domingo, 5 de maio de 2019

Aliu e Celso não deixaram a cegueira roubar-lhes os sonhos

Aliu Baio veio para Portugal com apenas 10 anos à procura de um tratamento médico que lhe salvasse a visão. Já não havia nada a fazer e não foi possível reverter a cegueira total do jovem, mas Aliu garante não guardar qualquer mágoa por causa da sua sorte. "Para ser sincero acho que não tive mesmo trauma. Claro que há coisas de que tenho pena. Mas a minha cegueira foi lenta e permitiu-me ir habituando à ideia." E nota-se que o jovem de 24 anos encontrou o seu lugar. É estudante universitário, ganha campeonatos nacionais desportivos e é baterista numa banda que está a caminho de editar o primeiro álbum.

Tudo isto também é possível porque encontrou uma casa no Lar Branco Rodrigues, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, uma instituição que ajuda pessoas com cegueira congénita ou adquirida no caminho para a autonomia. Depois da reabilitação, é aqui que quem não vê encontra um porto de abrigo enquanto frequenta a escola ou faz formações profissionais em Lisboa.

Acidente obrigou a mudar uma vida

Celso Pessoa Pires, de 42 anos, é outro dos utentes do Lar. Ficou cego depois de um acidente de viação, em 2010. Veio de Cantanhede para Lisboa para fazer o processo de reabilitação, depois do acidente, e por cá decidiu ficar. Comprou casa em Cascais, há cinco anos, e saiu de debaixo da asa dos pais, a pensar "nas oportunidades de trabalho e nos transportes públicos" que a capital oferece, e que são mais escassos na sua terra natal.

A ideia era ficar na zona de influência do Lar, para contar com o apoio dos seus profissionais e ficar próximo de outras pessoas que por aí foi conhecendo.

Celso, que antes do acidente vivia com os pais e trabalhava na construção civil, não baixou os braços depois de a sua vida ter mudado radicalmente. À reabilitação no Centro de Nossa Senhora dos Anjos - onde aprendeu a organizar-se sozinho, agora sem ver -, seguiram-se várias formações profissionais. "Só tinha o sexto ano", conta, para explicar porque decidiu dedicar-se aos estudos em busca de um novo rumo profissional. No currículo já tem um curso de informática na Fundação Martin Sain, que terminou em 2014. Seguiu-se um curso Técnico de Apoio à Gestão, após o qual estagiou na Câmara de Oeiras. Mesmo assim não foi fácil encontrar trabalho e decidiu mudar para outra área que também lhe enche as medidas: tirou o curso de auxiliar de fisioterapia na A.P.E.D.V. e, no ano passado, regressou ao Lar como utente externo para frequentar o Curso de Massagem de Relaxamento e Bem-Estar, que terminará este verão, depois do estágio.

Celso admite que era nesta área da massagem e bem-estar que gostava mais de conseguir trabalho. "Não se passa tanto tempo sentado como no apoio à gestão", explica. Agora só falta mesmo que essa oportunidade chegue.

Veio da Guiné e ganhou uma vida

Aliu Baio é um caso bem diferente de Celso. Apesar de não ser cego de nascença, fala quase como se nunca tivesse visto. Quando nasceu, em 1994 na Guiné-Bissau, ninguém se apercebeu de que não via do olho direito. E aos 4 anos teve o acidente que o deixou também cego do olho esquerdo - a tenra idade justifica que Aliu não se lembre muito desse momento.

"Disseram-me que quando nasci, nasci a ver mal de um olho, do direito, mas ninguém notou, não se fizeram aqueles testes que existem agora. Quatro anos depois houve uma guerra civil em Bissau e eu estava mais a sul, com os meus avós e com os meus irmãos. Estávamos a brincar na estrada - lá passam carros de hora a hora - e dizem que vimos um carro cheio de tropas vir na nossa direção e corremos todos para as plantações de caju. Só que eu não vi um pau que me picou no olho que estava bom." Aliu recorda-se que depois desse episódio foi perdendo a visão gradualmente e que a guerra impediu que fosse logo levado para o hospital. Mais tarde, quando chegou ao hospital, foi operado "umas quatro vezes, mas não deu em nada". Tinha glaucoma nos dois olhos.

O passo seguinte foi procurar ajuda em Portugal. E ainda houve alguma esperança de que pudesse recuperar parte da visão - "só que não deu resultado, mas também não importa", resume o jovem.

Em Portugal, Aliu foi operado apenas para que o seu estado de saúde não piorasse. Depois começou a frequentar o Centro Hellen Keller, para crianças com deficiência visual, onde era aluno de Excelente, e acabou por ir ficando pelo nosso país. Este ano conseguiu mesmo a nacionalidade portuguesa. Por cá, descobriu também o desporto adaptado. Começou no karaté e desde 2009 pratica também goalball, modalidade em que é federado no Sporting Clube de Portugal. Fez vela adaptada durante quatro anos, tornando-se federado do Clube Naval de Cascais, e já alcançou o 2º lugar na classe Access. Seguiu-se a esgrima adaptada, tendo conseguido um 5.º lugar no primeiro campeonato europeu. É ainda federado em judo adaptado.

Aliu fala com orgulho da sua carreira no desporto e frequenta agora o 1.º ano do curso de Psicologia, mas tem outra atividade que lhe enche ainda mais a alma: a música. Apesar de ser a última de que fala, é a sua paixão. "Foi num aniversário de um amigo, no primeiro ciclo, e o irmão dele tocava bateria. Eu nunca tinha visto uma bateria, nem sabia como era. Achava que era um instrumento com pratos e tambores todos espalhados. Sentei-me e do nada começo a fazer ritmos." Foi amor à primeira batida. Começou a ter aulas de música na escola e posteriormente frequentou a Escola de Jazz Luiz Villas-Boas - Hot Club de Portugal, onde aprendeu também saxofone e piano. Está agora a terminar aqui a sua formação, reconhecendo que teve um apoio extra dos professores, apesar de a "música não precisar de olhos".

Para o seu recital final, em junho, vai levar a banda - os Vertigem - e têm sido eles o seu pilar. "É o projeto com que quero trabalhar na música. Estamos a gravar um álbum. É um grupo muito especial para mim, pelo forma como nos conhecemos e como partilhamos a nossa energia nos ensaios. Somos quase uma família. Queria agradecer-lhes por não terem preconceitos."

É para ver os seus utentes encontrarem o seu caminho que o Lar Branco Rodrigues existe, como confirma a diretora Ana Silva. "O que nós queremos é que eles sejam autónomos e completamente independentes, que venham a ser pessoas que não dependam das instituições. Queremos desmistificar a questão da institucionalização da pessoa deficiente. São pessoas que só não veem, têm capacidades que lhes permitem desempenhar os mesmos papéis que nós e serem cidadãos completos."

Fonte: DN

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