A investigadora Lidia Marôpo estudou a visibilidade dada "às pessoas até aos 18 anos" nas notícias que fazem as páginas de jornais em Portugal e no Brasil - um longo trabalho publicado no livro "Jornalismo e Direitos da Criança", editado pela Minerva Coimbra. Nos dois países identificou discursos noticiosos que pouco promovem a criança como um cidadão do presente. Mas reconhece que lá, ao contrário de cá, as instituições de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes são mais críticas em relação a essa mediatização.
No Brasil, onde nasceu, Marôpo trabalhou como jornalista e assessora de comunicação no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará. Vive em Portugal desde 2004 e leciona na Universidade Autónoma de Lisboa. É também mãe de uma menina espevitada que ao longo desta entrevista, tudo fez para chamar a si a atenção dada à progenitora. E quase conseguiu aparecer na fotografia!
Educare.pt (E): Em que circunstâncias as crianças são notícia em Portugal?
Lidia Marôpo (LM): Em Portugal, como no resto do Mundo, a maior parte das notícias são sobre crianças em risco, que foram vítimas de maus tratos ou de acidentes. A cobertura faz-se sobre dois temas: o da proteção, feito no sentido de mostrar a criança-vítima, e o da provisão em peças recorrentes sobre educação e acesso à saúde. As notícias que envolvem a cobertura de casos individuais de crianças acontecem quando estas são vítimas de maus tratos e abuso sexual. Quando se fala das crianças enquanto grupo social a cobertura feita sobre educação e acesso à saúde pouco analisa os direitos das crianças numa perspetiva da participação, numa dimensão mais ativista da criança enquanto ator social.
E: No Brasil é diferente?
LM: Não. As realidades são muito parecidas mas em muitos aspetos os problemas são muito mais graves. E têm uma dimensão muito maior no Brasil do que em Portugal. Talvez, por isso, mesmo também haja no Brasil um movimento muito organizado de defesa dos direitos da criança e, especialmente, de cuidado com essa cobertura jornalística. A diferença que eu vejo está no lado da sociedade civil. As organizações estão muito mais atentas para essa cobertura e cobram mais. Fazem maior esforço, por exemplo, para ter um assessor de comunicação. Ou seja, têm uma postura mais pró-ativa do que as organizações em Portugal.
E: Alguma razão em especial explica essa pró-atividade?
LM: Há uma maior independência - e não é só na área da infância - das organizações não-governamentais no Brasil. Basicamente, por serem financiadas por verbas estrangeiras, dos chamados países desenvolvidos, embora isso esteja a mudar. Por isso, essas organizações tinham muito mais facilidade de, por exemplo, questionar e combater o Governo de uma forma mais frontal. Em Portugal as organizações que têm maior visibilidade e mais peso na sociedade têm uma certa dependência do Governo e não têm uma postura tão crítica como no Brasil.
E: Outra questão abordada no seu livro são os critérios de noticiabilidade nos dois países. Que assuntos seriam notícia em Portugal e não no Brasil?
LM: No início da minha tese analiso duas notícias sobre violência na escola, uma publicada no jornal brasileiro O Globo e outra no jornal português Público. Para o primeiro, violência na escola tinham sido o facto de mais de mil crianças terem ficado sem aulas por causa de um tiroteio numa favela. Em Portugal, a violência na escola referia-se a meia dúzia de casos de bullying. Essas duas notícias - que foram para as primeiras páginas dos dois jornais - demonstram as diferenças dos problemas sociais que afetam os dois países. E como os critérios de noticiabilidade têm muito a ver com a realidade que se está a cobrir. Infelizmente, o Brasil tem incontáveis problemas maiores para chegarem à primeira página de um jornal. Nunca meia-dúzia de casos de bullying vão ser notícia.
Por outro lado, a estigmatização de jovens pertencentes a determinados grupos sociais, ou em situação de vulnerabilidade, é maior no Brasil do que em Portugal. Veja-se o uso nos jornais brasileiros do termo "menor" que as organizações de defesa dos direitos das crianças lutam por banir. É uma palavra que só é utilizada em situações em que um adolescente cometeu um crime e, em geral, vive numa situação de exclusão social. Se for para designar um adolescente de classe média o termo usado é "estudante" ou "jovem".
E: Que problemas identifica na cobertura dada aos temas das crianças e dos jovens, em ambos os países?
LM: O problema da estigmatização de grupos minoritários, jovens imigrantes, negros ou de outras etinas, é muito forte no Brasil. São muito representados de uma perspetiva negativa e culpabilizados pela violência na sociedade. A escassez de enquadramento na perspetiva dos direitos. Muitas vezes os problemas são noticiados numa perspetiva de drama individual daquela criança que foi maltratada e não do que a sociedade pode fazer para evitar ou resolver esse problema.
A questão da privacidade, ou seja, da identificação das crianças nas notícias. Na maioria dos casos, se a criança, como qualquer cidadão, está num ambiente público pode ser fotografada e entrevistada. O problema é ainda haver muita visibilidade nas notícias quando a criança é vítima de violência, de abuso ou de situações em que ela possa viver com mais dificuldades porque foi conhecida publicamente.
Por último, há uma escassez de voz das crianças nas notícias, que são feitas por e para adultos. Quantas vezes se ouvem jovens ou crianças a dizer o que pensam sobre temas ligados à educação? No escândalo do caso do telemóvel na escola, quantas vezes a perspetiva da jovem foi ouvida? Porque é que um adolescente não quer que o telemóvel seja visto de forma alguma? Talvez seja uma espécie de diário, com mensagens que não são para ser vistas por ninguém... É essa perspetiva dos jovens que ainda está muito ausente das notícias.
E: É bastante crítica de uma certa visão assistencialista da criança veiculada nos jornais...
LM: A criança é vista como um cidadão no futuro. A sua representação é muito passiva e estereotipada, no sentido de que ou é objeto de proteção ou de repressão, conforme o caso. Mas pouco como um sujeito participante na sociedade. No entanto, o problema não é do jornalismo. Nas entrevistas que conduzi, muitos jornalistas disseram que queriam incluir nos seus artigos opiniões de crianças e jovens, mas quando o tentam fazer surgem alguns problemas.
E: Como assim?
LM: Uma das dificuldades dos jornalistas para ouvir crianças e jovens é que as instituições dificultam os acessos. Requerem-se autorizações do pai e da mãe, da escola. Há todo um processo para chegar até à criança que demora tempo que o jornalista não tem. Outro problema tem a ver com a representatividade. Nenhuma criança ou jovem fala pelos outros, apenas por si mesma, e no jornalismo é preciso quem represente um grupo. Além disso, muitas instituições e organizações não governamentais ligadas às crianças têm temor dos jornalistas e não têm uma postura pró-ativa.
E: Em que consiste essa postura pró-ativa?
LM: Ter uma política de comunicação para prevenir e planear. Assim, o ónus e o bónus de falar pelos direitos da criança é o ónus e o bónus da instituição. Em Portugal, as instituições não têm gabinete de comunicação ou se existe não funciona como poderia. Por isso o ónus e o bónus de falar [à imprensa] é muito pessoal. Quando as pessoas concedem entrevistas e correm bem, ótimo; se correm mal, o entrevistado é culpabilizado. Há uma dificuldade nesse sentido.
Mas também cito como bom exemplo a Associação para a Promoção da Segurança Infantil (APSI), que conseguiu lançar em Portugal muitos debates sobre a segurança das crianças, como a questão da cadeirinha no carro e dos afogamentos. Essa instituição segue uma política de comunicação muito pró-ativa, faz sessões com os jornalistas e envia informação, não apenas quando os jornalistas a procuram. É um bom exemplo em Portugal, mas é uma exceção.
E: Que conselho daria aos pais sobre como agir face a um pedido da escola para que o filho seja ouvido por um jornalista?
LM: Temos de pensar que todos os grupos sociais têm direito a ter visibilidade social e a maior que se consegue é através dos meios de comunicação. Se eu não deixo as crianças falarem estou a condenar à invisibilidade uma boa parcela da população. Faz parte dos direitos da criança a oportunidade de expressar a opinião.
O que eu posso recomendar às escolas e aos pais é que dialoguem e analisem com o aluno ou o filho as consequências daquela mediatização. Depois desse passo, acredito que na maioria dos casos é possível permitir. Em outros casos, os adolescentes e as crianças podem falar sem serem identificados. Assim pelo menos o seu ponto de vista vai estar presente. Mas devemos pensar no anonimato em casos que possam causar algum constrangimento no desenvolvimento da criança, de outro modo, não vejo nenhuma razão para isso.
E: Afinal, as questões da infância e da adolescência estão bem reguladas em Portugal?
LM: Lamento que a lei portuguesa seja designada por Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo. O nome já diz muito. A lei brasileira chama-se Estatuto da Criança e do Adolescente. E parte de um outro princípio: de que a lei é para todas as crianças e adolescentes e não só para as que estão em perigo e prevê outros direitos como o de participação. A lei portuguesa remete muito mais para o âmbito dos casos de risco e de proteção. Em compensação, em Portugal fala-se mais sobre a Convenção dos Direitos da Criança do que no Brasil. Mas talvez o que pudesse ajudar muito Portugal seria ter um provedor da criança. Já existe em vários países.
E: No Brasil existe?
LM: Não. E também seria bom que existisse.
E: Que vantagem traria a criação do provedor da criança?
LM: Poderia ser um provedor ou outra figura. Na Irlanda existe um Ministério da Criança. Desta forma consegue-se dar uma institucionalização muito maior aos problemas das crianças. Até facilitaria muito a cobertura dos jornalistas porque teriam ali um órgão que centralizaria dados e informações relacionadas com essa área. Sabe-se que para promover uma cobertura jornalística é preciso um nível de institucionalização muito forte. Veja-se como a visibilidade da infância aumentou quando se criaram em Portugal as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens em Risco e se colocaram nelas atores com obrigação de responder por aquelas questões.
Por Andreia Lobo
In: Educare
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