Lidar com alunos com dificuldades específicas de aprendizagem não é tarefa fácil. Acontece, porém, que o primeiro obstáculo reside em "nós". Por este "nós", entendo alguns docentes menos sensíveis a todas estas problemáticas, preocupados apenas com o aluno "médio" da sua turma e/ou justificando-se com os rótulos com que estes alunos são identificados. Também é certo que, por vezes, os próprios alunos se "desculpam" com estas dificuldades, procurando refugiar-se e evitar o trabalho escolar.
Não podemos esquecer que lidamos com crianças em formação e desenvolvimento. Mas, já agora, e a título de reflexão, constitui um exercício interessante debruçarmo-nos sobre algumas questões, tais como: como reagiria se o meu filhos tivesse essas difiuldades?! Que esperaria dos seus professores?! ...?!
Numa tentativa de esclarecer e abrir algumas mentes, ainda insensíveis, deixo um texto da autoria de José Pacheco, publicado no jornal "A Página da Educação", ano 16, nº 171, Outubro 2007, sobre dois casos verídicos.
Volto ao questionável acto de rotular e tratar alunos como "deficientes". Trago-vos dois episódios, que podem ilustrar uma realidade oculta: há fenómenos de incomunicabilidade nas nossas escolas, cuja responsabilidade não deve ser imputada somente às escolas.
A Bárbara é uma aluna com dislexia. A professora "especial" passa pela sala, duas vezes por semana. Mas já confessou que (afinal) "não é especialista em dislexias (sic) e que, portanto, pouco pode ajudar"… A professora dita "regular" diz que "faz o que pode, mas que não se espere milagres, porque com dezanove alunos mais uma "disléxica" na sala, o tempo não chega para tudo"…
A meio da manhã, diz a professora para a "disléxica": "Vais ficar sem recreio, porque eu não consigo ler o texto que escreveste!". Resposta pronta da Bárbara: "Tu não consegues ler, mas eu consigo!" A Bárbara é disléxica, mas não é parva.
A dislexia existe! Há necessidade de identificar a dislexia a tempo, de modo que não se converta, definitivamente, num obstáculo ao sucesso e à realização pessoal. E, muito mais que identificar, é imperioso que um especialista, no seio de uma equipa, dê resposta às Bárbaras. Porém, há casos e casos, e bem diferente é o caso do Tito.
O Titinho (como a extremosa mamã lhe chamava) chegou à escola acompanhado de um processo com cinco centímetros de altura. Eram relatórios de psicólogos, mais os dos pedopsiquiatras, mais os relatórios das professoras de educação especial, mais os dos médicos… Veredicto: "disléxico". Tratamento: dois anos sob orientação de uma professora "especial" mais três anos a pastar fichas, no fundo da sala, que a professora regular não era entendida em dislexias.
Uma semana de ociosidade depois, o professor aproximou-se do moço:
- Então?... Desde que chegaste, ainda não fizeste nada.
O aluno não estava diagnosticado de autista, mas não deu troco. O mestre insistiu:
- E posso saber porquê?
O moço fez ouvidos de mercador.
- Não me ouviste? Posso saber porquê, Tito?
Aquele mocetão quase a fazer doze anos de idade, enfim, reagiu:
- Eu sou Titinho! Não sou Tito! Você não sabe?
- Está bem, Tito. Mas diz-me por que não te vejo trabalhar como os outros meninos.
- Você não sabe?
- Não, não sei.
- Eu, na outra escola, também não fazia nada.
- Ai não?...
- Não. Só quando a setora do especial lá ia é que eu fazia uns joguinhos.
- Ai sim?
- É. Está a ver? Eu não fazia nada. E você não me pode obrigar porque…
Esgotada a paciência, o professor interrompeu-o:
- Porque é que não fazias nada, na outra escola?
- Você não sabe?
- Já te disse que não.
- É que eu sou disléxico.
- Ai, tu és disléxico? Eu sou Luís! E, agora, vais pegar nesta folhinha e vais fazer o que o teu grupo tem no plano para tu fazeres.
Ficou de boca aberta e sem tempo para retorquir. O Tito fez o trabalho que o grupo o ajudou a fazer (a pressão social justa e fraterna resulta sempre…), apesar de "trocar umas letrinhas", como depois comentou, pedindo desculpa pelo que não devia. Perante a afável autoridade do professor e a persuasão exercida pelos colegas do grupo, restava ao Tito escolher entre duas atitudes: ou fazia o trabalho, ou fazia o trabalho… Optou por fazer o trabalho. Qualquer outro "disléxico" inteligente optaria por essa hipótese.
Imaginava o professor Luís o que se estaria a passar naquela cabecinha: "então este professor não saberá o que é um disléxico?" É claro que o professor sabia. Tanto sabia, que o Titinho – entretanto promovido a Tito pelo grupo – foi fazendo exercícios que o ajudaram a ultrapassar algumas dificuldades. Porém, não todas…
O Tito pendurou o seu casaco, atirando ao chão casacos de colegas. O professor chamou-lhe a atenção. O "disléxico" respondeu:
- Não são meus!...
Pois não eram, mas o Tito apanhou os casacos do chão e pendurou-os nos respectivos cabides.
A mãe do Tito chegou, ao final do dia. Retirou do cabide o casaco do filho, provocando a queda de outro casaco, que estava pendurado num cabide adjacente. O professor fitou a senhora, insistentemente. Apercebendo-se da recriminação no olhar do professor, a senhora exclamou:
- Não fui eu!....
O professor Luís afastou-se, sem dizer palavra, reflectindo sobre as dislexias familiares, que fazem a infelicidade de muitos Titinhos.
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