Estudos indicam que as crianças com dificuldades de aprendizagem apresentam mais sintomas internalizados do que as crianças sem dificuldades. No entanto, apesar do conhecimento acerca do impacto psicológico das dificuldades de aprendizagem ter aumentado nos últimos anos, várias questões permanecem sem resposta. Será que as crianças com dificuldades de leitura apresentam os mesmos níveis de ansiedade e depressão que as crianças com dificuldades em matemática? Terá a idade alguma influência na relação entre as dificuldades de aprendizagem e os sintomas internalizados? Estas são algumas das questões que Vieira e colaboradores (2024) procuram responder no artigo «Internalizing problems in individuals with reading, mathematics and unspecified learning difficulties: a systematic review and meta‑analysis», publicado na revista Annals of Dyslexia.
Introdução
Os sintomas internalizados são um conceito amplo que abrange problemas emocionais como ansiedade, depressão, isolamento social e queixas físicas ou somáticas. Ao longo dos últimos anos, diversos estudos têm demonstrado que as crianças com dificuldades de aprendizagem apresentam níveis mais elevados de ansiedade e depressão em comparação com as crianças sem dificuldades. (e.g., Brunelle et al., 2020; Dahle & Knivsberg, 2014; Francis et al., 2019; Georgiou & Parrila, 2022). Contudo, apesar do aumento da investigação acerca do impacto psicológico das dificuldades de aprendizagem, muitas questões permanecem sem resposta.
Quais os tipos de dificuldades de aprendizagem mais associados aos sintomas internalizados?
A variabilidade dos resultados entre os estudos impede uma resposta conclusiva a esta questão. Enquanto alguns investigadores verificaram que as dificuldades de linguagem têm uma associação mais significativa com sintomas internalizados do que as dificuldades de leitura e matemática, outros investigadores verificaram que as dificuldades de leitura e matemática, assim como as dificuldades não-especificadas, não diferem entre si quanto à associação com esses sintomas. Outros grupos de trabalho ainda concluíram que as dificuldades em matemática estão mais associadas a problemas emocionais do que as dificuldades de leitura.
As queixas físicas e o isolamento social estão, tal como a ansiedade e a depressão, associados às dificuldades de aprendizagem?
Os estudos de Brunelle et al. (2020) e de Nelson e Harwood (2011) concluem que a maioria das investigações avalia sintomas de ansiedade (sentimentos persistentes de preocupação, evitamento e/ou medo de uma situação específica) e de depressão (tristeza, vazio ou irritabilidade), excluindo outros problemas emocionais, como as queixas físicas (pensamentos, sentimentos ou comportamentos excessivos associados a preocupações de saúde) e o isolamento social (evitamento de interacções ou situações sociais).
O tipo de ansiedade influencia a associação entre as dificuldades de aprendizagem e os sintomas internalizados?
Os estudos avaliam vários tipos de ansiedade relacionados com os problemas de aprendizagem: (i) ansiedade escolar – preocupação excessiva com o contexto escolar (como a realização de testes de avaliação); (ii) ansiedade social – sentir medo ou receio de interacções sociais (como ler em voz alta diante da turma); (iii) ansiedade de separação – um desconforto emocional provocado pela separação dos pais ou cuidadores; (iv) ansiedade generalizada – uma preocupação constante e excessiva em múltiplas áreas por um período prolongado; (v) outra – ansiedade gerada por situações que não se enquadram nas categorias mencionadas anteriormente. Embora alguns investigadores, como Carroll e Iles, tenham explorado outros tipos de ansiedade, como a que se relaciona com a aparência, esses estudos são escassos.
E qual o peso de factores como a idade, o tipo de informador, os critérios de selecção e o controlo da atenção? Será que estas variáveis influenciam a associação entre as dificuldades de aprendizagem e os problemas emocionais?
Alguns investigadores defendem que os sintomas internalizados aumentam com a idade (e.g., Avenevoli et al., 2008; Costello & Angold, 1995), enquanto outros sugerem que apenas alguns problemas emocionais são moderados por esta variável (e.g., Costello et al., 2005; Jorm, 2000). Por exemplo, a ansiedade de separação é mais comum em crianças mais novas do que em crianças mais velhas (e.g., Grills-Taquechel et al., 2013) e a depressão pode não surgir até ao final da infância ou adolescência (e.g., Maughan et al., 2013). No entanto, outros estudos sugerem que os problemas emocionais não variam em função da idade. A diversidade de resultados dificulta a formulação de uma resposta clara a esta questão. Além disso, nenhuma meta-análise verificou se a associação entre as dificuldades de aprendizagem e os sintomas internalizados difere entre crianças, adolescentes e adultos.
A avaliação dos sintomas internalizados é geralmente realizada através de auto-relato (com instrumentos de auto-avaliação), e relatos de pais ou professores. Estudos que, para um mesmo indivíduo, comparam a auto-avaliação de sintomas com os relatos de pais e professores revelam um baixo nível de concordância (Navarro et al., 2020; Salbach-Andrae et al., 2009). Contudo, os resultados de meta-análises nem sempre corroboram essas conclusões. Por exemplo, enquanto Nelson e Harwood (2011) constataram que os professores reportam níveis mais elevados de problemas emocionais do que os próprios indivíduos, Donolato et al. (2022) encontraram alguma consistência entre os informadores. Por esta razão, permanece incerto se o tipo de informador modera a associação entre as dificuldades de aprendizagem e os sintomas internalizados.
Além disso, os indivíduos com dificuldades de aprendizagem são frequentemente seleccionados para estudos com base no diagnóstico realizado por profissionais clínicos (Al-Yagon, 2016; Undheim, 2003) ou através de triagens directas, da população em estudo, baseadas em testes padronizados (Arnold et al., 2005; Bloom & Heath, 2010). Segundo Vieira et al. (2024), apenas a meta-análise de Donolato et al. (2022) examinou se esses critérios influenciam os resultados. Os investigadores verificaram que as amostras recrutadas com base em diagnósticos reportaram níveis mais elevados de problemas emocionais em comparação com as amostras recrutadas por triagem. No essencial, esses resultados sugerem que os critérios de selecção podem influenciar a gravidade dos problemas emocionais reportados, o que, por sua vez, pode ter implicações significativas na interpretação dos dados.
Por último, alguns estudos que compararam os sintomas internalizados em indivíduos com e sem dificuldades de aprendizagem procuraram controlar variáveis relacionadas com a atenção, assim como a Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção (PHDA; Arnold et al., 2005; Carroll et al., 2005). De acordo com Vieira et al. (2024), esse procedimento deve-se à hipótese de que a desatenção pode estar subjacente às dificuldades de aprendizagem, assim como aos problemas emocionais, conduzindo a uma interpretação incorrecta destes problemas como consequência directa dos problemas de aprendizagem (Georgiou & Parrila, 2022; Maughan & Carroll, 2006). Os estudos que controlaram a desatenção ou a PHDA apresentam resultados inconsistentes. Por exemplo, enquanto Carroll et al. (2005) não encontraram diferenças significativas nos sintomas de depressão entre os grupos com e sem dislexia após controlar a desatenção, a equipa de Arnold et al. (2005) constatou que as diferenças entre os grupos permaneciam significativas mesmo após o controlo da PHDA. Por essa razão, os sintomas de PHDA, principalmente a desatenção, podem ser um moderador importante que não foi explorado de forma adequada em meta-análises anteriores.
Revisão sistemática e meta-análise de Vieira e colaboradores
Os resultados de meta-análises anteriores indicam uma diferença moderada nos sintomas internalizados entre indivíduos (crianças, adolescentes e adultos) com e sem dificuldades de aprendizagem. No entanto, essas meta-análises também revelam que a associação entre as dificuldades de aprendizagem e os problemas emocionais pode ser moderada por diversos factores. Neste sentido, a presente revisão sistemática e meta-análise procurou responder às seguintes questões:
- Qual é a extensão dos sintomas internalizados experienciados por indivíduos com dificuldades de leitura, dificuldades em matemática e dificuldades não-especificadas, em comparação com outros indivíduos da mesma faixa etária que não apresentam dificuldades?
- De que forma os problemas emocionais em indivíduos com dificuldades de leitura diferem daqueles com dificuldades em matemática ou não-especificadas?
- Em que medida os tamanhos de efeito são influenciados pela idade, tipo de sintoma internalizado, tipo de ansiedade, informador, critérios de selecção e controlo da atenção?
Vieira et al. (2024) classificaram as dificuldades de aprendizagem em três categorias:
- dificuldades de leitura;
- dificuldades em matemática; e
- dificuldades não-especificadas.
A idade foi classificada como uma variável contínua, expressa em anos e/ou meses. Por sua vez, os sintomas internalizados foram organizados em cinco categorias:
- ansiedade;
- depressão;
- queixas físicas;
- isolamento social; e
- pontuação composta.
Relativamente aos estudos que mediram a ansiedade, esta foi categorizada conforme as seguintes variantes:
- ansiedade escolar;
- ansiedade social;
- ansiedade de separação;
- ansiedade generalizada; e
- outra (i.e. estudos que mencionaram outros tipos de ansiedade, como a ansiedade relacionada com a aparência).
Os informadores foram classificados em três grupos:
- auto-relato;
- pais; e
- professores.
Em relação aos critérios de selecção, este moderador incluiu duas categorias:
- diagnóstico; e
- triagem.
Por fim, o controlo da atenção foi dividido em duas categorias:
- controlado; e
- não controlado.
No total, foram incluídos 96 estudos, nos quais participaram 83 260 indivíduos com idades compreendidas entre os 7 anos e 3 meses e os 34 anos e 8 meses.
Principais Resultados
Qual é a extensão dos sintomas internalizados experienciados por indivíduos com dificuldades de leitura, dificuldades em matemática e dificuldades não-especificadas, em comparação com outros indivíduos da mesma faixa etária que não apresentam dificuldades?
Os resultados indicam que os indivíduos com dificuldades de aprendizagem apresentam maior incidência de sintomas internalizados em comparação com os indivíduos sem dificuldades. Contudo, segundo a literatura, não parece haver consenso acerca das causas subjacentes à comorbilidade entre as dificuldades de aprendizagem e os sintomas internalizados.
De que forma os indivíduos com dificuldades de leitura diferem daqueles com dificuldades em matemática ou não-especificadas em relação a problemas emocionais?
De acordo com os resultados, não existem diferenças significativas entre os diversos tipos de dificuldades de aprendizagem no que diz respeito aos sintomas internalizados. Especificamente, os indivíduos com dificuldades de leitura, dificuldades em matemática e dificuldades não-especificadas apresentam níveis comparáveis de problemas emocionais. Este resultado vai ao encontro dos resultados de Donolato et al. (2022), que também não encontraram diferenças significativas nos problemas emocionais entre indivíduos com dificuldades em matemática e indivíduos com dificuldades de leitura.
Em que medida os tamanhos de efeito são influenciados pela idade, tipo de sintoma internalizado, tipo de ansiedade, informador, critérios de selecção e controlo da atenção?
Os resultados sugerem que a associação entre as dificuldades de aprendizagem e os sintomas internalizados pode ser influenciada por três factores: o tipo de sintomas internalizados, o tipo de ansiedade e os critérios de selecção.
Tipo de Sintomas Internalizados
As diferenças entre indivíduos com e sem dificuldades de aprendizagem foram mais acentuadas no isolamento social do que na ansiedade e nas queixas somáticas. Este resultado sugere que o isolamento social pode estar intimamente relacionado com as dificuldades de aprendizagem. Além disso, os problemas sociais podem influenciar a associação entre as dificuldades de aprendizagem e os sintomas internalizados. Segundo Vieira et al. (2024), as interacções sociais dos indivíduos com dificuldades de aprendizagem (como a dificuldade em fazer amigos) podem contribuir para o seu isolamento, agravando os problemas emocionais.
Tipo de Ansiedade
A ansiedade de separação foi mais acentuada em indivíduos com dificuldades de aprendizagem do que a ansiedade social. De acordo com os autores, este resultado é surpreendente, uma vez que se esperava que a ansiedade escolar fosse mais elevada devido aos desafios que estes indivíduos enfrentam no contexto escolar. No entanto, uma explicação possível para este resultado está no isolamento social que indivíduos com dificuldades de aprendizagem tendem a apresentar. Segundo Mammarella et al. (2016), esses indivíduos tendem a estabelecer poucas relações sociais com os colegas, o que intensifica a sua ligação emocional com os pais ou educadores. Essa ligação pode tornar a separação dos pais particularmente angustiante, resultando em níveis mais elevados de ansiedade de separação em comparação com outros tipos de ansiedade.
Critérios de Selecção
Por fim, os estudos que incluíram indivíduos com um diagnóstico formal de dificuldades de aprendizagem revelaram níveis mais elevados de problemas emocionais em comparação com os indivíduos identificados por triagem. No entanto, esta diferença foi significativa apenas no caso das dificuldades de leitura. Isso pode dever-se ao facto de os indivíduos diagnosticados apresentarem dificuldades mais acentuadas, resultantes da aplicação de critérios mais rigorosos. Segundo a literatura, quando os critérios são menos restritos, é possível incluir casos mais ligeiros, o que atenua as diferenças entre os grupos e enfraquece a relação com os problemas emocionais.
Célia Oliveira e Soraia Araújo
Fonte: Iniciativa Educação
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