Foram precisos 43 anos para ter o diagnóstico de síndrome de Tourette (ST), mas os tiques estão presentes na vida de Gil Trindade, agora com 48 anos, desde que era criança. André Borges, de 42 anos, tem tiques desde os oito, mas só no ano passado procurou ajuda especializada, uma vez que os sintomas da síndrome se intensificaram na idade adulta. Os tiques podem ter uma grande influência na vida social e laboral destas pessoas, como é o caso de Diogo, que teve de abandonar a escola precocemente, e de José, que se reformou aos 24 anos. Para eles, a síndrome de Tourette, cujo Dia Europeu se celebra a 7 de Junho, é uma "autodescoberta".
A ST é diagnosticada "pelo aparecimento e persistência de tiques" simples e complexos, que deverão manifestar-se com frequência durante pelo menos um ano e que habitualmente geram "interferência no funcionamento social e pessoal do indivíduo", afirma Ana Araújo, médica de psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Estes movimentos involuntários, que se repetem várias vezes ao dia, podem ser motores quando, por exemplo, alguém encolhe os ombros, bate palmas ou abana a cabeça. Ou podem ser fónicos, que acontece quando se tosse ou se reproduz sons. Um tique é "como se fosse uma comichão que eu tenho de coçar. É algo que eu tenho de fazer, senão não me sinto bem", afirma Diogo, de 25 anos, cujos tiques apareceram por volta dos sete anos. "Inicialmente era só piscar os olhos com muita força", numa frequência de "cinco vezes a cada minuto ou mais".
Nos últimos tempos, o principal tique de Gil Trindade é bater com o braço direito no peito ou na cara. "Uma pessoa está a comer e, de repente, deita tudo para o chão para bater na cara. Já tentei desviar-me, mas não dá. Para onde a cara vai, a mão vai." Na realização de tarefas que impliquem "esforços fortes, o braço não faz nada", mas noutras situações pode revelar-se um problema, como quando está a cozinhar. "A cortar cebolas já me cortei nos pulsos, nas mãos, nos braços", aponta.
É na infância que a doença pode começar a manifestar-se, com o aparecimento dos primeiros tiques, e o "habitual é os tiques reduzirem-se com a idade, na transição da adolescência para a vida adulta, porque a pessoa tende a conseguir controlá-los melhor", mas "há casos em que pode não acontecer e até piorar", lembra a especialista, que integra também o conselho médico da Associação Portuguesa de síndrome de Tourette (https://www.facebook.com/touretteportugal/). Os tiques de André Borges têm vindo a piorar, na idade adulta, mas não foi só isso que o levou, no ano passado, a procurar ajuda especializada. "Como tenho uma filha, que tem uma personalidade muito parecida com a minha, começaram a surgir algumas questões na minha cabeça. Se um dia ela vier a ter e perguntar, eu gostava de saber explicar e ter mais informações", desabafa com o PÚBLICO.
A manifestação de tiques, que tende a agravar-se com "estados de ansiedade", pode gerar situações de bullying (https://www.publico.pt/bullying)ou dificultar a realização de algumas tarefas laborais. José, que foi diagnosticado aos 14 anos com ST, nove anos após o início dos tiques, reformou-se aos 24 por invalidez, devido à doença. Hoje, os tiques são praticamente "imperceptíveis" aos olhos de quem não o conhece, mas o stress causado pelo trabalho levava-o a ter crises convulsivas. "Ao fim de um tempo estava redondo num chão qualquer a ter crises convulsivas. Tenho de fugir ao máximo de situações de stress", admite.
Diogo, cujo apelido não mencionamos a pedido do entrevistado, abandonou a escola "muito cedo, ainda no 10.º ano", tendo em conta a recorrência com que tinha tiques e os comentários de que era alvo. Como queria continuar a investir na educação, fez algumas formações, como a de técnico auxiliar de saúde, que lhe permitiram concluir a escolaridade obrigatória. No próximo ano, vai entrar na faculdade, fase para a qual olha com optimismo.
A ST é, normalmente, acompanhada de outras co-morbidades, de que são exemplo o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) (https://www.publico.pt/2013/01/31/p3/fotogaleria/michael-johansson-e-uma-especie-de-transtorno-obsessivocompulsivo-382710) e o défice de atenção. "Penso muitas coisas ao mesmo tempo e [isso] atrapalha-me na concentração. Quando estou a ler um simples livro, acabo por não perceber muitas coisas", conta Diogo.
Gil Trindade, que trabalha como bagageiro num hotel de cinco estrelas, afirma que a doença não o impede de realizar as suas funções. "Quando estou atrás, mais afastado dos clientes, deixo o braço fazer o que quer", mas em público procura controlar-se. Embora nunca tenha tido qualquer problema, recorda as questões que a doença levanta noutras pessoas: "Numa reunião, estava mais agitado e comecei a fazer movimentos. Perguntaram-me se era algum problema e se poderia fazê-lo em frente aos clientes." Gil não podia esconder e foi sincero: "Não posso garantir que não vá acontecer em frente ao cliente."
Apesar de desempenhar as suas funções sem problema, há outros serviços que não pode realizar. Devido aos movimentos involuntários do seu braço direito, não pode servir às mesas. Desde o início do ano tem notado o aparecimento de um novo tique, desta vez fónico, que o leva a pronunciar palavras relacionadas com diferentes objectos. "Posso falar palavras relacionadas com carro: carro, quatro rodas, cinco rodas, janelas", explica. Se este comportamento começar a adquirir outras proporções, admite ter de "reavaliar tudo", tendo em conta as exigências da profissão que desempenha.
"Eu não consigo controlar [os tiques], consigo minimizar", mas "depois tem de haver um momento de descompressão", admite André Borges. A doença não o impediu de se tornar artista de circo e de abrir uma loja de circo, bem como de assumir cargos de liderança, tornando-se director do Instituto Nacional de Artes do Circo (INAC) e membro do conselho administrativo da Federação Europeia de Escolas Profissionais de Circo (Fedec). A concentração em determinadas tarefas pode minimizar a presença de tiques. "Quando estava em palco, não tinha tiques e isto é engraçado. Podia estar uma hora em palco que não tinha tiques", explica.
Os seus tiques são "essencialmente na parte superior do corpo, dos ombros para cima" e, por isso, é "inevitável que os outros não reparem". Quem não o conhece "tem sempre ao início um desconforto", mas refere que as pessoas se habituam e que quem o conhece comenta muitas vezes: "Se não tiveres [tiques], já não és tu."
Entre o tratamento especializado e a "autodescoberta"
A frequência com que os tiques ocorrem difere de pessoa para pessoa, visto que a síndrome pode ou não manifestar-se de forma mais visível e recorrente, sendo possível, em alguns casos, a sua observação durante a consulta. "Há pessoas que podem estar desde que estão acordadas a realizar tiques, há outras que têm a mesma doença e têm uma manifestação mais leve", refere a especialista. Ana Araújo afirma que o diagnóstico está dependente do relato do utente, do "quão os pais conhecem" a ST e de as famílias terem acesso a hospitais centrais com equipas habilitadas para o fazer. Por estas razões é que nem sempre o diagnóstico é tão rápido como se poderia desejar, explica a médica.
Um "tratamento adequado" baseia-se em três vertentes: biológica, através de medicação psicofarmacológica; psicológica, com a realização, por exemplo, de terapia de reversão do hábito, que visa substituir "um tique por outro comportamento", como "fazer pressão com a mão ou outra parte do corpo"; e social, uma vez que um bom apoio social "pode ter uma influência muita grande na pessoa e na evolução da doença". Relembra, no entanto, que "o objectivo não é tanto controlar o tique, mas o impacto que os tiques têm na vida de uma pessoa".
José refere que a fase mais aguda dos sintomas se verificou durante a infância, quando "não tinha medicação, porque ainda se estava a estudar" a síndrome. Começou por ser acompanhado por um neurologista, que o encaminhou entretanto para a psiquiatria, e a partir daí começou a fazer medicação. "Hoje e até ao fim da vida irei ser seguido em psiquiatria", acrescenta.
A especialista recorda que há uns anos existia a "opção de oferecer antipsicóticos típicos mais antigos", os quais "eram eficazes para controlar os sintomas mas estavam associados a muitos efeitos secundários, que podem ser mais impactantes do que o próprio sintoma".
Os efeitos secundários da medicação, como fraqueza e sono, levaram Gil Trindade a tomar uma decisão: apenas adoptaria esse tipo de medicação "se chegasse ao ponto em que não pudesse controlar" os movimentos. Por dia, poderia bater em si próprio 15 a 20 vezes – andava com "o lábio rebentado, a cara marcada" –, mas desde que começou a tomar uns comprimidos mais fracos, prescritos por outro neurologista, o movimento só se repete duas vezes durante o dia. Revela ainda que há uma maior probabilidade de o fazer quando está mais chateado e ansioso.
Há ainda a possibilidade de realização de terapias de neuromodulação, que são essencialmente utilizados nos casos mais graves. "Este tratamento consiste na implantação de eléctrodos em regiões específicas do cérebro que se sabem estar implicadas na doença. A estimulação através destes eléctrodos permite modular as redes cerebrais disfuncionais, melhorando os sintomas", acrescenta a especialista.
O movimento repetitivo de lançar a cabeça para trás ou para a frente de Diogo poderia causar-lhe "danos na cervical", o que o levou a ser operado em 2019, quando colocou um neuroestimulador. Actualmente, toma "menos de metade da medicação que tomava antes da operação", mas admite que "os parâmetros ainda não são os ideais".
Sensibilização: o passo para uma maior compreensão
A doença nem sempre é compreendida pelas pessoas que os rodeiam, sendo por vezes repreendidos pelos seus comportamentos involuntários. Quando era mais novo, "a minha mãe dava-me na cabeça. Dizia 'oh José pára com isso, controla-te'", explica José. "Esta percepção de proibição, ou seja, a ideia de que não posso realizar isso, não posso perder o controlo, faz com que os tiques ainda se manifestem mais", refere Ana Araújo. "É por isso muito importante que a sociedade no geral e as entidades empregadoras em particular sejam sensíveis aos desafios enfrentados pelas pessoas com ST”, acrescenta.
Diogo considera também que deveria existir o "máximo de sensibilização", sobretudo nas escolas, para "dar a conhecer aos alunos o que é a doença, que a pessoa não tem culpa", e para atenuar a existência de comentários.
Todos os anos, entre 15 de Maio e 15 de Junho celebra-se o mês de sensibilização para a ST, que afecta 0,6 a 1% das crianças e três a quatro vezes mais os homens a nível mundial. "Não temos estatística [referente aos adultos] em Portugal, mas é de esperar que seja semelhante", afirma a médica psiquiatra.
Fonte: Público
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