A porta do edifício amarelo-torrado, encontramos um lema "Semear Terra de Oportunidades". E, ao mesmo tempo, um facto: "Em 10 milhões, 10% nascem com deficiência." Quando se entra, várias caixas com produtos frescos, vindos da horta na Estação Agronómica de Oeiras, chamam a atenção. Pimentos verdes, vermelhos, abóboras, curgetes, etc. O cheiro a vinagre denuncia tarefas na cozinha. "Faz-se chutney de ameixa", explicam-nos.
O Natal está à porta e na Semear preparam-se cabazes para venda, "esperamos alcançar os oito mil", diz Raquel Monteiro, uma das técnicas que ali está desde o início. Nas salas de aula, duas turmas, uma no módulo de formação profissional outra no de empregabilidade. Neste momento, há 31 pessoa em formação, mas desde 2104 até agora os números dão conta que por ali já passaram mais de 70 formandos, mais de 20 já integrados no mercado de trabalho.
Ali trabalha uma equipa de seis técnicos, liderada por Joana Santiago Pinto, com o objetivo de dar respostas à população com deficiência que procura entrar no mercado de trabalho. Normalmente, são jovens a partir dos 18 anos que saem da escolaridade obrigatória e que não têm para onde ir. Não vão para cursos superiores, mas também não encontram trabalho. Mas ali chegam também pessoas com deficiências que se encontram no desemprego ou a receber o Rendimento Social de Inserção (RSI), mas que procuram um sentido para a vida, uma autonomia e independência.
Joana aprende a conseguir caminhar por entre culturas
Na academia da Semear, aprende-se "matemática para a vida", bem como outras competências socioprofissionais e emocionais. A área de formação é a agroalimentar havendo três módulos específicos, um na área da agricultura, outro na indústria e o último na área do comércio. Mas o "importante são as competências de empregabilidade que adquirem e que depois são transversais a qualquer setor", explica Joana Santiago.
O mais importante é dar resposta às pessoas que estão em idade adulta e que até ao momento não tiveram uma oportunidade no mercado de trabalho. O nosso objetivo é dar-lhes formação e integrá-las, mostrar à sociedade que estas pessoas ou que estes jovens podem ter um lugar.
"Em Oeiras, temos uma terra com dez hectares onde fazemos produção hortícola, aqui temos a mercearia semear que consiste no combate ao desperdício alimentar e na transformação dos produtos frutícolas e hortícolas em molhos, temperos, compotas, etc. Cria-se um valor comercial e social de forma a tornar o projeto sustentável, mas também a criar postos de trabalho", explica-nos.
"O meu sonho é começar a trabalhar"
Na cozinha, Miguel, de 32 anos, no quarto módulo de formação na área da indústria, descasca as abóboras vindas de Oeiras. Vera ajuda-o. A tarefa é preparar o produto para compota, ainda há que fazer mais uns 280 a 300 frascos para completar os cabazes. O alecrim arrumado nas bancadas indicia outra tarefa. "É para fazer geleia de alecrim e aromatizar azeite", responde-nos a D. Filomena, a responsável da cozinha.
Ali também se faz cebolinho caramelizado, doce de ginga, de tomate com canela, chutney, etc. Produtos que são também vendidos na loja online da própria Semear ou em lojas gourmet, porque "tudo tem certificado de qualidade, tudo é feito sem aditivos, de de produto artesanal."
Miguel está há ano e meio na Semear. O tempo médio de formação é de dois anos. Pode ser mais, ficam até estarem preparados para integrarem o mercado de trabalho. Ele já tinha experimentado outras áreas, hotelaria e serviços. Passou pela Nespresso, no Fórum de Almada. Ficou desempregado e decidiu fazer formação na área da indústria. "É o meu sonho, começar a trabalhar."
Lá fora outra turma faz formação no módulo de corpo e ação. A aprendizagem é de coordenação óculo-manual. Coordenar o olho à mão. Por isso, treina-se o equilíbrio, o atirar objetos para acertar num pin e orientação espacial. Jaime, de 27, Rafael de 25, Martin de 22 e Joana de 28 anos treinam a tarefa de terem que chegar a um objeto em 8 passos, 10 ou até em 14.
Função óbvia para uns, para outros difícil e essencial saber desempenhá-la para se orientarem num espaço desconhecido. "Assim percebem o que têm de fazer para não se perderem ou desorientarem", explicam-nos. Na mini-horta treina-se o equilíbrio, para não pisarem as culturas e não serem despedidos, "o que já aconteceu".
Quando se estuda palavras para um currículo ou carta de apresentação
Lá dentro do edifício, situado no Instituto de Agronomia, em Lisboa, outra turma estuda as palavras, aquelas que podem compor uma carta de apresentação para um emprego ou até para um currículo. É outro módulo da formação que fazem na academia.
José Godinho de 37 anos já esteve a trabalhar num armazém, mas não teve perfil para ficar. Por isso decidiu fazer formação e ter um certificado. Está na Semear desde março. Daniel Jorge também lá está desde essa altura. Estava inscrito no centro de emprego, como "não tinha nada para fazer aconselharam-me a vir para aqui." A academia funciona em parceria com os Centros de Emprego. O seu sonho é poder trabalhar com carros, embora ali a formação seja toda para a área agroalimentar. Simplesmente, recebem competências que são transversais a qualquer setor.
Depois da formação há a fase da empregabilidade, aquela em que se procuram empresas que possam necessitar de formandos com determinados perfis. Fazem a ligação às empresas e o acompanhamento delas, pelo menos, durante um ano após a formação.
Neste momento, ainda é muito a Semear que vai até às empresas, mas quem ali esta quase desde o início acredita que há de chegar o tempo em que serão as empresas a irem à procura de pessoas com deficiência para os recrutar.
Para Raquel Monteiro, 34 anos, técnica de reabilitação e inserção, formada no ISPA, e quase há dez no projeto "é muito gratificante ver como conseguimos evoluir, somos poucos, mas passo a passo vamos caminhando e é assim que se faz o caminho."
A Academia Semear nasceu em 2014, mas já antes existia o BIPP - com a missão de desenvolver projetos para a inclusão de pessoas com deficiência. Joana Santiago Pinto conta que chegou a certa altura da sua vida e pensou que teria que ser útil à sociedade, "sou mãe de um jovem deficiente, e se calhar poderia fazer algo mais para ajudar outras pessoas." Foi assim que decidiu avançar para a constituição de uma associação. Começou com um grupo pequeno, três pessoas, ao fim de quatro anos tinham uma plataforma ou banco de informação feita por eles.
"A Plataforma foi construída por nós, com informação recolhida por nós, e começou a funcionar em 2009. Eu estava como voluntária, mas tinha duas técnicas que faziam pesquisa e o atendimento às famílias. A plataforma reunia informação que ia desde a educação, leis, direitos, cuidados de saúde, etc, destinada às pessoas com deficiência. Ainda funcionou até 2014, depois avançámos com o projeto da Academia Semear para dar resposta à população adulta."
Há três anos, Joana decidiu deixar a profissão que teve durante mais de 30 anos, enfermagem, para se dedicar a tempo inteiro a estes projetos. Deixou de ser voluntária para assumir funções na direção, tem a trabalhar consigo, quase desde o início Raquel Monteiro e Catarina Bento, esta responsável da área da formação. E como diz, sobrevivem à custa de muito trabalho e de um mix de financiamentos. No entanto, 40% das receitas já são geradas pelos próprios projetos. Dos 16 colaboradores que têm cinco têm deficiência.
Acha que ainda está longe o tempo em que as empresas irão à procura de pessoas com deficiência para recrutar, mas também acredita que a sensibilidade de algumas empresas já é diferente. "Há cada vez mais empresas que estão assumir uma política de solidariedade social. E esse pode ser o caminho."
Fonte: DN
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