Sem sucesso, a actriz que se apoderou do palco antes de o espectáculo começar tenta interromper a intérprete que pede, em Língua Gestual Portuguesa (LGP), que se desliguem os telemóveis. Quer dizer-lhe que, por ela, podem continuar ligados e a fazer bip. Não a perturbam. A luz branca pode estar com intensidade máxima e a acender-se e a apagar-se sempre que o telemóvel vibrar por uma mensagem, uma notificação ou outra coisa qualquer sem importância. Não a distrai. “Eu adoro luzes”, começa a explicar-se numa língua que vive de imagens, agora para a plateia, num monólogo cada vez mais fervoroso, mas (quase) sem som. Para quem se sente às escuras, a Surda — assim se chama a personagem — gestualiza um mantra para o resto da peça: “Imaginem uma dança contemporânea. Deixem-se levar pela língua. Não sejam oralistas. Esqueçam o ‘fonocentrismo’.” Os papéis inverteram-se. “É desconfortável, não é?”
O que Joana Cottim está a exigir é uma oportunidade para estender a todo o palco a experiência da língua gestual, normalmente confinada a um canto ou a um quadradinho no ecrã, e forçar a audiência a “escolher para que sítio vai olhar: se para o intérprete de LGP, se para a cena”. E os fundadores da companhia de teatro Estrutura, Cátia Pinheiro e José Nunes, em conjunto com o actor Diogo Bento, todos ouvintes, decidiram deixar os espectadores olharem para onde quiserem.
Os criadores de Língua não querem deixar ninguém desconfortável no Teatro Carlos Alberto, no Porto, que recebe este novo espectáculo plurilinguístico da Estrutura desta quinta-feira e até domingo. Talvez só um bocadinho, e sem maldade, na cena inicial, exclusivamente interpretada em LGP. “O que se pretende é que não haja aquilo que infelizmente se vê, uma espécie de aniquilação de uma língua pela outra. Como se fosse necessário matar uma língua para a minha sobreviver”, apresenta Diogo Bento.
Interacção sem invasão
Em 2016, aquando da estreia do serviço de LGP do Teatro Nacional São João, Joana Cottim começou a colaborar num trabalho de tradução feito a quatro mãos, entre uma intérprete ouvinte e uma intérprete surda. Mas “este desafio é completamente diferente”, explica. Não foi (apenas) chamada como mediadora, para explicar como um surdo sente o teatro. Por cima de uma t-shirt em que um dos principais defensores do oralismo, Alexander Graham Bell, aparece cancelado com um “x”, vestiu um fato com lantejoulas que reflecte a luz para a fazer chegar a todo o lado — “a luz é fundamental”, repete em palco. Assumiu o papel de protagonista. “Sou uma freak”, apresenta-se a personagem.
“Foi depois de a conhecermos que percebemos que o centro do palco tinha de ser dela”, conta Diogo Bento. Os actores ouvintes aprenderam LGP para poderem integrar esta peça que “leva ao limite o questionamento do que pode ser uma língua”, ao mesmo tempo que, explica José Nunes, mostra como ela é um “veículo identitário” da comunidade surda — uma comunidade que não tem em comum apenas algum grau de perda auditiva, mas também uma identidade linguística e cultural particular.
“Nós estamos como visitantes de uma comunidade com quem queremos aprender, sem nos apropriarmos de”, explica o encenador. “O texto inicial teve imensas mudanças até agora, por causa de dicas que eu fui dando”, acrescenta Joana Cottim. “Coisas específicas da língua, que eles nunca imaginaram: por exemplo, o silêncio corresponder ao escuro. Não senti que foi uma invasão, senti que foi uma interacção em que as duas línguas estariam em pé de igualdade e há um respeito entre elas.”
Fonte: Público
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