Um piano e algumas pautas de música repousam silenciosos, no auditório da Orquestra Metropolitana de Lisboa (OML).
A maioria das cadeiras está vazia. São mais os professores do que os alunos neste ateliê de formação musical para pessoas surdas. Na primeira sessão, com instrumentos musicais, ainda apareceram alguns surdos. Uma semana depois, Débora Pereira é a única inscrita. Surda, a trabalhar na área da contabilidade e com experiência no teatro, Débora confessa que costuma "cantar" em casa, em língua gestual portuguesa (LGP), "às escondidas" e encara o ateliê como "uma forma de me libertar e cantar um bocadinho, [porque] sou um bocadinho envergonhada". Débora comunica com gestos e só a percebemos com a ajuda de Sofia Figueiredo, intérprete de LGP que empresta a voz aos surdos desta sessão. Além da aluna Débora Pereira, apresentam-se António Cabral e Carlos Gonçalves, do coro Mãos que cantam. O grupo é composto por cinco surdos, dirigidos pelo cantor e professor da Universidade Católica, Sérgio Peixoto.
"Vivemos todos dentro da música, porque nós, ouvintes, ouvimos a música, mas eles vêem a música. A música para eles, é muito visual. A voz deles é o gesto", realça Sérgio Peixoto, descrevendo o método de trabalho. "O texto original é passado para gesto, para dar a noção da música, para sentir que há música no gesto." Do trabalho em conjunto, nasce a glosa que será interpretada pelo coro. Assim, canta-se não com a voz, mas com as mãos, o gesto, o corpo todo.
Surdo profundo, António Cabral conta que não consegue tocar instrumentos musicais. Através da vibração, consegue sentir alguma coisa, mas não o suficiente para tocar. Por isso, canta com os gestos e tem ensaiado todos os dias, com o desafio de gestuar as músicas da Jornada Mundial da Juventude. O coro "Mãos que cantam" vai interpretar em LGP todas as músicas do evento. O desafio entusiasma também Carlos Gonçalves, que assume ser muito expressivo. "Sou uma pessoa visual", descreve. Sempre gostou de fazer movimentos artísticos e quando foi convidado para integrar o coro, "não pensei muito", apesar de notar a estranheza da "minha própria família. As pessoas acham que os surdos não são capazes", constata, enquanto Sérgio Peixoto garante "podemos fazer tudo e mais alguma coisa na música".
Exemplo disso é o repertório das "Mãos que cantam". Já interpretaram "desde música medieval até Xutos & Pontapés, do século XII ao século XXI, Bach, Beatles, Jorge Palma", cabem todos neste universo.
Na sessão da OML, o director do coro convida Débora a gestuar o refrão da música "Trazes luar", cantada pelo barítono Manuel Rebelo. Primeiro em silêncio, apenas com as mãos e a expressão corporal, a aluna canta em LGP. "Anda comigo abraçar o mar, daquela praia que nos viu chegar, a este amor prometido, no primeiro olhar que eu aqui lancei e onde comprovei que é contigo que eu quero ficar." O objectivo é "dar espaço para que exprimam a vossa arte", destaca Sérgio, que aprendeu LGP quando decidiu formar o grupo Mãos que cantam.
"Muitas pessoas surdas e cegas, que querem ter educação musical, batem à porta dos conservatórios e não são respondidas", confirma Rui Campos Leitão, coordenador do projecto "Vem musicar connosco", da OML. Depois de quatro ateliers com pessoas surdas, cegas e com baixa visão, será feita uma reflexão para ajustar o projecto e dar início a aulas em Setembro, culminando com um concerto em Novembro, no teatro São Luiz, em Lisboa.
"A pretensão é constituir núcleos de alunos surdos e cegos", que irão subir ao palco para interpretar a Sinfonia n.º 29 de Mozart, dirigidos por um maestro cego; o terceiro concerto para piano de Beethoven, interpretado pelo pianista cego Jorge Gonçalves; uma obra original de Lino Guerreiro e a obra Va pensiero, da ópera Nabucco, de Verdi. "Não há um aluno igual ao outro, seja ele surdo, cego ou qualquer outro. Todos são diferentes", frisa Rui Campos Leitão. "Queremos integrar todos", mas "os jovens (surdos) não estão a aparecer". Por isso, o Vem musicar connosco terá de sofrer "ligeiras alterações" e ir ao encontro dos alunos surdos nas escolas. "É uma aventura, estamos a aprender todos os dias", afirma, em jeito de convite. "Estamos abertos a todos, disponíveis e com vontade de experimentar todas as faixas etárias. Portanto, sem medos. Venha musicar connosco."
O projecto foi um dos 30 seleccionados, entre 300 candidaturas, para financiamento da União Europeia. A participação é gratuita. Os surdos, cegos ou pessoas com baixa visão interessados devem inscrever-se no site da OML.
Fonte: TSF por indicação de Livresco
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