terça-feira, 3 de janeiro de 2023

“As pessoas com deficiência querem trabalhar”

Vestem a camisola da empresa onde trabalham, têm orgulho no trabalho que fazem, não gostam de ser tratadas por “coitadinhas” ou com condescendência e, apesar de serem todas trabalhadoras com algum tipo de deficiência, têm um “mixed feelings” em relação às quotas obrigatórias nas empresas para pessoas com incapacidades. A porta de entrada para o mercado de trabalho, normalmente, são associações que integram pessoas com deficiência ou plataformas como o Inclusive Community Forum (ICF), da Nova SBE.

A um mês de entrar em vigor a nova lei das quotas, o Expresso SER foi ao Santander falar com Joana Morais Bernardo e Luísa Carvalho, ambas com paralisia cerebral. E fomos à CUF conversar com Catarina Moreira e à Jerónimo Martins falar com Susana Norberto, duas trabalhadores que têm um problema de visão. Ao ouvir estes testemunhos, “talvez outras empresas percebam que as pessoas com deficiência querem trabalhar, querem estar ativas”, desabafa Joana Bernardo.

A incapacidade que têm não as impede de fazer o trabalho do dia a dia, de brilhar na empresa, de fazer uma carreira, de subirem na hierarquia, de ser as melhores, mesmo quando comparadas com outros trabalhadores, os “ditos normais”. E são muitas vezes uma inspiração para quem está à volta: “Se ela consegue com 10% de visão, eu com 100%...”.

SUSANA E O SEU TECLADO BRAILE

Susana Norberto trabalha na loja Pingo Doce do Pinhal Novo. Tem 35 anos, o 11º ano escolaridade, e antes de chegar à Jerónimo Martins teve experiências de trabalho na área administrativa, bem como formação em informática. Tem uma deficiência visual (retinose pigmentar) diagnosticada aos 8 anos. Vive com três filhos e um sobrinho.

Como vieste parar ao Pingo Doce? “Foi incentivo de um amigo meu que se tinha inscrito e quase que me obrigou a inscrever também. Inscrevi-me no site do Centro Incluir, continuei na minha vida e, entretanto, entrei num curso na Fundação Sain, em Alvalade. Estava a fazer formação em secretariado. Quando me chamaram para vir para aqui desisti logo do curso. Tive duas semanas de formação e comecei aqui no dia 11 de julho”.

Foi no Centro Incluir, em Telheiras, que nos encontrámos com a Susana. Este centro é uma espécie de escola de formação e é um local onde a Jerónimo Martins recebe pessoas com deficiência, dá-lhes uma formação adaptada, e depois coloca-as a trabalhar nas empresas do grupo, seja nos supermercados, seja nos centros de logística ou na parte administrativa.

No caso de Susana Norberto foi trabalhar para a secção de padaria na loja Pingo Doce do Pinhal Novo e faz quase tudo o que um trabalhador “dito normal” faz. “Estou na padaria e dou apoio ao café e bolos. Desde fatiar o pão, embalar, etiquetar, tirar dos tabuleiros. Também já ajudei as colegas a colocar a massa pronta nos tabuleiros. Levanto as mesas, levanto as loiças dos tabuleiros que os clientes levam para comer, meto a lavar, arrumo, e também coloco os bolos na montra do café. E também faço a limpeza que é preciso fazer sempre no final do trabalho”.

Para fazer as tarefas do dia a dia, a Jerónimo Martins e as próprias colegas da Susana fizeram algumas adaptações no local de trabalho. “Tenho o teclado braile na balança, com os números e as teclas que mais utilizo para saírem as etiquetas. E tenho também a lista dos códigos, do pão, dos bolos. A minha tutora já me levou tudo organizado, ampliado, feito por ordem alfabética. E também daqui deram ordens da loja para eu utilizar o telemóvel. Tenho a aplicação de uma lupa no telemóvel para me ajudar também a ver os códigos”, explica Susana.

Teresa Santos, responsável de operações do Programa Incluir, diz ao Expresso SER que “são pequenas adaptações que fazem toda a diferença. Nós temos também, por exemplo, surdos na padaria. Quando o pão está pronto, a máquina apita. Mudámos a máquina e pusemos uma luz. E, assim, um padeiro surdo pode ficar sozinho na padaria porque sabe quando é que o pão ou os frangos estão prontos e não os deixa queimar”.

E na própria loja, as colegas ajudam a facilitar a vida de Susana Norberto. Ela dá um exemplo. A funcionária do Pingo Doce diz que vê “pouco”, mas consegue distinguir algumas manchas de cor. E onde trabalha, “o chão, as paredes, a luz, aquilo era tudo muito clarinho”. Foi então que a gerente da loja, Fátima Cabral, decidiu colar faixas amarelas e pretas nos lugares por onde passa Susana para facilitar a mobilidade. “A gerente da loja esteve a colocar uma faixa amarela e preta por todo o corredor, para ir para os balneários. Mal entro no balneário, nota-se logo o meu armário, na casa de banho, e pelo corredor até ao refeitório. E no micro-ondas e na máquina do café para eu ir tirar o meu café”.

AS BANCÁRIAS, JOANA E LUÍSA

Foi na sede do Santander, na Rua da Mesquita, que encontrámos Joana Bernardo e Luísa Carvalho. As duas sofrem de paralisia cerebral e ambas chegaram ao banco através da Associação Salvador. Joana, 32 anos, é atualmente Técnica de Comunicação Institucional, e Luísa, 30 anos, é Técnica de Prevenção de Branqueamento de Capitais.

“Vim cá parar através de um programa de recrutamento da Associação Salvador. Nunca tinha pensado vir trabalhar para um banco, porque a minha formação de base é na área das Línguas e Literaturas. Quando surgiu a proposta do Santander até fiquei um bocado perplexa: o que é que eu vou fazer num banco?”, questionou na altura Joana Bernardo. A colega Luísa fez um percurso semelhante: “Também entrei em 2017, através da Associação Salvador e foi também o meu primeiro emprego”. E quer uma quer outra, querem continuar a estudar. Luísa quer fazer uma pós-graduação e Joana já vai a caminho da terceira: “Fiz uma pós-graduação em Línguas e Literaturas, fiz uma em tradução e agora, com o apoio do banco, entrei numa pós-graduação em Comunicação Estratégica”.

E como foi a adaptação quando chegaram ao banco? Joana declara que quando chegou ao banco, foi para a equipa de sustentabilidade, “que era uma equipa pequena, que acho que foi positivo porque deram-me um acompanhamento mais individualizado, mas sem nunca me tratarem de uma forma diferente ou com condescendência, nem adequar o trabalho porque era eu a faze-lo. Eventualmente, às vezes tinham de me dar mais tempo para fazer as tarefas, mas fora isso foi uma integração normal e com naturalidade. Acho que as pessoas já estavam muito sensibilizadas para este tema do recrutamento inclusivo”. E depois da sustentabilidade, saltou para o departamento da comunicação.

Luísa também sente-se “apoiada pela equipa”, mas enveredou por caminhos diferentes no banco. Apesar da formação de base ser serviços sociais, foi parar ao departamento de Branqueamento de Capitais. “Não é Branqueamento de Capitais, é Prevenção de Branqueamento de Capitais”, corrige-nos Luísa no meio de risos e muita boa disposição. Afirma que era uma necessidade do banco e que se adaptou bem às novas funções. “É uma aprendizagem no local de trabalho”. Fernando Vieira, Gestor de Talento e Desenvolvimento do Santander, confirma que “havia uma necessidade na equipa, e no fundo foi uma aprendizagem on the job, aprendendo com quem está, porque é algo que só se aprende no sítio”.

E o que é que fazem no dia a dia? “O meu trabalho é de análise. Neste momento estou a analisar crimes em operações financeiras. Gosto de fazer aquilo que estou a fazer. Nós somos uma equipa com 24 pessoas. Há imenso que fazer. Analiso os processos, ando a ver pessoas que não são honestas, e pronto, é assim”. No departamento de comunicação, Joana Bernardo dá apoio, tanto à comunicação interna, como externa do banco. “Escrevemos notícias, ajudo na preparação de press releases”, prepara discursos para o presidente, guiões para os vídeos, ajuda nas traduções e nas legendagens. E não há um comunicado que sai sem passar pelas suas mãos: “Sou a chata com as virgulas”, diz a sorrir.

E foi preciso fazer alguma adaptação especial no banco? “Aqui no trabalho são muito poucas porque, de facto, o Santander está muito bem adaptado. E ainda tiveram o cuidado, e acho que é de louvar porque há muito poucas empresas que o fazem, de contratar uma cuidadora para nos dar apoio nas refeições, em todas as necessidades do dia a dia. Em termos de local de trabalho não sinto grandes dificuldades. Tudo o que aparece, com o apoio da equipa, vai sendo colmatado”, refere Joana.

Fernando Vieira explica que o banco tem um modelo de recrutamento inclusivo e que atualmente o Santander já cumpre e até ultrapassou a fasquia de 2% de quota de pessoas com deficiência: “Já cumprimos esse rácio, mas não nos guiamos por ele. Definimos perfis, temos necessidade reais, descrevemos o perfil, e vamos à procura dos melhores para fazer o matching no mercado”, sendo que no caso de trabalhadores com incapacidades o banco trabalha também com recrutadoras associadas ao projeto do ICF, como a Argo Partners ou a Randstad.

Sobre a imposição de quotas obrigatórias, Joana afirma que tem uma opinião muito definida: “Idealmente seria delas não existirem, e espero que daqui a cinco ano talvez não existam. Porque as pessoas devem ser contratadas pelas suas capacidades e por corresponderem à função, independentemente se têm deficiência ou não. No entanto, neste momento, acho que é um empurrão necessário para as empresas perceberem que as pessoas com deficiência motora querem trabalhar e estão disponíveis para ir para o mercado de trabalho e, portanto, pode ser que tornando obrigatório talvez outras empresas percebam que as pessoas com deficiência querem trabalhar, querem estar ativas”.

CATARINA, A INOVADORA NA CUF

Catarina Mendanha Moreira é técnica de Inovação na Direção de Planeamento Estratégico, Controlo de Gestão e Inovação da CUF. Entrou no grupo de saúde através da ICF da Nova, uma casa que conhece bem. Catarina é licenciada e tem um mestrado em gestão pela Nova School of Business & Economics. “Estou com esta incapacidade desde 2015. Por isso, antes fiz o meu percurso normal, entre aspas. Eu só uso a palavra ‘normal’ porque é o que as pessoas compreendem. Mas fiz o percurso habitual como todas as pessoas. Em 2015 é que tive esta desvantagem de ficar a ver só 10%”.

Nessa altura, fez uma pausa na vida profissional, “até porque assim o obrigava a recuperação das operações. Eu fiz onze, nove delas só num ano. Depois de perceber o que é eu conseguia ver, depois do diagnostico final, então comecei a dar os primeiros passos de voltar à vida normal, à vida do habitual, à vida do dia a dia. E conseguir ser mais independente e mais autónoma”. Foi então que regressou ao mercado de trabalho e chegou à CUF, passando a integrar o departamento de planeamento, controlo e inovação.

“Depois de seis anos fora das grandes organizações, voltei a testar-me e a perceber o que é que eu conseguia fazer”. Rapidamente percebeu que conseguia fazer muito. Hoje em dia tudo o que é inovação na CUF passa por ela. O grupo criou um programa em que desafiam os colaboradores a terem ideias disruptivas para resolver problemas; Catarina participa na plataforma Grow, do grupo José de Mello, que funciona com uma aceleradora de startups -- “já fizemos 22 pilotos e já adjudicamos nove deles” -- e ainda olha para as grandes tendências daquilo que poderá ser o futuro no sector da saúde.

No dia a dia, no local de trabalho, a Catarina bastou-lhe pequenas adaptações. “Só tenho um computador aumentado. E um écran que quem chegar no final do corredor já vê o meu email [risos]. É um écran grande e aumentado. Ainda hoje estive a fazer uma apresentação: preparo os slides, ponho tudo direitinho, os meus colegas confirmam a ver se está tudo bem e, quando eu faço a apresentação, já sei os slides de cor e vou passando e não preciso de os ler”. Reconhece que, "obviamente”, não é tão rápida a fazer certas coisas como alguns colegas, “mas se calhar tenho outras valências noutros campos que se calhar a minha incapacidade me obrigou a desenvolver”.

A maior parte das pessoas nem sequer se apercebe que Catarina tem um problema de visão. Conta que às vezes dá formações e que só mesmo no final da aula é que avisa a quem está na plateia: “se eu passar por vocês na rua e não vos cumprimentar não achem que eu não gostei de vocês. Não levem a peito porque eu só vejo 10%”. E remata: “Acho que pode ser uma coisa para dar força às pessoas. Se ela consegue com 10%, eu com 100%...”

Sobre as quotas obrigatórias nas empresas para pessoas com deficiência, tal como a Joana do Santander, “defende e não defende”. Por um lado, “defendo porque ainda não temos uma sociedade totalmente preparada para ter um recrutamento igual, seja eu com uma incapacidade ou não. Por outro lado, não defendo porque se há uma pessoa melhor do que eu para aquele lugar porque é que tenho de ser eu a escolhida, só porque tenho uma incapacidade? Meritocracia acima de tudo. Mas se, apesar da meritocracia, não me escolhem a mim porque tenho uma incapacidade, então vou ter de defender a quota”.

José Luís Carvalho, diretor de Recursos Humanos da CUF, refere ao Expresso SER que o grupo tem uma política de recrutamento inclusivo, mas que sofreu um grande revés com a covid-19. “Durante a pandemia tivemos algumas dificuldades porque nós estávamos sempre em crise com o nosso apoio ao covid. Depois havia muita integração virtual, – contratámos uma série de pessoas que nós nunca tínhamos estado com elas, -- e nestes casos do recrutamento inclusivo é mais difícil porque há uma certa preocupação na integração e na adaptação”. Apesar disso, acredita que em 2023 vão conseguir chegar ao número das quotas, “aos 2%” previstos na lei.

Fonte: Expresso

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