Três médicos, um neuropediatra, Nuno Lobo Antunes, um psiquiatra, Pedro Levy, e um oncologista, pai de uma mulher com autismo, Fernando Campilho, falam sobre o medo, as angustias, o stress e a pressão nas famílias e a falta de resposta dos serviços.
"É sempre assustadora, mas depende de muitas circunstâncias..."
Nuno Lobo Antunes é médico, neuropediatra, acompanha crianças e jovens com perturbações do desenvolvimento e comportamento, a maioria com espetro de autismo, hiperatividade ou défice cognitivo. E à pergunta: A deficiência é assustadora? Não hesita na resposta. "É sempre assustadora para os pais, quando recebem o diagnóstico, mas também para quem está à volta da criança ou do jovem. Tudo depende de uma série de circunstâncias, e a questão económica é das que conta muito. Portanto, é assustadora, a curto, a médio e a longo prazo."
E continua: "Depois, é assustadora a médio e a longo prazo quando os pais passam a fase da aceitação e têm de pensar. E agora? Como vai ser com os meios de suporte? Terapêuticas, psicólogos, médicos? Como vai ser no futuro? Como vai evoluir? Vai conseguir ser autónomo, gerir a sua vida? O seu dinheiro? Ter um emprego? Integrar-se na sociedade? O grau de angustia e o sentimento de ser assustadora dependem muito do suporte económico que as pessoas têm e dos meios técnicos e até sociais que têm ao seus dispor."
A argumentação não deixa dúvidas. Como muitos pais dizem, a deficiência começa por ser "um murro no estômago". É o tempo em que as questões surgem em catadupa: "Porquê o meu filho?", "O que fiz de errado?". É o tempo em que os pensamentos quase "nos destroem o cérebro", confessam. São poucos os que não revivem momento a momento da gravidez, do seu historial de saúde ou até da família para terem certezas quanto ao que pode ter acontecido, quer seja uma deficiência mental, intelectual ou motora.
Mas também são poucos, os que, no fim, e depois de fazerem um caminho "duro", como muitos dizem, não aceitam a situação, querendo apenas que os seus filhos e familiares "sejam felizes".
Portanto, desistir? "Não é uma opção", dizem-nos. "São os nossos filhos, diferentes, mas nossos." A solução é avançar, é fazer o caminho do calvário, tantas vezes, na Segurança Social, em instituições e em outros tantas unidades. Porque, dizem, "por vezes, o mais desesperante é não se conseguir obter respostas". Ou, para quem tem filhos já adultos, "ter de defender quase diariamente que eles são pessoas e que têm direitos".
O neuropediatra viveu vários anos nos Estados Unidos da América, regressou há 17, e conta que nunca esqueceu um professor que costumava dizer: "Não há pais difíceis, há pais com um problema difícil de resolver." Ou pelas condições em que vivem, pelos recursos e meios técnicos que podem ter ao seu dispor, seja pelo que for. "Há sempre fatores individuais que influenciam a resposta perante um problema destes."
Inclusive, o fator da religião. "Quem tem fé em algo pode sentir outro conforto, outra esperança, quem não tem fé, os ateus, por exemplo, por vezes, é mais duro." E pode dar-se até o caso de que a angústia e até uma certa culpa se virem contra os próprios técnicos: "Há pais que questionam imenso e que pressionam as respostas, quando não as há. E que nos dizem, como é possível a ciência ainda não ter descoberto uma cura para o meu filho?"
Perguntas que doem, mas para as quais nada mais do que já se faz se pode fazer. Há sempre o reverso da medalha. Há pais que se queixam até de os próprios técnicos os fazerem sentir-se culpados, sobretudo quando "não há espaço nem dinheiro para mais terapias, quando há outros filhos para cuidar e tratar".
Como diz o médico, "somos seres muito complexos, não há uma resposta simples para todas as questões que a deficiência coloca", mas de uma coisa tem certeza, "o trabalho tem de ser feito com o doente e com a família, com quem está à volta e até com a escola ou outros cuidados em rede. "Dou consultas no Algarve, na Madeira, no Porto, em Abrantes, em Leiria e em Lisboa e sei bem que a distribuição de recursos é extraordinariamente assimétrica nos vários pontos do pais. Temos locais onde a resposta é excelente, como Lisboa e Porto, e temos outros em que pura e simplesmente não existe."
Por isso o neuropediatra defende: "Ainda há muito a fazer na sociedade portuguesa", apesar de considerar que "nestes 17 anos o país fez um caminho fantástico. Não tem nada que ver com o que se fazia quando cheguei. Os progressos que registo são sobretudo a nível da educação, da informação, hoje olhamos muito mais para as nossas crianças, os pais são mais cultos, mais informados do que as gerações anteriores".
Mas mesmo assim, sublinha, e apesar de considerar que a "sociedade mudou, assumiu outros valores que não tinha antigamente - como em relação à identidade de género, à homossexualidade, às diferenças rácicas - somos muito mais tolerantes, a questão da deficiência continua a ser uma das que resulta numa taxa elevada de divórcios", argumenta, acrescentando: "É uma situação frequentíssima."
O aumento do divórcio entre pais com filhos com autismo é cinco vezes superior à média em geral. Portanto, isto significa com certeza que a deficiência continua a ser uma situação de grande stress para o casal. Isto é muito relevante, porque é preciso fazer sempre um trabalho com o doente e com a família, mas, muitas vezes, é necessário estender este trabalho à escola e a uma equipa multidisciplinar.
Por fim, Nuno Lobo Antunes não tem dúvida de que o caminho a fazer pela sociedade portuguesa tem de ser através da educação, da inclusão, há muito a fazer, mas isso é o mais importante. "As crianças que convivem com crianças deficientes serão adultos mais tolerantes, serão adultos que não irão olhar para a deficiência de maneira pejorativa, porque não foram habituados a isso, e penso que esse é o caminho, pois estas crianças serão no futuro os adultos com poder de influência na sociedade, poderão mesmo ser os decisores políticos."
"É murro no estômago, mas há que lutar e dar a volta por cima"
Fernando Campilho, médico de medicina interna, oncologista no IPO do Porto, na área dos transplantes de medula, foi surpreendido há 36 anos com um diagnóstico. Ele, médico, a mulher farmacêutica, sentiram um "murro no estômago" quando tiveram o diagnóstico sobre a situação da filha.
(...) conta que começaram por se aperceber de algumas situações, mesmo antes de ela fazer um ano. O diagnóstico não demorou muito tempo, mesmo assim fizeram muitos exames de avaliação de comportamento. "Naquela altura, em 1982, era bem mais difícil do que agora, não havia tantos meios." Por isso, à pergunta: a deficiência é assustadora? Prefere responder, "pode ser, é sem dúvida um murro no estômago, mas há que lutar e dar a volta por cima, depende muito da capacidade das pessoas. Por isso aconselho sempre os pais, que assim que têm um diagnóstico, que atuem, quanto mais depressa se intervir nas idades precoces, mais hipóteses há de uma evolução com mais resultados".
Fernando Campilho integra hoje os órgãos dirigentes da APPDA-Norte (Associação Portuguesa e Perturbações dos Dependentes de Autismo). A filha frequenta a unidade que ali está instalada. "Ela é muito dependente. Foi sempre. E vai precisar sempre de alguém com ela." Por isso, o que ainda os angustia mais: "É o futuro dela. Os pais podem morrer e ela terá sempre autismo. Hoje temos autismo na terceira idade e há que garantir uma resposta para esta fase e é isso que estamos a tentar fazer. Só queremos que, mesmo depois de os pais não estarem cá, ela continue a ser feliz."
Tiveram sempre uma pessoa que os acompanhou e ajudou muito desde que a filha tinha 1 ano. Se assim não fosse, reconhece, "ficaríamos muito limitados e não poderíamos exercer as nossas profissões". O facto de estarem os dois ligados à área da medicina, da saúde, ajudou-os, de certa forma, "a procurar algumas respostas, mas isso não é tudo".
Porque o que está por trás da deficiência ou no aceitar a deficiência é todo um trabalho como pessoa. Por exemplo, "quando ela era mais pequenina as pessoas achavam que era malcriada, tinha comportamentos menos estereotipados e nem sempre os outros aceitavam bem. Isso custou-nos muito, mas temos de avançar".
Ao fim destes anos, sabe que "há pais que ainda escondem os filhos com deficiência, eu acho que isso não adianta, é preciso dar uma vida a essas pessoas, é preciso que lutem, e de uma maneira proativa. O conselho que posso dar a esses pais é que integrem grupos com outras pessoas com os mesmos problemas iguais aos seus, porque aquilo que eles estão a viver, já os outros viveram e venceram".
Nem todos os casos são iguais e é importante também que as situações sejam muito bem explicadas aos pais por parte dos técnicos. "É importante explicar tudo aos pais, sobretudo a alguns mais novos, mas também é importante que alguns destes pais convivam com outros, não adianta esconder o problema do filho, o que é preciso é integrar estas crianças o mais rápido possível, antes de serem adultos."
Ao longo da vida, as perguntas em relação a estas crianças ou jovens vão sendo iguais às de qualquer outro pai. O que será do meu filho? É a mais comum. Uns e outros tentam sempre garantir que o futuro seja bom, tudo depende das exigências que lhes façam, uns e outros respondem, mas de acordo com as suas capacidades ou incapacidades.
Todas estas crianças e jovens, de acordo com o ciclo da vida, irão chegar à terceira idade, com pais ou sem eles. E é esse futuro que é preciso acautelar. Se não são autónomos, Fernando Campilho diz que as instituições têm um papel muito importante a desempenhar. "Há que encontrar respostas para esta situação", defendendo que "as unidades e instituições que têm feito trabalho nesta área, e bom trabalho, deveriam ser mais acarinhadas pelo governo".
Por isso lança um alerta aos pais: "É importante unirem-se, funcionarem em conjunto, porque se formos mais a lutar teremos mais poder para mudar."
Assustadora? Pode ser, mas o desafio é encontrar um sentido para a vida
Para Pedro Levy, psiquiatra que acompanha sobretudo doentes com deficiência mental, a incapacidade pode ser assustadora, mas o grande desafio é conseguir que a pessoa, e quem a rodeia, aceite essa condição e que tente encontrar um sentido para dar à sua própria vida.
"Acho que este é o grande desafio para os doentes, para as famílias e para a própria sociedade", afirma, embora, acrescente: "A sociedade portuguesa ainda não está organizada para ajudar estas pessoas, ajudá-las a sentirem que existe um caminho para elas, apesar da sua incapacidade ou dificuldade. Quando é isto que já acontece em muitos outros países mais desenvolvidos do que Portugal."
"Já não estou a falar se a pessoa é muito produtiva ou competitiva no mercado de trabalho, não. Falo de uma vida que faça sentido para a pessoa com deficiência, uma vida em que ela se sinta integrada, uma vida num meio em que se consiga adaptar", especifica, voltando a sublinhar: "O que noto é que do ponto de vista organizacional, político, empresarial, a nível das próprias famílias e da sociedade, ninguém presta muita atenção à deficiência."
Para o psiquiatra, "em Portugal fala-se muito destas coisas, mas não se faz nada. Há muitas leis, muitos projetos, algumas unidades de cuidados, mas que não abrangem a grande maioria das pessoas com problemas". Portanto, afirma: "Não vejo que seja uma sociedade muito inclusiva." E vai mais longe: "Não acredito nas instituições em Portugal. Não acredito. Acredito em pessoas que individualmente, ou nesta ou naquela instituição, ou até de forma voluntária, conseguem desenvolver determinados projetos, ajudar algumas pessoas. Agora a nível de instituições, não acho que se faça alguma coisa. Infelizmente, esta é a posição que tenho hoje."
Ou seja, "para que estas pessoas, e falo sobretudo das pessoas com deficiência mental, possam superar os seus handicap negativos para serem capazes de dar sentido à sua vida, precisam da ajuda da família, das organizações sociais e políticas, das empresas, que também não vejo que tenham grande sensibilidade para as acolher. Há leis para isso, mas que eu saiba não há muitas empresas a integrarem pessoas com deficiência. Enquanto em Inglaterra ou nos países nórdicos a sensibilidade para esta questão é muito maior. Não estou a dizer que Portugal é o pior país, não, o que estou a dizer é que não há de facto uma estrutura pensada para integrar estas pessoas".
Mas não é só a nível da organização e das estruturas que este médico defende que a sociedade portuguesa tem de trabalhar e fazer um longo caminho, é também ao nível da educação. Porque, muitas vezes, os obstáculos à integração destas pessoas começa nas expectativas das próprias famílias e da própria sociedade. "Às vezes, as famílias são um obstáculo", argumenta. Isto porque "traçam para aquelas pessoas exigências às quais nunca poderão responder, continuam a ter expectativas que não são realizáveis e isso dificulta muito o trabalho que a própria pessoa com deficiência possa fazer para dar um sentido à vida, que é aquilo que cada um de nós procura, independentemente do percurso que se faz". O médico do Hospital de Santa Maria sublinha: "É preciso gerir a expectativa dos pais, e, muitas vezes, é necessário modificar aquilo que as pessoas pensam da realidade que têm à sua frente."
Este é o trabalho que muitas vezes tem de ser desenvolvido pelos técnicos. Não é só o trabalho com a pessoa com deficiência, o ensiná-la a lidar com a sua dificuldade, é também com as famílias, com as pessoas que a rodeiam, para que as expectativas mudem, porque estas não podem ser iguais à de todas as outras pessoas sem deficiência, têm de ser expectativas adequadas àquilo que cada pessoa pode dar.
"Todos os técnicos que lidam com pessoas com deficiência têm de ter isto sempre presente, e como um objetivo. Não é fazer que os doentes tenham uma vida igual à dos outros, mas que tenham uma vida que faça sentido para eles, e que, acima de tudo, seja compensadora para a sua própria exigência."
O tratar ou lidar com a deficiência não é só um processo que "se defina com tratamento medicamentoso ou só com apoio psicológico ou só familiar. É um processo que envolve um conjunto de fatores, como psicológicos, sociais, familiares". Porque, no fundo, remata, "a vida é tudo isto, não é só a doença".
A atitude não é diferente daquela que se exige a qualquer outra família, a questão aqui "é que as pessoas com deficiência precisam de muito mais apoio, como é óbvio".
O médico reconhece que não sabe bem o que se passa com pessoas com deficiências físicas, mas, em relação às pessoas com deficiência mental, não tem dúvidas. "Portugal ainda não é uma sociedade inclusiva, está muito longe de dar a estas pessoas o apoio que elas precisam. Tudo o que se tem feito tem sido à custa de muita determinação de algumas pessoas, de alguns grupos, de unidades de técnicos ou de famílias, mas estamos muito longe de podermos integrar as pessoas com problemas graves psiquiátricos na sociedade. E de sermos uma sociedade inclusiva."
À pergunta sobre o que é preciso fazer? Também não tem dúvidas. "É preciso ouvir os doentes, as famílias, os técnicos ligados às organizações, a projetos. Há sempre a questão de não haver dinheiro, mas acho que isso é uma desculpa, acho é que não há na perspetiva de quem organiza na área da saúde mental, como na dos órgãos de decisão política, a sensibilidade necessária para se acompanhar, desenvolver e estimular estes doentes a vários níveis. Há um certo autismo das pessoas que decidem sobre estes assuntos, não ouvem as pessoas."
Dá exemplos: "Estamos em 2018 e só há pouco tempo é que as famílias começaram a fazer parte do Conselho Nacional de Saúde Mental, famílias de doentes mentais, isso prova bem como as coisas são decididas sem ouvir quem está mais dentro dos problemas."
Basicamente, as soluções para estas pessoas continuam a ser as famílias e as instituições, quanto à integração... há muito a fazer. E se a deficiência é assustadora? Sim, também pode ser se o caminho da inclusão não for feito.
Fonte: DN
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