O ensino especial teve de se renovar e reinventar para conseguir dar o melhor aos alunos durante a pandemia. Os períodos em que as escolas estiveram fechadas obrigaram a levar um acompanhamento que já é mais difícil para o digital, com poucos resultados. Uma realidade exigente para os docentes, para os pais e principalmente para as crianças. No regresso, educadores e famílias continuaram a sentir carências e contam ao i como vivem os seus filhos a escola que é suposto incluir e apoiar todos – e o que gostavam que mudasse. A Associação Nacional de Docentes de Educação Especial fala, por seu lado, do esforço que foi feito mas alerta também para casos de stress pós-traumático e para os sinais a que pais e educadores devem estar atentos.
“Sem a retaguarda da família, as crianças ficam muito mais perdidas” Afonso Oliveira tem 10 anos, vive em Viana do Castelo, nasceu com uma doença genética – osteopetrose – e também está diagnosticado com autismo. No primeiro confinamento, as crianças estiveram o tempo todo em casa e as professoras de ensino especial comunicavam com os alunos através das plataformas digitais, o que acontecia duas vezes por semana, e faziam os trabalhos que os docentes propunham. Até aqui nada de muito diferente quando comparado com o ensino dito normal, mas se captar a atenção da generalidade dos alunos já foi difícil, com crianças com autismo e problemas de atenção o cenário foi pior.
“Não têm a mesma atenção”, conta (...) Luísa Carvalhido, a mãe do menino. “Foi tudo mais difícil. O Afonso sofre também de baixa visão, o que não ajudava nas aprendizagens. Se não houver um trabalho de retaguarda da família, as crianças ficam muito mais perdidas”.
No segundo confinamento, as crianças que tinham alguma dificuldade ou incapacidade “tiveram mais sorte” porque tiveram a possibilidade de continuar a frequentar a escola, se assim quisessem. Luísa Carvalhido optou por levar o filho para a escola, “na qual esteve mais acompanhado e com mais atenção por parte dos docentes”, lembra. O Afonso estava com uma medida de ensino especial “significativa” no primeiro confinamento, e agora já acompanha mais a turma – “estando com menos medidas de ensino especial”. O léxico é o de quem convive com o ensino especial, em que são determinadas mais ou menos medidas de apoio a alunos consoante as suas necessidades educativas. Para Luísa, uma coisa é certa: “deviam ter mais apoio do que têm”, diz, sublinhando que as dificuldades que sentiram agravadas em pandemia se mantêm.
O seu filho está numa turma com mais três crianças com autismo – “e isso é muito bom porque significa que conseguem acompanhar minimamente a turma –, mas “seria necessário mais uma professora a acompanhar os três meninos em sala de aula e quem o está a fazer é a auxiliar, que não faz o trabalho de um professor”, exemplifica. “Para além disso, devia haver mais recursos para a terapia de fala, mais psicólogos, terapia operacional… Há uma série de recursos que deveriam ser melhorados”, defende a mãe. A evolução da qualidade do ensino passa também por olhar para o decreto-lei de ensino especial – no qual o professor tem de adaptar o ensino a cada um. Uma tarefa, insiste Luísa Carvalhido, “muito difícil com apenas um professor”.
A compensação acaba por recair ainda mais em casa e depender da capacidade dos pais. “Claro que é sempre muito mais difícil quando há mais de um filho”, diz Luísa Carvalhido, que durante a pandemia tinha de dividir a atenção por duas crianças, não esquecendo que também estava em teletrabalho. “É extremamente complicado porque há momentos em que não conseguimos estar com eles”.
Afonso não estava triste por estar em casa, pelo contrário. “O Afonso é muito feliz”, diz a mãe. O problema são as quebras das rotinas – “que depois se notam na sua evolução”. O filho “tem a sorte de estar numa escola que tem uma equipa de professores ensino especial fantástica. A evolução do meu filho é tudo graças a elas”, reconhece.
Aprendizagem adaptada: um desafio Ainda em Viana do Castelo, Maria Isabel Carvalho, de 57 anos, professora de educação especial do Agrupamento de Escolas Pintor José de Brito, explica ao i que os alunos com deficiências precisam muito da proximidade e do contacto. E foi o que mais se perdeu durante a pandemia. “E os pais muitas das vezes não conseguem acompanhar os filhos porque têm de trabalhar, o que acaba por ser difícil de conseguir gerir”.
No que toca ao método de ensino, as atividades foram muito mais pobres devido a serem feitas à distância, explica. “Teve de ser fazer coisas muito mais apelativas para chamar a atenção em frente ao computador”, diz. “As atividades demoravam muito mais tempo a preparar, muitas delas à base do jogo e que já saíram da planificação, porque a atenção de uma criança autista, por exemplo, é muito mais difícil de manter”.
A planificação das atividades é baseada num programa que define determinados objetivos, mas, durante o período do confinamento, mais do que cumprir as metas, os professores sentiram-se a cumprir o calendário. Os alunos têm desde o primeiro ano de escolaridade até ao 12º de desenvolver um projeto de autonomia e tentativa de empregabilidade para o mercado de trabalho. Há situações em que os professores “ficaram a patinar um pouco”, resume a docente. Os objetivos “tiveram se ser postos de lado para que os alunos conseguissem ficar mais atentos e estimulados”. Maria Carvalho chama ainda a atenção para as crianças para quem são já dois anos importantes perdidos, em particular as que, no primeiro ano de escolaridade, apanharam o primeiro confinamento e, no segundo ano de escolaridade, o outro confinamento. “É uma situação dramática”, descreve.
A avaliação que sufoca A tarefa complica-se com os exames. Nos anos terminais de ciclo, a recuperação de aprendizagens esbarra no calendário das provas, cuja preparação consome o tal tempo de recuperação. “As avaliações externas condicionam as escolas”, explica Maria Carvalho, que nota que o país tem uma “legislação fantástica”, mas o problema está na prática. Há um projeto de flexibilização da avaliação lançado há dois anos e a partir deste ano letivo é obrigatório nas escolas, “o problema é que qualquer projeto desta natureza vai colidir com a avaliação externa – que irá colocar as escolas em rankings”, resume. “A avaliação externa tem que existir – sim –, principalmente quando se fala em acesso ao ensino superior. Mas podia pensar-se numa realidade na qual o 12º ano não precisava de ter exames nacionais e as universidades fariam a seleção. Assim, a escolaridade obrigatória ficaria com uma outra liberdade. Desta forma, no ensino secundário a avaliação nunca consegue mudar e, uma avaliação que se transforme também ajuda os professores a mudar praticas e estratégias, além de terem outra autonomia para ensinar”. A avaliação externa “estrangula muito o sistema educativo”, diz a professora.
No dia a dia, acresce a dificuldade é ter respostas sobre como conciliar os diferentes objetivos e calendários nos casos concretos que são mais difíceis. “A legislação é ótima, mas a aplicação é muito complexa e ficam muitas ideias no ar, porque depois há equipas do Ministério da Educação no terreno que não conseguem dar respostas”, continua a professora de ensino especial. Um pedido de informação ao ministério ou aos seus organismos acaba muitas vezes sem retorno, testemunha. “Uma resposta por escrito é um comprometimento muito grande e nisso o Ministério da Educação e organismos associados funcionam muito mal”, afirma Maria Carvalho. “Se há um problema por resolver e se manda por escrito, ninguém vai responder”.
Caso o professor telefone e tenha a “sorte” de ser atendido, alguém poderá dizer alguma coisa, “mas depois há sempre o ‘ninguém lhe disse nada’. O Ministério da Educação não dá acompanhamento construtivo. Manda a inspeção de vez em quando e manda a avaliação externa. Mas como fazer melhor, partilhar as boas práticas, não acontece”.
Para ajudar é preciso clarificar Já em Santarém conhecemos a história de Henrique Correia, que entrou este ano letivo para o primeiro ano do ensino básico. Está diagnosticado com paralisia cerebral e é seguido pelo Centro de Reabilitação Paralisia Cerebral em Lisboa. A transição para o digital foi difícil e o apoio que poderia ter pela escola neste arranque de ciclo não foi possível. A nível cognitivo é igual a outra criança qualquer, mas tem muitos problemas motores para a execução das tarefas que são pedidas, explica ao i o pai, António Correia. “Os professores não estavam preparados para ter a abordagem online. Teria sido necessária uma adaptação das atividades para que ele as conseguisse fazer mas nunca houve essa disponibilidade por parte dos professores e educadores na altura”.
Já no segundo confinamento, quando Henrique conseguiu ir para a escola, continuou a faltar adaptação. O pai explica que como Henrique é acompanhado pelo centro de paralisia cerebral, o normal seria ter havido uma missão para o integrar, com uma equipa que vai junto das escolas fazer a formação para lidarem com estes alunos e as suas necessidades. Mas isso não foi possível. “O centro não podia realizar as missões pretendidas e os agrupamentos impossibilitaram o acesso dos profissionais. Os terapeutas que apoiam o Henrique em Santarém e os operacionais que trabalham com ele no hospital não tiveram possibilidade de aceder à escola”, explica. Resultado? Perdeu-se uma oportunidade para iniciar mais cedo um apoio de forma articulada. E também este pai lamenta que os canais de comunicação funcionem mal. “Era necessário haver mais esclarecimentos por parte do Ministério da Educação ou das direções gerais da educação para esclarecer muitas das dúvidas que se levantam em relação à aplicação da legislação, desde os profissionais até aos pais”, defende António Correia. “Os pais foram obrigados a pegar na legislação, a decifrá-la e a tentar questionar os próprios órgãos sobre como devia estar a ser feita a implementação quando se achava que estava a haver um impedimento dessa aplicação”.
E o tempo que tudo demora, para quem quer que os filhos tenham oportunidades como quaisquer crianças, torna-se um inimigo. António lembra que que estava a ser preparado um documento para o início do ano letivo e agora chegou ao fim o primeiro período e ainda não foi aprovado pela equipa de apoio multidisciplinar à educação inclusiva nem pelo agrupamento escolar. “Um pai sente-se muitas das vezes impotente para conseguir fazer exercer os direitos do Henrique e de outras crianças como ele”, confessa.
Ensino digital? Só para quem pode Continuamos a recolha de testemunhos agora em Beja, onde se repete o diagnóstico. Teresa Baião é professora de ensino especial no Agrupamento de Escolas nº1 de Beja e o digital teve inevitavelmente de fazer parte da oferta escolar mesmo para crianças com necessidades educativas. Mas nem essa é uma possibilidade para todos. “Há alunos que pertencem a famílias disfuncionais, com falta de recursos tecnológicos, e não só”, conta (...).
Os professores enviavam fichas de trabalhos para os alunos fazerem. Mas as aprendizagens dependem de muitos fatores, de cada aluno em específico, das suas disfuncionalidades e do próprio ritmo de aprendizagem. A ideia de a família ser uma base crucial para o sucesso da aprendizagem é sublinhada pela professora, que conta que, durante a pandemia, “muitas famílias não podiam dar o apoio de que as crianças precisavam”, muito menos substituir todos os apoios que deveriam ter fora de casa e que pararam. “A pandemia veio afetar os apoios contínuos que os alunos tinham em contexto presencial e há uma grande perda de capacidades e de conquistas que já tinham sido feitas”, diz.
Muitos trabalhos e poucos professores Maria Ferreira é professora também em Beja e tem dois filhos. Um deles tem um atraso global no desenvolvimento. “O pior problema no primeiro confinamento foi a carga de trabalho que os professores mandavam. Ele fazia tudo o que os professores pediam, tal como as outras crianças. E mesmo para uma criança dita normal a quantidade de trabalhos já era exagerada”, conta Maria Ferreira(...).
Nas aulas online, João (nome fictício) tinha ajuda da professora de apoio, que também estava online juntamente com a professora principal. Mas apesar desse esforço, o resultado não era igual ao que seria em contexto presencial. “É diferente estar sentado ao lado do aluno. Se o João quisesse dizer alguma coisa toda a turma ouvia e acaba por ser informação por cima de informação”, explica.
Houve ainda a opção de se criar uma sala de aula online paralela, mas ao mesmo tempo o menino queria estar com os colegas e não sentir-se de parte. Tudo isto enquanto Maria estava a dar as suas próprias aulas. Quanto não estava a fazê-lo, a vida focava-se no apoio dos dois filhos, o que a esta mãe diz que torna evidente a dificuldade das crianças que não têm um agregado familiar em que foi possível um dos pais estar em casa a ajuda seja em pandemia ou fora da pandemia. “O João precisa de alguém que lhe chame a atenção para ler, para se concentrar. Mas há coisas muito mais complexas do que isso. Precisa de apoio”, resume. Para a doente, não há formação suficiente e faltam professores também nesta área. “O ideal era cada aluno de educação especial ter um professor de apoio”, disse. “O João tem a sorte de ter a mãe em casa e de o ajudar, de ter tempo e de perceber. Mas existem muitos alunos que não têm este meio familiar, que não têm esta capacidade”.
Inclusão precisa de esforço coletivo Se as dificuldades ficam patentes nos testemunhos, houve um esforço do lado das escolas, nota ao i a Pró Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial (PIN-ANDEE): “As escolas fizeram um esforço para identificarem os alunos mais vulneráveis e determinar quais as medidas a serem acionadas”. Medidas essas que “permitiram identificar crianças em agregados familiares com dificuldades económicas (medidas que incluíam o fornecimento de refeições) e crianças com grandes necessidades do apoio disponibilizado nas salas especializadas (p.e. com deficiências múltiplas e autismo grave)”, explica a associação, sublinhando que também existem casos de sucesso e conquistas, “principalmente pela capacidade de mobilização e articulação entre todos os docentes – os de educação especial e os restantes docentes –, bem como a mobilização de redes de apoio na comunidade (Câmaras Municipais, Juntas de Freguesia, Equipas Locais de Intervenção Precoce, CPCJ, GNR, empresas…). Os docentes de educação especial foram, em muitas situações, os próprios a assegurar a entrega e recolha dos materiais necessários, bem como a apoiar os pais, para evitar a todo o custo que o risco e amplitude de perdas deste grupo de crianças, pudesse ser ampliado”, descreve a associação. “Os Centros de Recursos TIC para a Educação Especial (CRTIC) registaram um exponencial aumento de solicitações para atribuição de produtos de apoio de modo a permitir as melhores condições tecnológicas que garantissem o acesso à aprendizagem, a ligação aos seus professores e aos seus colegas”.
Também os Centros de Recursos para a Inclusão (CRI) fizeram um esforço por dar continuidade ao acompanhamento que já faziam aos alunos e às suas famílias, sempre que possível, em modo presencial, tomando todas as medidas de segurança indispensáveis, ou à distância, conta a associação.
Em tempos incertos como foram os sucessivos confinamentos, “foram enviadas às escolas orientações específicas para os alunos com elevada necessidade de apoio, particularmente os que beneficiam de adequações curriculares significativas, por forma a que fossem acolhidos nas escolas e, nessa sequência, foi solicitado aos CRI para que retomassem ou continuassem a prestar o apoio a estes alunos nas escolas. As escolas desenvolveram igualmente um conjunto de apoios rotativos, de modo a garantir a melhor resposta às necessidades deste grupo de alunos, onde cabiam o docente de educação especial, auxiliares de ação educativa, os terapeutas dos CRI e psicólogos (sempre que possível e caso existissem na escola)”.
A PIN-ANDEE alerta no entanto que, após meses tão diferentes, a maioria dos alunos relata sintomas de stress pós-traumático, confusão e ira, que se agravam quando se olha para quem tem maiores dificuldades em compreender porque são exigidas restrições e novas rotinas como as que a pandemia ditou.
Olhando para o futuro e para o que está por fazer nesta área, a associação defende que os alunos devam ser ouvidos e os professores devem estar “especialmente atentos” ao clima afetivo da sala de aula e da escola. “Claro que os professores também sofreram com o confinamento e terão de se cuidar, para poder melhor conseguir ajudar. Os professores são da maior importância para os ouvir, detetar sinais de mal-estar extremo e encaminhar para serviços de saúde mental adequados, se for caso disso”, aponta.
A que sinais estar atento? É preciso notar se o aluno está mais distraído, mais irritável, com mais dificuldades nas relações com os colegas, mais fechado ou isolado, mais conflituoso, mais triste, mais ansioso e se houver ainda alterações na alimentação ou no sono, explica a associação, que destaca a importância “de garantir psicólogos em número ajustado às necessidades das escolas e a pertinência de reforçar ações preventivas ao nível da saúde mental, tendo por base um reforço de recursos ao nível da Saúde Escolar, com vista a uma adequada articulação e suporte à escola”.
Fonte: Jornal I
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