sábado, 13 de março de 2021

Um ano sem pôr um pé no centro de actividades. “Vamos receber pessoas muito diferentes daquelas que conhecíamos”

No princípio, Lurdes Santos até perdia o sono. E se a filha apanhasse covid-19? “Não fala. Usa língua gestual portuguesa. Eu entendo-a bem, mas as outras pessoas não a entendem. Terem de a levar para um hospital e eu não poder estar com ela…”

Daniela não está na sala de terceiro andar que partilha com o pai e com a mãe. A rapariga, de 34 anos, está no quarto a ouvir música. Por instantes, aumenta o volume. “Creio que o amor é a maior/Maior riqueza/ É tudo o que eu tenho pra te dar/Minha certeza.” Trio Odemira.

Deixou de ir ao centro de actividades ocupacionais (CAO) no dia 6 de Março de 2020. Uma semana antes de o Conselho de Ministros aprovar as medidas extraordinárias que incluíam a suspensão das actividades com presença nos equipamentos sociais de apoio à deficiência.

“No início custou-lhe”, diz a mãe. Não percebia por que não haveria de sair de casa, de ir ao CAO, de andar a cavalo, de estar com os avós, os padrinhos ou a tia. Enfiava-se no quarto a ouvir música. “Ela é dada ao sentimento e ao amor. Ia dar com ela a chorar. Dizia-me que estava com saudades do amiguinho, o namorado.”

Falou-lhe no coronavírus. “As televisões estavam sempre a dar a mesma coisa. Ela foi ouvindo falar em internados e em mortos. Ficou com medo de ir à rua. Só passados dois meses de estarmos em casa é que a consegui meter no carro para dar uma volta, mas não quis sair.” É um desafio conduzi-la à dose certa de medo – a que protege sem paralisar.

Quando o Governo ordenou a reabertura dos CAO, pouco a pouco, a partir de 18 de Maio, Lurdes preferiu manter a filha em casa. “Não foi por falta de confiança”, esclarece. O marido, José Santos, até é tesoureiro da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM) do Porto. “Sei que as regras são cumpridas, mas torna-se difícil criar distanciamento. E há pais que trabalham e não têm hipótese de ficar com os filhos, têm de os levar para lá. Eu, pronto, estou em casa… E tenho receio. Tenho muito receio que a Daniela apanhe covid.”

Negociar com as famílias

O primeiro grande confinamento foi uma aprendizagem para todos. As organizações trataram de redireccionar parte dos serviços que prestavam nos CAO para dentro de cada casa. Puseram as equipas em contacto telefónico com as famílias para as orientar.

Teresa Guimarães, presidente da APPACDM do Porto, viu o futuro. “Pode ser muito pesado”, alertava, então. “Temos mães sozinhas que vão entrar numa fase de desgaste grande. Estamos preparados para prestar apoio domiciliário, mas é preciso que as famílias queiram. E muitas não querem. Têm medo que o vírus lhes entre pela porta dentro.”

O desconfinamento obrigou a reajustes. Para respeitar as regras da Direcção Geral de Saúde (DGS), os CAO reduziram a lotação. Era preciso ouvir as famílias. Preferiam horário reduzido ou rotatividade? Decidiu-se atribuir tempo inteiro a quem estava em situação de exclusão ou tinha os pais a trabalhar. Os outros alternariam.

Nem todas as famílias tiveram escolha. Algumas viram-se forçadas a vencer o medo, como a família de Pedro Viana, com síndrome de Wolf-Hirschhorn, uma doença raríssima que o faz precisar de ajuda para quase tudo. No princípio, “dormia mal, andava agitado, agressivo”. Depois, lá acalmou. Mas carecia de atenção permanente. Já nem comia sozinho. E Rosário, a mãe, sentia-se exausta. Viúva, com o outro filho a estudar, tinha de voltar a limpar casas alheias.

Os residentes em lares também não puderam escolher. Por ordem da DGS, aos “utentes que frequentem, em simultâneo, as respostas sociais CAO e Lar Residencial, devem ser asseguradas as actividades no próprio Lar, sob orientações técnicas dos profissionais afectos ao CAO”.

O relatório Deficiência e covid-19 em Portugal, do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos, já indiciava que muita gente nunca voltou ao CAO. Só a APPACDM do Porto tem 164 pessoas inscritas nos seus quatro centros e, dessas, 47 não entram num CAO há um ano por estarem em lar e 22 em casa. Em Outubro, outras 12 deixaram de aparecer.

De acordo com o Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, até agora foram infectados nos CAO 113 profissionais e 161 utentes, 11 dos quais acabaram por morrer. Teresa Guimarães conta nos CAO da sua associação um caso isolado e, mesmo assim, continua a observar uma “grande preocupação” entre os pais. E se apanham covid? E se precisam de internamento hospitalar? “Muitos não falam, falam pouco ou falam mal. As pessoas da saúde não os compreendem. Muitos pais vivem angustiados com isto.”

Realidade que se repete

Relatos em tudo idênticos podem ser ouvidos noutras partes do país. Em Santarém, por exemplo, cerca de três dezenas de pais preferiram manter os filhos em casa desde Março. O próprio presidente da APPACDM de Santarém, Luís Amaral, não leva a filha ao CAO há um ano. “O contacto físico é muito difícil de evitar. Precisa de ajuda para tomar banho, vestir-se, comer. É muito carinhosa.” Como a mulher está em casa, assumiu o papel de cuidadora a tempo inteiro. Também eles têm um medo maior do que a doença. “A minha filha tem 40 anos, mas é como se tivesse três. Fala de uma maneira que nós entendemos, mas ninguém mais entende.”

“Há pais que não quiseram que os filhos voltassem para os protegerem e há pais que não quiseram que os filhos voltassem para se protegerem a si próprios, porque têm idades avançadas e doenças graves”, comenta Helena Albuquerque, presidente da APPACDM de Coimbra. Das 240 pessoas inscritas nos quatro CAO daquela instituição, há 45 que não aparecem há um ano por estarem em lares e 11 em casa.

Ela mesma tinha voltado a levar o seu filho, com trissomia 21, ao CAO e deixou de o fazer quando o número de infecções começou a subir. Horroriza-a a ideia de ele ser internado numa enfermaria de doentes covid. Como se sentiria num sítio estranho, sozinho, sem ninguém que o compreendesse, com sintomas graves, sujeito a tratamentos que provocam desconforto?

Não é uma hipótese teórica. “Tivemos casos destes”, concede. “O internamento de pessoas com deficiência intelectual [em contexto covid] é de uma violência indescritível.” A pandemia mostra como o Sistema Nacional de Saúde ainda lida mal com a diversidade funcional. “Era bom que os hospitais estivessem preparados para acolher estas pessoas com dignidades, mas não é isso que acontece”, lamenta. “Há a preocupação de pôr rampas, elevadores, solos mais tácteis, mas não há acessibilidade ao nível da comunicação. E muitas vezes falta formação para médicos e enfermeiros lidarem com este tipo de pessoas, que, vendo-se sem referências, sem ninguém que as compreenda, ficam com medo, tornam-se agressivas. É preciso estabilizá-las.”

No entender de Helena Albuquerque, que também preside à Humanitas – Federação Portuguesa para a Deficiência Mental, saber isso deveria bastar para incluir todas as pessoas com deficiência intelectual, e não só as pessoas com trissomia 21, no grupo prioritário para a vacina.

Nada aponta nesse sentido. O Instituto de Segurança Social está a enviar emails às instituições que gerem CAO a solicitar listas de funcionários para os integrar no plano de vacinação, mas está a deixar de fora os utentes.

Paula Campos Pinto, coordenadora do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos, não conhece exemplos de países que tenham colocado todas as pessoas com deficiência intelectual na lista de grupos prioritários para vacinação. Conhece, sim, países que as colocaram no grupo preterido para tratamento de covid-19. “Estamos num quadro em que as vacinas escasseiam. O critério de salvar vidas deve imperar”, diz, lembrando que nisso tem insistido o coordenador do grupo de trabalho.

Quem trabalha e mora nos lares residenciais integra a lista de grupos prioritários. No Lar Montes Claros, em Coimbra, os dias de vacinação foram uma alegria. “Gostámos muito”, diz Maria José Ramalhete, uma de dez residentes. “Batemos palmas. Rimos. Para nós foi importante para não apanhar o vírus.”

No princípio, a mulher, de 56 anos, até achou piada ao confinamento. Entretinha-se a fazer renda, a meter a louça na máquina, a cantar e a dançar, a fazer exercício físico e relaxamento. Não tardou a ansiar pelo regresso aos dias de antes. “Tenho saudades dos meus irmãos, dos meus colegas do CAO, da ginástica, da natação.”

Apesar dos mil cuidados e da muita reza, houve surtos em vários lares. De acordo com a tutela, até agora foram infectados 594 utentes e 370 profissionais. Morreram 45 residentes.

No Lar de São Silvestre, que também faz parte da APPACDM de Coimbra, o drama ocorreu em Janeiro: 16 dos 17 residentes apanharam covid, quatro tiveram de ser internados, um morreu.

“Eu ainda julguei que não tinha nada”, recorda Hélia Maia, de 31 anos. Só lhe faltava o paladar. Ficou duas semanas confinada num quarto grande com outras seis raparigas, uma aparelhagem de som e alguns jogos. “Um forrobodó o dia todo!” Já passou, mas não se sente como nova. “Como nova, não.” Percebe-se com menos força. A fisioterapia já foi reforçada. Agora, é contar os dias até à normalidade possível. “Senão a gente dá em maluca!”

Não vê a avó, que vive no Entroncamento, desde Dezembro de 2019. “Para ela é um stress”, diz. “Na primeira vaga, ela queria vir buscar-me. Por causa do vírus, não fui.” Tem saudades dela. Tem saudades da família de acolhimento com quem viveu quando foi retirada à família biológica. E tem saudades do namorado, que costumava ver no CAO na Associação de Paralisia Cerebral. Manda-lhe recados por uma funcionária que é amiga de uma funcionária do lar em que ele reside. Encolhe-se na cadeira a rir só de falar nele.

Não parece haver forma de não perder. Quem mora nos lares ficou privado da vida social, mas vai tendo apoio técnico, foi fazendo as suas terapias. Quem ficou em casa, vai tendo vida familiar, mas ficou privado da ajuda especializada. “A interrupção de terapias e de actividades, por um período que se tem prolongado desta forma, tem consequências”, sublinha Paula Campos Pinto.

“Acho que este isolamento é necessário para evitar a propagação do vírus, mas a população que vamos ter depois da pandemia não será igual à que tínhamos antes”, resume Helena Albuquerque. “É uma população mais apática, que perdeu capacidades em idades em que as perdas são difíceis de reverter. Estamos a falar de uma população adulta, alguma já em idade avançada.”

“Vamos receber pessoas muito diferentes daquelas que conhecíamos”, concorda Teresa Guimarães. “As pessoas que estão em casa há um ano ou há meio ano podem ter a saúde mental fragilizada pelo isolamento, pela ansiedade de apanhar o vírus, mas também a saúde física, por este sedentarismo em que ficaram.” E isso não se resolverá por si. “Temos de nos reinventar. Temos de pensar em novas respostas, novas formas de apoiar as pessoas.”

Preparar o regresso

No quarto de Daniela, a música volta a subir de volume. Roberto Leal. “Ninguém na rua, na noite fria,/só eu e o luar/Voltava a casa,/quando vi que havia/luz num velho bar/Não hesitei, fazia frio e nele entrei.”

É um quarto pequeno decorado em tom rosa bebé, flores, borboletas, princesas do universo Disney – a Cinderela, a Branca de Neve, a Bela Adormecida. Na mesa-de-cabeceira, na secretária e no armário, aparelhagens compradas em várias épocas. Nas gavetas, caixas de CD.

No princípio, Lurdes sentia-se capaz de tudo. Arrumou gavetas. Experimentou receitas. Comprou um tapete para fazer exercícios físicos com a filha. “Com o tempo, ela cansou-se. Até eu!” No CAO, Daniela tinha terapia ocupacional, mas também fisioterapia, hidroterapia, hipoterapia, terapia assistida por cães. “Passava de umas actividades para as outras. Aqui, é tudo repetitivo.”

“Vamos fazer uns jogos”, desafia a mãe. Daniela anui, mas “quer fazer tudo muito depressa”. Prefere estar ali, no quarto, a ouvir música, a ver revistas, a desenhar ou a pintar. “Está um bocadinho assim.”

Até o sono de Daniela se descontrolou. “É uma das piores coisas”, suspira Lurdes. “Sempre gostou da noite. Se pudesse, passeava à noite, ia a festas à noite. Aproveita para estar levantada até tarde. Ouve música baixinho. Dorme a manhã toda, se eu a deixar!”

Várias vezes durante a noite, Lurdes levanta-se e vai vê-la. “Estou sempre a dormir e a acordar, a dormir e a acordar.” Tem receio que ela se levante e vá sentar-se à secretária. “Não veste roupão, apanha frio.” Ou que volte para a cama e não se agasalhe.

Nasceu com uma translocação cromossómica. “Já teve mais autonomia”, diz a mãe. “Já estava a perder o andar. Agora, como está mais parada, mais ainda! Anda pior!” No desconfinamento, conduzia-a até algum espaço verde para caminhar. “Ela gosta!” No confinamento, só andam por ali, à volta de casa. Comprou-lhe uma pequena bicicleta elíptica, mas não vê motivação.

No dia 5 de Abril, reabrem os equipamentos sociais para pessoas com deficiência. “Desta vez, acho eu vou perder o medo e mandá-la para a associação, mesmo sem estar vacinada.” Lurdes disse a José: ‘Vamos ter de preparar o coraçãozinho para conseguir mandar a Daniela. Eles têm todos os cuidados e mais alguns. Ela tem de ir. Até para regular o sono.’”

No CAO, que Daniela frequenta desde os 11 anos, há um trabalho individualizado. Cada um tem um plano traçado para estimular o seu desenvolvimento. E os técnicos têm estratégias para motivar.

Tudo o que podia fazer, Lurdes fez. Para poupar a filha à covid-19, negligenciou até os cuidados de que precisa. “Estou com muita dificuldade em ler. Era para ser operada aos olhos e não fui. Tive medo de apanhar covid e de passar à Daniela. Remarquei apara Maio a consulta.” Não pode continuar a adiar a sua vida. Nem a da filha.

Fonte: Público

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