.
No caso da TMS, 68% dos doentes respondem ao tratamento - e 38% passam para um estado que já não é considerado depressivo. Ora, face aos 5% de sucesso com a medicação, 38% é uma proporção gigantesca, muito próxima das taxas de remissão através de eletrochoques, mas sem os efeitos secundários. Em números absolutos, isso significa que atualmente, nos Estados Unidos, entre 15 e 20 doentes com depressões praticamente intratáveis entram em remissão cada dia graças à TMS. Acho que a TMS é uma ferramenta que tem o potencial de transformar a neuropsiquiatria.

Poderia ser utilizada em todos os casos, em vez da medicação?
Eu acredito nesta técnica e penso que a resposta é absolutamente sim. Mas precisamos de fazer mais estudos, de forma muito cuidada, antes de afirmar seja o que for. É concebível que a eficácia da TMS varie em função da gravidade da depressão.

Existe uma outra técnica semelhante, a estimulação eléctrica transcraniana ou TCS. O que é?
A estimulação elétrica transcraniana (transcranial current stimulation ou TCS), com a qual também trabalhamos, consiste na aplicação direta, durante 30 minutos, de uma corrente elétrica extremamente fraca através de elétrodos colocados no couro cabeludo. (Sente-se uma espécie de formigueiro.)

A TCS é mais ou menos eficaz do que a TMS?
Não sabemos ainda, não há estudos comparativos. Mas a TCS tem a vantagem de ser muito fácil de utilizar. É uma tecnologia muito simples comparada com a da TMS e é muito portátil; consiste essencialmente numa bateria de 9 volts. Poderia mesmo ser aplicada em casa.

Tem havido relatos na imprensa sobre pessoas que usam aparelhos de TCS comercializados por empresas ou mesmo de fabrico caseiro para melhorar a memória, capacidade de raciocínio, etc. O que acha deste fenómeno?
Acho muito assustador. Quis sempre empurrar as fronteiras, inovar - e portanto sou totalmente a favor, sejamos claros. Mas acho que as coisas devem ser feitas com o devido cuidado e a com ciência adequada por trás. Por isso, as tentativas de convencer as pessoas de que podem pôr o seu cérebro num estado que vai promover a sua criatividade ou aumentar a sua destreza nos jogos de vídeo - incitando-as a fabricar o seu próprio aparelho de estimulação ou a comprar um por umas centenas de dólares - parecem-me francamente irresponsáveis.
Primeiro, porque os resultados científicos não são claros; segundo, porque não sabemos se as pessoas vão usar os aparelhos da forma adequada. Mais uma vez, tudo tem um preço - e uma vez que isto altera a atividade cerebral, pode dar origem a alterações nefastas. Sou totalmente a favor de estudar as potencialidades do melhoramento cognitivo através da estimulação cerebral - algo que está aliás a ser feito ao nível da investigação - mas é preciso ser prudente.

Estas técnicas funcionam mesmo nas pessoas saudáveis?
Sim. E os resultados são absolutamente espectaculares. As pessoas tornam-se melhores a matemática, melhores na leitura, a consolidação das aprendizagens motoras torna-se mais fácil. Tudo isto é muito entusiasmante, mas tem de ser explorado com o devido nível de segurança, que inclui uma discussão adequada das questões éticas que levanta. E embora acredite firmemente que há muito a ganhar com estas técnicas, há muito que perder se as utilizarmos indevidamente ou demasiado depressa. Pode tornar-se mais difícil transformá-las em algo realmente útil do ponto de vista terapêutico.

Por Ana Gerschenfeld

Sem comentários: