Camada sobre camada, a discriminação vivida por pessoas com deficiência é uma realidade com que se deparam diariamente e ao longo de toda a vida. Para lá das barreiras físicas da arquitetura que impedem Ana Sesudo, Shani Dhanda ou Tiago Fortuna de se moverem livremente no espaço público, são os obstáculos culturais que mais dificultam a sua vida. Em comum têm a esperança de poderem contribuir para mudar a forma como a sociedade olha para a população com algum tipo de incapacidade, física ou cognitiva, e de conseguirem contrariar a realidade espelhada pelas estatísticas sobre quem tem uma deficiência. E essa realidade, mostram os números, está longe do que consideram ser o significado de inclusão.
De acordo com o Observatório da Deficiência e Direitos Humanos (ODDH), a taxa de risco de pobreza ou exclusão social era, em 2021, de 30,5% para agregados familiares com pessoas com deficiência - quase o dobro do estimado para a generalidade da população (18,8%). "Claro que temos uma população que é economicamente desfavorecida e está sempre em maior risco de pobreza, até porque tem maiores custos de vida", comenta Tiago Fortuna, fundador da Access Lab e portador de uma deficiência física que o obriga a deslocar-se, desde sempre, numa cadeira de rodas.
Shani Dhanda, ativista britânica pelos direitos das pessoas com deficiência, usa a realidade do Reino Unido para enquadrar dados como aqueles publicados pelo ODDH. "Por cada 100 libras que uma pessoa sem deficiência tenha, esse valor equivale a apenas 68 libras para uma pessoa com deficiência", disse durante a sua participação nas Conferências do Estoril, em setembro.
E é fácil perceber a razão por detrás desta comparação, explica a Associação Portuguesa de Deficientes (APD): custos diretamente relacionados com a condição médica, nomeadamente compra de medicamentos ou de material de apoio como cadeiras de rodas, andarilhos ou scooters de mobilidade, entre outros. Mas a estes, sublinha a presidente Gisela Valente, juntam-se despesas adicionais a que muitas vezes não podem fugir para se deslocarem para a escola ou o emprego. "Considerando a inacessibilidade dos transportes e dificuldade em assegurar que chegará a horas ao trabalho, uma pessoa com deficiência só tem a opção de utilização de transporte privado", enuncia.
Esta foi a experiência vivida por Ana Sesudo, paraplégica desde os 12 anos -- na sequência de um acidente de viação --, quando, após concluir o Ensino Superior, procurou entrar no mercado de trabalho. Foi numa multinacional que encontrou uma oportunidade, sem saber, contudo, que ter um emprego seria apenas o primeiro de muitos obstáculos a superar.
"Difícil foi o resto. Estava sem qualquer tipo de mobilidade porque não tinha carta, não tinha carro ou transportes públicos adaptados. Era muito difícil chegar ao local de trabalho", recorda. "Percebi que até o emprego que tinha quase como certo estava em risco se não conseguisse ultrapassar todas estas barreiras", aponta, lembrando o apoio fundamental que teve de amigos e da família. Hoje, aos 45 anos, Ana Sesudo trabalha na área dos seguros e procura ajudar a comunidade através da APD, com que colabora como presidente da mesa da assembleia-geral.
Escassez de dados
Todas estas dificuldades, da formação, ao emprego, ajudam a explicar um número que Tiago Fortuna considera preocupante: 84,4% das pessoas com incapacidade em Portugal não tem atividade económica. Os dados são do Censos 2021, da responsabilidade do Instituto Nacional de Estatística (INE), e merecem crítica, acredita o especialista em Comunicação e Acessibilidade.
Por um lado, explica, a alteração de metodologia nas questões colocadas pelos Censos 2021 face à edição anterior levou a uma caracterização deficiente da população -- em 2011, o INE identificava mais de 1,7 milhões de pessoas com deficiência, valor que baixou para pouco mais de 1 milhão no último questionário. "O INE diz que os dados não são comparáveis, mas não consigo aceitar que tenham desaparecido 700 mil pessoas [com deficiência]", afirma.
Por outro lado, o fundador da Access Lab considera que a esmagadora taxa de inatividade económica não é "representativa da comunidade" e, mesmo que fosse, levaria a que a sociedade perguntasse "por que é que isto acontece e como podemos contrariar este padrão".
De facto, os resultados dos Censos 2021 não permitem uma análise rigorosa da população com deficiência no país. O INE coloca no mesmo saco todo o tipo de incapacidade -- visual, auditiva, motora ou cognitiva - e em todos os graus, desde uma pessoa idosa com dificuldade em subir degraus a um portador de deficiência. Além de dificultar a caracterização das condições de vida desta parte da população, o inquérito não permite saber quantas pessoas com deficiência existem em Portugal.
"A APD desconhece a realidade do número de pessoas com deficiência, uma vez que a metodologia utilizada nos Censos não tem sido a mais eficaz", esclarece Gisela Valente, que acrescenta que a associação "alertou" o INE aquando da preparação do estudo. Sem dados, torna-se difícil, senão impossível, avaliar "políticas e medidas públicas destinadas a assegurar a igualdade de oportunidades e de direitos", sublinha a APD.
Porém, o levantamento demográfico do INE permite concluir que há ainda muito caminho a percorrer no que respeita à garantia de condições de vida dignas para pessoas com incapacidade. No que respeita à atividade económica, "a capacidade de estar ativo é inferior na presença de uma incapacidade" para cidadãos de ambos os sexos, embora o instituto público indique que "as mulheres (...) têm menor probabilidade de estar ativas do que os homens na mesma condição de incapacidade, seja qual for a idade considerada".
Já os dados reunidos pelo ODDH, da responsabilidade do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, mostram que, em 2020, apenas 0,59% dos trabalhadores de empresas com mais de dez funcionários eram portadores de deficiência - 55% eram mulheres e 45% homens. No sector público, a percentagem de funcionários com deficiência representava, em 2021, quase 20 400 pessoas - mais 6500 do que no privado.
Quotas de emprego em vigor
O Decreto-Lei 4/2019 instituiu quotas obrigatórias para a contratação de pessoas com deficiência com grau de incapacidade de 60% ou mais e aplica-se às médias empresas, com mais de 75 trabalhadores, e às grandes, com mais de 100 funcionários. No caso das médias organizações, a percentagem de pessoas com deficiência não deve ser inferior a 1%, enquanto que as grandes estruturas devem cumprir um mínimo de 2%.
"A associação tem sido contactada por várias empresas à procura de orientação e aconselhamento para o recrutamento de pessoas com deficiência", adianta Gisela Valente, que vê na legislação -- ainda em período de transição -- um passo positivo, mas que não resolverá todos os desafios. "A lei por si só não elimina o estigma existente. Só com uma política de recrutamento inclusivo e eliminação das barreiras físicas, comunicacionais e informativas é que se conseguirá aumentar a integração", realça.
Um mundo capacitista
Numa sociedade cada vez mais consciente dos fatores de discriminação que recaem sobre vários grupos da população, o capacitismo é um termo que vem sendo mais debatido, mas que é, ainda, amplamente desconhecido. Shani Dhanda explica, em entrevista ao DN, que "o capacitismo é a crença de que pessoas não-deficientes são superiores" e acredita que "vivemos numa sociedade capacitista", ainda que as manifestações dessa discriminação aconteçam, sobretudo, "de forma inconsciente".
Construir edifícios com acesso apenas a partir de escadas, desenhar passeios sem acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida ou disponibilizar serviços básicos sem atendimento com intérpretes de língua gestual são apenas alguns exemplos desse preconceito. "Isso afeta a forma como socializo, como trabalho e a minha confiança para sair de casa", acrescenta a ativista britânica com osteogénese imperfeita, uma doença rara caracterizada por provocar fraturas ósseas espontâneas. "Pessoas com esta condição podem simplesmente tossir e partir uma costela, os ossos são mesmo muito frágeis", explica.
Ao longo da vida, Shani Dhanda aprendeu a usar a doença que a acompanha para trabalhar com multinacionais e instituições públicas de forma a "ajudar a transformar as experiências dos seus colaboradores e clientes". É a promover a representação de pessoas com deficiência no espaço público que a britânica espera conseguir contribuir para uma maior consciencialização da sociedade. "Se vivermos com uma deficiência somos parte da maior minoria do mundo e, entre todas as vertentes da diversidade, a deficiência é uma a que qualquer pessoa se pode juntar a qualquer momento", recorda.
A inclusão de todas as pessoas na sociedade é, desde 2020, a missão de Tiago Fortuna com os serviços de consultoria em acessibilidade que presta na Access Lab. O foco tem sido apoiar espaços e eventos culturais a "preparar a jornada do público ou do colaborador com deficiência", garantindo que todos podem aceder, sem barreiras, à cultura.
A formação e a "aproximação às comunidades" é essencial para "chamar o público e assegurar que é bem-vindo" a um cinema, uma sala de espetáculos ou qualquer outra iniciativa de entretenimento ou lazer. "As pessoas passam muitas vezes por momentos muito desconfortáveis como ir a um restaurante, à escola ou à universidade e os espaços não serem acessíveis. Estamos melhor do que nunca, mas estamos muito atrasados", diz.
Ana Sesudo defende ser essencial que a sociedade conheça os obstáculos que cidadãos com deficiência, física ou cognitiva, enfrentam nos aspetos mais básicos do quotidiano e que exijam do Estado e das empresas mais inclusão. "Consegui acesso ao emprego e à minha independência de forma básica e considero-me privilegiada. Algo está mal nesta sociedade quando alguém que consegue o básico se sente privilegiado", critica.
Fonte: DN por indicação de Livresco