quinta-feira, 30 de junho de 2016

Biblioteca digital da APEC online

A Associação Promotora do Ensino dos Cegos (APEC) disponibiliza uma Biblioteca Digital online com mais de 10.000 títulos, para pessoas com deficiência visual.

Para aceder a esta Biblioteca deve:
  • registar-se na APEC, presencialmente ou online, preenchendo o formulário de registo
  • apresentar o atestado de incapacidade multiusos comprovativo da sua deficiência visual
Após a confirmação de registo poderá selecionar e requisitar as publicações do catálogo da Digiteca - APEC.

Fonte: INR

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Um ministro errante

(...)
Foi desastrosa a intervenção em matéria de avaliação de alunos. Com o ano letivo já adiantado, tivemos, sucessivamente, três modelos, com o primeiro-ministro a ser desmentido pelo ministro e vice-versa e os dois a darem o dito por não dito. Com os deputados do PS a votarem contra o próprio programa do Governo. Sem se saber se governava o Governo, o parlamento ou o presidente da República. Impensável. Errado e errante.

As provas de aferição não são novidade no sistema. Já existiram e não provaram. O ministro fez mal ao recuperá-las. E fez pior ao colocá-las em anos que não são de final de ciclo, decisão difícil de compreender. Com a sua atitude insensata, interrompeu uma série estatística que vinha de 2001 e que permitia, apesar da indesejável precocidade dos exame do 4º ano, comparar resultados e tirar algumas ilações úteis para decisões pedagógicas informadas. Disse o ministro que, assim, os professores poderiam identificar os problemas dos alunos e intervir a tempo. Como se não fosse isso que a avaliação interna permitisse, assim as escolas tivessem recursos e autonomia para atuar. Mas sem coisa alguma em final de ciclo, como vai o ministro verificar, com a lógica que defende, se as intervenções a que se refere resultaram?

A preparação do próximo ano letivo teve aspetos lamentáveis (regulação da dimensão das turmas com alunos com necessidades educativas especiais e determinação administrativa desumana das situações de carência de assistência médica). É certo que houve reconsideração. Mas a marca da errância e do erro, próprias de quem chegou ao cargo sem uma linha publicada ou uma ideia conhecida sobre Educação, não desapareceu. Outros aspetos, igualmente errados, acabaram consagrados no despacho 4-A/2016. É o caso das tutorias, anunciadas como se não existissem já, quando, em rigor, a situação piora: antes tínhamos uma hora semanal para cada aluno assistido; no próximo ano, a hora para cada aluno passa a 24 minutos. É o caso da alteração do mecanismo de atribuição de créditos horários que, na maioria dos casos, piora a situação existente. É o caso do prolongamento da duração do tempo de aulas, num sistema em que os alunos já tinham os tempos máximos de permanência na escola, por comparação com os parceiros europeus. É o caso desse logro em marcha, mistificação indizível para banir o insucesso escolar, de que pouco se fala (veja-se o meu artigo aqui publicado em 20/4/16).

Enquanto assistimos ao erro e à errância, o que era urgente continua por fazer. O agrupamento permanece como unidade orgânica de gestão, usurpando a identidade de cada escola. O modelo de gestão permanece inalterado, carente de democraticidade. A autonomia resume-se a um discurso que, de tão repetido, sem existência real, virou mantra de falsidade. Os quadros de pessoal continuam sem dimensão adequada às necessidades das escolas. Os programas disciplinares não foram expurgados dos milhares de metas sem sentido. As elevadas cargas curriculares, desajustadas relativamente ao desenvolvimento psicológico das crianças, não foram diminuídas. Permanece um estatuto de carreira docente insustentavelmente burocratizado, sem referencial deontológico, com um modelo de avaliação do desempenho obsoleto, inútil e inaplicável. Não se tocou na missão e na estrutura da Inspeção-Geral da Educação e Ciência.

Santana Castilho

Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

Fonte: Extrato do artigo de opinião do Público

terça-feira, 28 de junho de 2016

“Há uma enorme desconfiança dos políticos em relação aos professores, partilhada por todas as equipas ministeriais dos últimos 15 anos”

Doze autores de blogues na área da Educação publicaram na terça-feira, dia 21, nas suas páginas um manifesto em Defesa da Escola Pública. Se os contratos de associação têm marcado o debate nos últimos tempos, o tema está longe de ser o mais importante, consideram. O pior, diz Paulo Guinote, professor de História no 2º ciclo do ensino básico e um dos subscritores, é a "permanente instabilidade em quase tudo", a "manutenção do controlo burocrático sobre o trabalho dos professores" e a falta de autonomia das escolas.

Autor do entretanto extinto “Educação do Meu Umbigo”, que chegou a ser um dos mais seguidos da blogosfera, e agora do blogue “O Meu Quintal”, admite que estes e outros espaços virtuais acabaram por se tornar "locais de refúgio e catarse" para uma classe "entristecida", em "erosão simbólica e material" e em "quase em permanente tensão com a tutela".

O que levou os subscritores deste manifesto a avançar com a divulgação de um texto em defesa da escola pública? 
A iniciativa partiu do Alexandre Henriques do blogue “ComRegras” que considerou que estamos num período em que os blogues poderão ter, de novo, algo a dizer em relação ao debate em torno da Educação Pública. No meu caso, aderi à ideia porque, apesar de algum ceticismo, achei interessante que se conseguisse apresentar uma espécie de plataforma comum a pessoas e projetos com bastantes diferenças, mas que encontram causas unificadoras nas suas preocupações.

No texto nunca fazem referência ao ensino privado nem à discussão em torno dos contratos de associação que tem marcado a agenda. Mas é inegável que é neste contexto que o texto surge. 
O manifesto surge nesse contexto, mas não desse contexto. A ausência de qualquer referência procura sublinhar isso mesmo: a polémica em torno dos contratos de associação é um epifenómeno muito exagerado porque isso interessa a cada uma das 'partes' que se envolveram nesse conflito para unirem as suas fileiras. Em termos da Educação numa perspetiva mais ampla, há problemas muito mais importantes a tratar e o tempo não deve ser perdido em algo que, apesar do impacto mediático, não nos parece ser uma questão essencial.

No documento criticam os "cortes" no ensino público, a "deriva" de politicas educativas e a burocracia "doentia". O que é que de pior se tem feito à escola pública? 
A permanente instabilidade em quase tudo, da avaliação dos alunos à contratação de professores, passando por detalhes tão pequenos mas massacrantes como procedimentos administrativos de registo do trabalho docente. A enorme diferença entre o discurso público e a ação concreta. Veja-se o que se passa em trono da promoção do sucesso escolar. Apesar da retórica dominante ser a do fim do predomínio das disciplinas 'estruturantes', no currículo a formação dada é centrada no sucesso nessas disciplinas; do mesmo modo, praticamente nada se alterou no currículo para efetivamente reforçar a área artística. A duplicação ou triplicação desses registos e manutenção de controlos burocráticos do trabalho docente, retirando-lhe praticamente toda a autonomia. O desaparecimento de uma prática de partilha na tomada de decisões ao nível da vida das escolas e agrupamentos, o que se agravou imenso com a concentração em mega-agrupamentos e a gestão baseada num modelo único e unipessoal.

Na sua opinião qual deveria ser a área de intervenção prioritária? 
O reforço da autonomia das escolas, numa lógica de partilha e colegialidade das decisões. Não o reforço da autonomia/poder de uma só pessoa dentro das escolas, da distribuição de serviço às regras de contratação. E nunca o esvaziamento quase total da autonomia das escolas, com muitas das suas competências a ser transferidas para as autarquias, com o cenário da captação de verbas europeias. Quando as escolas passarem a depender dos gabinetes camarários para ver os seus 'projetos' apoiados e financiados, o processo de degradação dará um enorme salto para o abismo.

Há décadas que se ouvem reclamações de mais autonomia, com os próprios governos a invocar a defesa do mesmo princípio. Tem mudado alguma coisa? A que se deve esta tendência para a centralização e controlo? 
O que tem mudado têm sido os mecanismos de controlo e registo dos atos praticados, mas não a sua lógica. Ao nível das escolas, o poder foi centralizado e organizado de forma hierárquica, sendo depois essa lógica alargada à relação dos diretores com a tutela. A razão disto é, em primeiro lugar, uma enorme desconfiança dos políticos em relação aos professores, algo partilhado por todas as equipas ministeriais dos últimos quinze anos; em seguida, o desejo de estabelecer uma linha de dependência hierárquica dos processos de decisão/implementação das medidas. Tudo se baseia na lógica da nomeação e obediência. Curiosamente, apesar de todos os defeitos que lhe são imputados, a Educação tem revelado progressos constantes nas últimas décadas, mas raramente a responsabilidade por isso é atribuída aos professores por quem o deveria fazer.

Vê no atual ministro um defensor da Escola Pública? As palavras têm-se traduzido em atos? 
Eu vejo em todos os ministros defensores acérrimos dos seus conceitos pessoais ou políticos de Escola Pública. Só que raramente coincidem com o meu e, vou arriscar, com a maioria dos meus colegas de profissão. Todos formulam conceitos de Escola Pública que defendem com maior ou menor intensidade, identificando o que acham ser os princípios mais virtuosos e quais os obstáculos a ultrapassar. Há quem achasse que o problema era a falta de racionalidade na gestão do sistema (David Justino), que os maiores obstáculos ao progresso eram os professores (Maria de Lurdes Rodrigues) e quem achasse que a solução era fazer mais exames (Nuno Crato). Agora temos um ministro que retoma, em nome de um alegado progresso, a lógica do direito ao sucesso a qualquer preço que marcou os anos 90 do século passado e todo um aparato discursivo extremamente nebuloso que, no fundo, se resumirá a 'passem-nos' ou a falha será vossa (dos professores, das escolas). Não me consigo rever em nenhuma desta lógicas e muito menos em diversas das suas medidas práticas.

O manifesto é subscrito exclusivamente por autores de blogues. Desde o seu aparecimento que a Educação tem sido uma das áreas com maior número de blogues e grande parte mantém o ritmo das publicações. Também há vários grupos de discussão no Facebook. Os professores têm particular necessidade de desabafar e partilhar os 'males' da sua profissão? 
Os professores são numa classe que, com exceções, claro, gosta de partilhar o que pensa e faz. Aquela ideia da 'porta fechada' da sala de aula ao exterior é um mito útil. Bem como a do conservadorismo dos docentes, apesar do seu evidente envelhecimento etário. Claro que existem exemplos menos bons, pessoas que poderiam ter o direito de se retirar da vida ativa ou de lecionar com um mínimo de dignidade que as políticas recentes não têm permitido. Mas a maioria, por vezes a menos vocal, que aparece apenas para ler, aprender algo, contribuir com alguns comentários, gosta desta rede de relações virtuais que alargam as redes locais mais personalizadas e permitem aceder e partilhar informação útil. Devido ao do entristecimento das salas de professores, à erosão da situação simbólica e material da classe docente e ao clima de quase permanente tensão com a tutela em muitas áreas, os blogues e os fóruns de discussão virtuais tornaram-se espaços de refúgio e de catarse que, felizmente, muito têm contribuído para que todos achemos pontos de apoio, identificação e motivação para mantermos alguma sanidade no meio de toda esta turbulência.

Para quem acompanha e lê esses fóruns não fica a ideia que há uma insatisfação permanente dos professores, independentemente das medidas que são tomadas? É o resultado do desgaste que refere? 
Sim, é verdade que quem passa pelos fóruns de debate de professores pode ficar com a ideia de que estamos insatisfeitos com tudo, seja de que tipo for. Isso pode resultar de uma conjugação de causas, desde o facto de, sentindo-se em 'família virtual', ser possível descarregar os humores (em vez de estar em casa a fazer isso sempre com a família real) até à diversidade de posições de diferentes grupos de professores sobre algumas matérias, queixando-se de cada vez quem discorda, por exemplo, ou dos exames ou da sua ausência, não esquecendo quem lá aparece de forma militante para defender causas que vão para lá dos interesses dos professores, os chamados trolls que só servem para produzir 'ruído'. No entanto, acho que há medidas que teriam um aplauso praticamente unânime como a desburocratização real do trabalho docente (agora fazemos relatórios em suporte digital, mas guardam-se diversas cópias em papel e se surgir a IGE tem de se entregar tudo nos vários suportes), a redignificação da carreira docente (já andamos a ajudar a pagar bancos há quase uma década), o fim da (inter)municipalização da Educação (que só agrada aos amigos dos partidos nos diversos poderes locais, como se viu no referendo promovido a esse respeito pela Fenprof) e o regresso a um modelo flexível de gestão escolar (medida que só desagradaria a alguns diretores).

Fonte: Expresso por indicação de Livresco

segunda-feira, 27 de junho de 2016

“A laqueação das trompas da minha filha foi das decisões mais difíceis que tive que tomar”

Uma mãe aceitou recordar o momento em que decidiu que o melhor para a sua filha era a esterilização. Oficialmente, foi uma operação ao apêndice. "Nunca quisemos mentir à minha filha. Mas também não podíamos pedir-lhe opinião."

Casei-me com 20 anos, o meu marido com 24. Só tivemos a menina sete anos depois. Foi uma gravidez muito desejada. Não havia ecografias naquele tempo, mas fui acompanhada, estava tudo muito bem — enfim, do 2.º para o 3.º mês tive um aparecimento de menstruação, acredito que foi um sinal. A menina nasceu e tinha problemas: uma perninha mais curta, o pezinho muito prejudicado. Terei tido rubéola durante a gravidez, não tive manifestações físicas, mas a rubéola não perdoa.

Ainda antes dos três anos, ela passou a ter umas manifestações. Deitava a língua de fora e assim. Fomos ao neurologista. Tinha epilepsia. Tinha ataques. E tinha um certo atraso. Se lhe dávamos um recado, e eu dava até de propósito, às vezes, para ver como ela reagia, ela nunca conseguia transmitir o recado até ao fim. Mas era uma criança muito alegre. Foi por causa disso que voltámos a ter música em casa — porque quando ela nasceu o mundo desabou, deixou de haver música. Fizemos tudo para lhe dar um ambiente de normalidade, ela não podia ser vítima do nosso desgosto.

Andava — e anda — com uma prótese. Foi muito intervencionada, muitas operações para tentar aumentar a perna, mas a diferença foi sendo cada vez maior. Sabe ler e escrever, na parte da Matemática é que foi pior. Acabou a 4.ª classe com 16 anos.

Sempre foi muito vigiada. Sempre a fomos buscar e levar a todo o lado. Mas pensámos na eventual necessidade de lhe fazer uma laqueação das trompas depois de um episódio, quando ela tinha à volta de 16 anos: ela tinha umas amigas, foram todas para casa de uma delas, eu tinha dito à mãe de uma das meninas que me avisasse quando fosse para ir buscá-la. Mas não foi assim que aconteceu. Quando fui, ela já não estava.

Fui procurá-la. E o que vejo? Ela a sair de um quintal, numa casa perto da nossa, e um homem. Ele já tinha estado preso por abuso — eu só soube disso depois, mas, mesmo assim, perdi a cabeça. Agarrei nela e fui pô-la a casa e voltei ao homem com um pau na mão. “Só não o mato porque acho que não deu tempo para nada”, disse-lhe. “Ó minha senhora, eu vi que a menina tinha uma prótese.” Eu tremia, tremia. Ficámos assustadíssimos com aquilo, eu e o meu marido. O homem não abusou dela. Mas foi um alerta: e se eu me tenho demorado?

Os meus problemas, as minhas preocupações, têm mais a ver com o futuro da minha filha do que com o passado. Hoje, tenho 78 anos. Ela tem 51. O que vai ser o futuro dela? E naquela altura, quando ela tinha 16 anos, a nossa maior preocupação já era o futuro dela.

Falámos com um médico. Nunca quisemos mentir à nossa filha. Mas também não podíamos pedir-lhe opinião sobre a laqueação das trompas. Não havia na cabeça dela uma construção da necessidade de se fazer aquela operação.

Ela nunca teve obsessão pelo sexo. Dá beijinhos, mão na mão, brincadeiras. Há ali muita ingenuidade, muita falta de saber o que é, como é. Mas aquele homem, que a encontrou no caminho, chamou-a e ela foi, percebe?

A minha filha é como uma criança. Tem 51 anos, mas sempre foi assim. Se ela chega aqui, dá-lhe beijinhos, “meu amigo, minha amiga”, e abraça-a e pergunta-lhe logo se quer ir ao aniversário dela. No autocarro o mesmo: aproxima-se das pessoas, pergunta-lhes o nome, diz-lhes como é que ela se chama, onde mora, tudo. Não tem distância. Não se defende.

Falámos então com o médico: “O que vamos fazer com ela e o que é que vamos dizer-lhe?” Não há como dizer: “Tu não podes ser mãe, não tens condições.” E eu lembrei-me de uma coisa: “Nessa operação podem operá-la ao apêndice. Eu fui operada ao apêndice em criança e estive à morte. A ela, pelo menos, isso já não acontece.” E o médico disse “está bem, vamos fazer isso”. O que ficou oficialmente foi: “operação ao apêndice”, mas fez-se também a laqueação. 

A laqueação das trompas da minha filha foi decidida entre nós, com o médico. Foi das decisões mais difíceis que tive que tomar na vida. É a constatação das grandes dificuldades de um filho, sabe? Ninguém aprende a ser pai e mãe, muito menos de um filho destes, e é preciso uma força! Uma força que não sei onde é que se vai buscar. É dramático tomar decisões por eles. Estes casos intermédios de deficiência são os mais difíceis. Ela não é autónoma, mas também não é totalmente desprovida, mas também não é dos casos piores. E mesmo quando pensamos em deixar um filho assim, depois de morrermos... ela dá muito trabalho, tem enurese nocturna, às vezes diurna, anda de cueca-fralda.

Sobre se deve ser um juiz a decidir se se faz uma laqueação ou não, em vez do médico, com a família, não sei... Pode evitar alguns abusos, mas tenho muito má experiência com tribunais. O processo de interdição da minha filha, por exemplo, demorou três anos. Quando decidimos uma interdição é para proteger os nossos filhos, os direitos deles, o património deles, para garantir que é criado um conselho de família... E se morremos, entretanto, quem a protege? Depois há uma enorme distância dos juízes. Muita frieza. Uma enorme falta de conhecimento das questões da deficiência.

Eu não sei o que é isso de fazer algo “contra a vontade” das pessoas. Contra a vontade como? Muitas pessoas com deficiência não têm capacidade para saber as consequências das coisas. Se a minha filha saberia cuidar de um filho? Ela diz que gosta de bebés. Mas é um gostar pela rama, completamente infantil. Qual é a substância de uma maternidade assim? Muitas vezes não se sabe sequer quem é o pai e, se se sabe, é frequentemente alguém que não tem capacidade para assumir. Então, fica para os avós que, muitas vezes, já não têm idade para a responsabilidade de serem de novo “pais” de um bebé.

A minha filha teve namorados, que conhecia na instituição onde ia durante o dia, gostava de andar de mão dada. Algumas vezes disse-me: “Ele deu-me um beijinho na boca.” E eu respondia: “Que bom, filha!” Dizia-lhe: “Filha, namorar é bom, mas casarmo-nos é muito complicado, não queiras.”

Se me tivesse contado que tinha tido uma maior intimidade com alguém, se fosse uma experiência que lhe agradasse, que não tivesse consequências, sinceramente nem eu nem o meu marido éramos pessoas para dizer “ai que horror”. E, com a laqueação, até teria mais possibilidade de usufruir dessa parte da vida, de ter uma relação em que se sentisse bem. A pílula e outros métodos? Pois se a nossa preocupação era podermos desaparecer deste mundo e ela ficar! Tomaria a pílula? Não tomaria? Quem controlaria?

Este não é um assunto de que as famílias falem umas com as outras. Mas por vezes já tenho dito que as famílias dos rapazes com deficiência também deviam preocupar-se com esta questão da gravidez. Só que ainda há esta mentalidade: homem é homem. Até pode gerar vários filhos, mas são os pais das raparigas que devem tomar medidas. Porque se houver um abuso, elas é que são as vítimas.

Fonte: Público

Esterilização de deficientes: Governo averigua denúncias sobre um tema “tabu”

Nas últimas semanas falámos com representantes de associações de pessoas com deficiência, juristas e médicos sobre um tema “tabu”. A ONU denunciou casos de esterilização de deficientes contra a sua vontade. Há quem diga que há um vazio legal. E quem considere que não.


Uma jovem de 20 anos, com um défice mental profundo, foi esterilizada, no ano passado, no Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira. A mãe tinha pedido ao hospital para a filha ser submetida a uma laqueação de trompas e assim evitar uma eventual gravidez. O hospital começou por dizer que só o poderia fazer com uma decisão judicial nesse sentido. É isso, aliás, que está previsto no Código Deontológico da Ordem dos Médicos: “Em casos de menores ou incapazes, os métodos de esterilização irreversíveis” implicam “sempre” o “prévio consentimento judicial”. Mas, no caso desta jovem, acabou por acontecer algo diferente.

Segundo confirmou (...) Miguel Paiva, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, que integra o Hospital de São Sebastião, em vez de pedir uma autorização judicial para a esterilização, a mãe dirigiu-se ao tribunal, sim, mas para requerer a interdição da filha — a figura legal da interdição significa, no caso de pessoas com anomalia psíquica, que estas são equiparadas a um menor de idade, não podem votar, gerir património ou perfilhar, por exemplo; ao tutor designado pelo tribunal cabe zelar pelo bem-estar, saúde e educação do interditado.

Algum tempo depois, a mãe da jovem de 20 anos voltou ao hospital, demonstrou que passara a ser a tutora legal da filha e “fez muita pressão” para que a laqueação de trompas acontecesse, explica ainda Miguel Paiva. Os médicos avaliaram de novo e acabaram por realizar, em 2015, a intervenção, depois de a mãe da jovem “assinar a declaração de consentimento informado”.

Não há uma lei específica que enquadre este tema da esterilização de deficientes — há um “vazio legal”, na opinião de Paula Campos Pinto, coordenadora do Observatório da Deficiência e dos Direitos Humanos. Quando confrontada com a descrição do caso da jovem de 20 anos, diz que ele “é bem ilustrativo desse vazio legal”. Na sua opinião, o que se passou “configura uma situação de violação do direito à integridade física e de abuso de poder”, algo que, julga, “continua a ser frequente”.

Já André Dias Pereira, jurista, presidente da direção do Centro de Direito Bioético, nota que “o Direito é mais, muito mais do que a lei”. É composto de doutrina, pareceres e regulamentos, como o Código Deontológico dos médicos. “Nenhuma dúvida tenho de que é preciso autorização judicial [específica para a cirurgia], pois a esterilização pode justificar-se em alguns casos, sim; mas pode não se justificar noutros, em muitos outros. E os pais ou tutores não têm a imparcialidade necessária para tomar essa decisão sozinhos”, afirma. “Não basta os tutores e o médico, na tranquilidade de um consultório, decidirem isto.”

Haver um processo, uma decisão de um juiz, de um tribunal é o garante de que a intervenção é do interesse da pessoa com deficiência, sustenta. “Assim sendo, esse hospital cometeu uma violação do procedimento previsto pelo Direito e podem os médicos estar sujeitos a responsabilidade disciplinar.” É a opinião deste especialista.

Rui Nunes, catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, faz uma apreciação do caso, que lhe é relatado (...), “apenas do ponto de vista ético”. E é esta: “De acordo com princípios éticos consensuais e com as normas do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, devia ter-se obtido consentimento judicial.”

O assunto é difícil e polémico. No final de abril (...) foi divulgado o relatório do comité das Nações Unidas que avaliou como aplica Portugal a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo país em 2009. Nele denuncia-se que pessoas com deficiência, “especialmente aquelas que foram declaradas legalmente incapacitadas, continuam a ser, contra sua vontade, objeto de interrupção da gravidez, esterilização” e outras intervenções.

Os peritos da ONU manifestam a sua preocupação com estas situações. E aconselham o país a tomar medidas para “assegurar que se respeita o direito ao consentimento livre, prévio e informado do tratamento médico e que se proporcionam mecanismos de apoio” às pessoas com deficiência para que estas possam tomar decisões.

Tema “tabu”

(...) a secretária de Estado da Inclusão, Ana Sofia Antunes, [foi questionada] sobre os alertas do comité das Nações Unidas. As respostas chegaram via assessoria de imprensa do gabinete do ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, por escrito. Foi “com especial preocupação e apreensão” que o Governo teve conhecimento desse relatório, começa por dizer a nota.

O gabinete de Vieira da Silva garante que “o Governo está a recolher dados e informações sobre este assunto”. E “o mesmo deverá ser discutido no âmbito da alteração que está em curso sobre a legislação relativa aos regimes de interdição e de inabilitação” legal. Para já, nunca foi reportada ao Executivo “a existência de qualquer das situações descritas”.

Mas, acrescenta, “dada a complexidade da matéria, exige-se um estudo e ações concertadas em vários domínios setoriais, nomeadamente na Saúde, Justiça e na Segurança Social, para os quais se conta com o envolvimento de um conjunto de especialistas”. E remata sublinhando a importância de “mobilizar toda a sociedade, de modo a que seja assegurado o respeito integral pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”.

Estamos a entrar no domínio de um tema que ainda é “tabu”, avisa Julieta Sanches, presidente da direção da Federação Nacional de Cooperativas de Solidariedade Social (que recebeu o Prémio Direitos Humanos 2013, da Assembleia da República), uma das muitas instituições contactadas (...) nas últimas semanas, desde que o relatório do comité da ONU foi conhecido.

No seu gabinete da Cerci (Cooperativa de Educação e Integração de Cidadãos com Incapacidades), em Lisboa, Julieta Sanches, ela própria mãe de uma pessoa com deficiência, diz (...) que tem conhecimento de alguns casos — ainda que poucos — de pessoas que frequentam a instituição que dirige, em Lisboa, que foram esterilizadas.

Tomar “este tipo de decisões”, garante, “é muito doloroso” para os pais. Ela nunca deu esse passo. E diz que em muitos casos não se justificará. Mas noutros sim. E o assunto é demasiado complexo, afirma, para que se façam generalizações ou se aprove uma “legislação cega”. Há muito a ponderar.

Não há dados oficiais

Regressando a Santa Maria da Feira. Miguel Paiva, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, diz que a esterilização da jovem de 20 anos não levantou dúvidas aos médicos porque a comissão de ética daquela unidade de saúde tinha considerado, numa primeira avaliação, que a laqueação de trompas poderia acontecer se houvesse uma avaliação a atestar a sua necessidade e uma decisão judicial nesse sentido. “Porque havia este parecer da comissão de ética, de alguma forma ele enquadrava a possibilidade de isto ser realizado, porque o tribunal decretou a interdição” da jovem, justifica Miguel Paiva.

Mas esta posição é controversa, como já se percebeu. Para além do Código Deontológico dos médicos, também a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) publicou, em 2009, um relatório sobre “Consentimento informado”. Onde se diz que “se exige autorização judicial” em casos de “esterilização de incapazes adultos”.

E há ainda um parecer de 2001, do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, sobre um caso de laqueação de trompas numa menor de 16 anos com deficiência mental. “O indispensável recurso a tribunal de menores deve ser instruído por um relatório em que se demonstre que o atraso mental é profundo e irreversível, que a laqueação das trompas uterinas é o único procedimento contraceptivo credível no caso em apreço e ainda que não há esterilidade (que não é rara nos deficientes mentais profundos)”, lê-se no relatório com base na qual foi feito o parecer.

Um dado curioso: este parecer de 2001 foi suscitado, precisamente, por um caso — outro que não o da rapariga de 20 anos — com o qual o Hospital de São Sebastião teve de lidar, há 15 anos. Também fomos conhecer essa história.

Paula Campos Pinto faz questão de sublinhar que foram as associações que trabalham na área da deficiência em Portugal, e que constituem o conselho consultivo do Observatório da Deficiência (17 no total), que “insistiram que esta questão [da esterilização] fosse referida” no documento que fizeram chegar ao Comité dos Direitos das Pessoas com Deficiência, no âmbito da avaliação da ONU a Portugal. Quiseram, assim, dar visibilidade ao tema.

“Embora não haja dados oficiais sobre o recurso à esterilização de adultos com deficiência, de acordo com as instituições, muitos familiares ainda continuam a recorrer à esterilização forçada de adultos com deficiência”, lê-se nesse documento de Janeiro deste ano, dirigido aos 18 peritos independentes do comité.

“Acusação excessiva”

Como encarar a acusação de que há esterilizações forçadas? “Desconheço completamente a situação e nunca nenhum caso foi reportado à Ordem dos Médicos, que seja do meu conhecimento”, respondeu (...), por escrito, o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva.

O bastonário presume que situações como as descritas “serão pouco frequentes” e afirma que “gostaria de ter acesso aos dados/informações que motivam esta intervenção/relatório” da ONU.

Rui Nunes segue a mesma linha (...). “Creio que [a acusação da ONU] é excessiva, dado que Portugal tem feito um enorme esforço, a nível do Governo central, das autarquias, do Sistema de Saúde, para promover os direitos inalienáveis das pessoas portadoras de deficiência. Em todo o caso, a existir, são casos pontuais que devem ser sinalizados e deve ser clarificado qual o contexto em que a esterilização involuntária foi utilizada e os motivos que presidiram à sua utilização.”

Este especialista em bioética, ex-presidente da Entidade Reguladora da Saúde, lembra, de resto, que há cada vez menos necessidade de recorrer à esterilização porque são cada vez mais as “alternativas farmacológicas não-invasivas e não-irreversíveis para controlar este tipo de problema”. O Programa Nacional de Saúde Reprodutiva, da Direção-Geral da Saúde, recomenda para mulheres com deficiência mental a contraceção hormonal injetável (cujo efeito se prolonga por três meses) ou por implante (duração até três anos).

Sobre a ideia de que há um “vazio legal”, discorda. “Penso que não há nem vazio legal, nem deontológico”, diz Rui Nunes. “O Código Penal é bastante claro no que respeita a intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos (Artigo 150.º): ‘As pessoas … que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias …’. Pelo que conjugando o Código Penal com o Código Deontológico penso que se pode afirmar que existe um enquadramento ético-jurídico suficientemente robusto.”

“Há 15 anos, havia médicos que me diziam: ‘A pessoa entra na instituição e no dia seguinte faz-se a laqueação, não é problema, os pais querem, faz-se’”, conta André Dias Pereira. “Nos últimos anos, sobretudo desde que o Código Deontológico veio espelhar — de forma curta, mas está lá — a exigência de que isto passe por um tribunal, as coisas vão melhorando. Mas é como em tudo: haverá instituições onde não é respeitado, a pedido das próprias famílias das pessoas com deficiência”, afirma o jurista. “Estamos a falar de ‘crimes sem vítimas’ que é uma expressão que se usa quando as vítimas não têm capacidade de se queixar.”

E a propósito de queixas, à Provedoria da Justiça, segundo disse recentemente (...) o provedor José de Faria Costa, “nunca terá chegado nenhum caso”. Seja como for, Faria Costa é categórico: qualquer esterilização forçada “é intolerável”.

Adolescentes esterilizadas

Fala-se pouco sobre este tema. Mas há algumas publicações a abordá-lo. Por exemplo, está disponível na Internet o artigo “Problemas ginecológicos em adolescentes com patologia neurológica”, publicado num número de 2008 da Ata Pediátrica Portuguesa e assinado por três médicos, à altura todos do Hospital de Dona Estefânia.

O artigo faz uma revisão de casos de adolescentes “referenciadas da consulta de Neuropediatria para a consulta de Ginecologia de um hospital materno-infantil, entre janeiro de 1998 e maio de 2007”. Revela que, em 37 adolescentes com défice cognitivo, oito das que apresentavam um défice cognitivo profundo “foram esterilizadas por necessidade de contraceção e/ou dismenorreia intensa [dores menstruais], menorragia [período menstrual intenso] ou dificuldades com a higiene menstrual”.

As intervenções são descritas assim: “Quatro laqueações tubárias laparoscópicas, duas histerectomias supracervicais e duas histerectomias totais.”

Concluem os autores que estas intervenções foram fundamentadas “na comprovação do défice cognitivo e da sua irreversibilidade, na avaliação do risco de gravidez e na incapacidade para a maternidade responsável”. Nada é dito sobre se houve autorização judicial prévia.

Um dos autores, o pediatra Filipe Silva, (...) fez saber que essa informação não foi na altura recolhida. “O nosso trabalho foi retrospetivo, isto é, por consulta dos processos clínicos do arquivo. Não fiz levantamento de dados do processo de decisão/consentimento informado da cirurgia.” Filipe Silva deixou o Hospital de Dona Estefânia em 2008, quando terminou a especialidade de Pediatria.

O artigo de que é coautor refere vários dos dilemas que este tipo de intervenções colocam. “Para alguns autores e profissionais de saúde, a esterilização é considerada o método contraceptivo mais fiável para as mulheres com défice cognitivo, tendo em conta as dificuldades de adesão à terapêutica relacionadas com as dificuldades na compreensão e com problemas comportamentais. É também considerada como uma medida de segurança na perspetiva do risco futuro, quando os pais deixarem de estar presentes. Contudo, estas opções terapêuticas mantêm-se controversas por vários motivos de ordem ética e legal e pela memória de situações de abuso no passado, com programas de esterilização forçada de pessoas com diversos tipos de desvantagem. Estes programas, iniciados nos EUA no princípio do século passado, estenderam-se até aos anos 70, passando também pela Alemanha nazi e por outros lugares um pouco por todo o mundo.”

Desde então, em vários países, legislou-se para que esses abusos não voltassem a ser possíveis. Em Portugal, a Lei 3/84, sobre esterilização voluntária em indivíduos maiores de 25 anos, não prevê, ao contrário do que acontece noutros países, situações de esterilização de deficientes mentais. “A maioria dos autores advoga que as decisões que caem nestes vazios legais devem ser partilhadas por profissionais de diferentes áreas, com pareceres de Comissões de Ética e, eventualmente, dos tribunais”, prossegue o artigo da Acta Pediátrica Portuguesa, mas outros consideram “estas medidas excessivas”. Teme-se pela demora dos processos em tribunal, e teme-se, também, que se feche a porta “a intervenções com benefícios inequívocos” para as pessoas com deficiência.

Apesar dos pedidos feitos ao longo de várias semanas, o Centro Hospital de Lisboa Central não respondeu (...) sobre que procedimentos foram adotados nos oito casos descritos neste artigo, nem sobre quantas intervenções semelhantes foram realizadas de 2007 até agora, quer no Hospital Dona na Estefânia, quer na Maternidade Alfredo da Costa.

Perguntámos também ao centro hospitalar do Porto sobre situações deste tipo. Fez saber apenas que “não tem casos destes”.

A rapariga que queria ter filhos

“Houve uma pessoa de uma instituição que trabalha com pessoas com deficiência que me contou o seguinte: uma rapariga que frequentava a instituição tinha sido esterilizada, mas não sabia e falava continuamente sobre o seu desejo de ter filhos e de ser mãe”, relata Paula Campos Pinto.

“Não tinha a mínima ideia de que tinha sido esterilizada”, insiste. “Eu admito que os pais façam isto por ignorância, por incapacidade, por genuíno afeto e vontade de proteger a pessoa, mas é preciso trabalhar com esses pais e com essas famílias para lhes explicar que não é esta a melhor forma.”

A coordenadora do Observatório da Deficiência defende que, haja ou não intervenção de um juiz, a esterilização de uma pessoa sem o seu consentimento expresso viola o espírito da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que estabelece, entre outras, que “as pessoas com deficiência, incluindo crianças, mantêm a sua fertilidade em condições de igualdade com os outros” e que todos são iguais perante a lei.

“Mas a ideia que ainda está presente nos espíritos é: ‘Esta pessoa é vulnerável, é dependente, vamos protegê-la, vamos, com base numa noção nossa do que é o melhor interesse daquela pessoa, protegê-la.’ Ora isto não é uma perspectiva de direitos humanos", defende Paula Campos Pinto.

Julieta Sanches tem dedicado a sua vida às Cerci, que têm como lema trabalhar para “a qualidade de vida das pessoas com deficiência intelectual e multideficiência”. Entende que não se pode simplesmente criticar as famílias que optam por uma laqueação de trompas das filhas — “As famílias têm medo das violações, porque estas pessoas não se sabem defender, têm receio de que as suas filhas engravidem, porque não são capazes de tomar conta dessa gravidez, e há uma maior probabilidade de os métodos contraceptivos não serem eficazes, porque estas pessoas não são autónomas.”

A rapariga que ia para o Cais do Sodré

Dos casos que conhece (e não conhece ninguém que tenha sido submetida a uma interrupção da gravidez, nos termos referidos no relatório da ONU), acredita que todas as intervenções feitas se justificaram. Apesar de achar que, em geral, são “decididas entre a família e o médico” sem autorização de mais ninguém. “É natural que os peritos da ONU estejam preocupados, mas acho que entrámos num exagero.”

Admite que “há casos em que a laqueação é feita sem que as jovens percebam o que se está a passar, porque não têm essa capacidade de apreender”, continua. Mas reforça: “Cada caso é um caso.”

Recorda uma história: “Há muitos anos, uma das nossas jovens do centro de formação fez uma laqueação. Ela fugia de casa e, durante a noite, andava na rua, com uns, com outros. Quantas vezes a nossa cozinheira, que era uma pessoa com quem ela tinha uma boa relação, a foi buscar às três da manhã ao Cais do Sodré, ao Intendente, enfim... Tinha uma deficiência ligeira, que é, por vezes, onde subsistem os maiores perigos, porque as pessoas são mais autónomas e, se têm um desejo sexual mais exacerbado, não percebem porque é que não podem... Vivia com uma irmã que não conseguia controlá-la e que tinha de trabalhar. Até que a irmã e o irmão falaram connosco. Nós aconselhámos a pílula, mas a decisão foi deles. A irmã já se via com uma série de sobrinhos sem ter capacidade de os sustentar.”

Julieta Sanches não sabe como foi feita a laqueação nesse caso. “Não sei se falaram com a jovem, se ela concordou. Era um caso muito complexo. Claro que o perigo das doenças [sexualmente transmissíveis], por exemplo, não se resolve. O dos abusos sexuais não se resolve com a esterilização...”

Esse é um dos problemas de fundo que Alice Cabral encontra “quando estamos a abordar estes temas”. Alice Cabral é coordenadora do Movimento Fé e Luz, presente em mais de 80 países, que integra comunidades de encontro e reflexão de jovens com deficiência, pais e jovens voluntários.

Diz-lhe a experiência de décadas a lidar com pessoas com deficiência que se uma jovem revela um comportamento muito sexualizado, como é relatado em alguns dos casos em que estas intervenções são feitas, isso está, muitas vezes, relacionado com o facto de ter sido alvo de abusos sexuais — aliás, muitos estudos mostram como a população com deficiência é especialmente vulnerável a abusos sexuais. “Pode até ser importante haver uma laqueação. Não tenho uma visão fechada. Mas se calhar a jovem precisa, sobretudo, de ter um projeto de vida dela, que a proteja dos abusos, em vez de lhe serem laqueadas as trompas. Há uma visão redutora: ‘Pelo menos não engravida, o resto’... o resto, se calhar, vai continuar a acontecer. E esta é a minha dúvida em relação a estes procedimentos.”

O que é ser humano?

“Em todas as legislações dos diferentes países, existem problemas relativamente à implementação do artigo 12 da Convenção [Reconhecimento igual perante a lei]”, afirma Paula Pinto. Por uma razão: “Levámos séculos a definir, a identificar a nossa humanidade com base na racionalidade. ‘Eu penso, logo existo.’ Descartes escreveu isto e desde então que pensamos assim: uma pessoa que não tem toda a sua capacidade intelectual é alguém que não tem uma existência exactamente humana e, a partir daí, tudo é possível. Mas nós precisamos de perceber que isto é um mau ponto de partida.”

Como assim? “Os novos conhecimentos que existem, nomeadamente no campo das ciências neuromédicas, têm mostrado que as emoções também nos distinguem enquanto seres humanos. E esta descoberta devia revolucionar a fundo aquilo que nós pensamos sobre as pessoas com deficiência.”

A adoção da Convenção, diz, vem trazer uma transformação radical: “Compete aos Estados criar os meios, os suportes necessários para que as pessoas possam tomar decisões e concretizá-las.”

Já Pedro Galveias, diretor técnico das atividades ocupacionais, da CERCIAG (Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos com Incapacidades de Águeda), garante que “as coisas não são tão terceiro mundistas como possa parecer” pelo relatório da ONU. Diz que “tanto as famílias como as instituições que trabalham com deficientes estão cada vez mais sensibilizadas para as questões dos afectos e da sexualidade desta população”, que têm sido desenvolvidos ações de formação a nível nacional nestas área (“que devem ser dirigidas a todos, desde às senhoras da limpeza aos técnicos”), e que é cada vez mais comum nas instituições os seus utentes namorarem e demonstrarem os seus afetos. Para impedir gravidezes indesejadas optam-se por métodos como os implantes hormonais, de longa duração. A laqueação não é algo que seja feito, diz, “é a minha experiência”.

Na prática, “quase todos os países admitem em certas circunstâncias a esterilização de doentes mentais profundos ou deficientes mentais profundos”, diz André Dias Pereira. Mas é um facto que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência coloca questões novas. “Agora, por vezes, a linguagem das convenções é uma linguagem proclamatória e, depois, os direitos têm de se conciliar”, reconhece, seja os direitos das pessoas com deficiência, da criança que pode nascer, dos avós da criança... “O não querer ser avó à força merece protecção da lei?”, interroga o jurista.

Julieta Sanches também aborda esse tema. “Sou uma pessoa com deficiência, quero ter um filho, não tenho capacidade para tratar dele. Do outro lado, está a família que diz: ‘Eu trato muito bem de ti mas não quero tratar de mais ninguém.’ Chocam-se aqui duas vontades.”

Mas há outra questão inquietante: um deficiente mental profundo, que não fala, que não entende o que é dito, como pode ser capaz de decidir num campo destes? “Há formas convencionais e não convencionais de a pessoa com deficiência expressar a sua vontade, não há só uma forma de comunicar”, sustenta a coordenadora do Observatório da Deficiência.

“A comunicação pode ser por intermédio de um ajudante, de uma pessoa que interpreta, que consegue ler os sinais daquela pessoa, que é, de alguma forma, a sua voz”, afirma Paula Pinto. “Em Espanha, quando ratificaram a Convenção, a primeira coisa que fizeram foi fazer formação nos tribunais sobre a Convenção e as suas implicações, receberam formação juízes e procuradores para estarem mais sensíveis ao artigo 12 da Convenção e às implicações que ele tem.”

Depois, é preciso dar às pessoas meios para elas exercerem os seus direitos. “No Canadá, encontrei um programa de ajuda pessoal, de assistentes pessoais, para o exercício da parentalidade por parte de pessoas com deficiência”, exemplifica.

Rui Nunes também concorda que, “na maioria dos casos, apesar de a capacidade estar diminuída, é sempre possível auscultar a pessoa com deficiência e respeitar a sua vontade devidamente informada e esclarecida”. Mas acha que hoje “os médicos estão muito mais sensibilizados para o imperativo ético que a obtenção de consentimento representa nas sociedades modernas e contemporâneas”.

Já Julieta Sanches acredita que é “utópico” achar que acontecerá sempre dessa forma. “Conheço um caso de uma pessoa com paralisia cerebral que teve uma criança, o sonho era ter uma criança. Tinha a parte motora bastante afectada, mas escolheu ter e a família apoiou. E está feliz e a família está feliz”, diz. “Mas temos casos de jovens que engravidaram sem ter condições para criar os filhos. Há famílias que têm condições, e a família alargada toma conta das crianças, e bem. E há outras crianças que têm mesmo de ser institucionalizadas. Se é isso que queremos para as nossas crianças... isto é um tema muito melindroso.” 

Fonte: Público

sábado, 25 de junho de 2016

Pobreza pode atrasar desenvolvimento das crianças

A investigadora Sónia Mairos Ferreira afirmou (...) que a pobreza pode agravar as situações de deficiência, perturbação e atraso do desenvolvimento por privar as crianças e jovens de recursos necessários para o seu crescimento. 
Numa intervenção na conferência parlamentar "Necessidades Educativas Especiais, Deficiência e Escolaridade Obrigatória - Quais os Desafios?", a professora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra contou o caso de uma aluna que teve de esperar sete meses para ter uns óculos para uma miopia de quatro dioptrias. "Isto significa que a aprendizagem da leitura, da escrita, do cálculo e as outras aprendizagens ficaram severamente comprometidas pelo facto de a criança não ter a prótese que lhe iria garantir o acesso à informação nas mesmas condições que os seus pares", disse Sónia Ferreira. 
A investigadora observou que este é "um exemplo mínimo" daquelas que são "as dificuldades reais que podem fazer com que as questões da aprendizagem sejam dificultadas" e limitem o desenvolvimento dos menores. As situações de pobreza causam "circunstâncias de privação múltipla", vulnerabilidade e podem agravar "os quadros de deficiência, de perturbação e de atraso do desenvolvimento", sustentou. 
Traçando um retrato da pobreza e exclusão social em Portugal, Sónia Ferreira adiantou que afeta cerca de 2.863.000 pessoas, enquanto a privação material severa atinge quase 11% da população. Relativamente aos menores de 18 anos, 31,4% estão em risco de pobreza e exclusão social. Há ainda 93.566 famílias beneficiárias do Rendimento Social de Inserção. 
Analisando estes dados com as necessidades educativas especiais (NEE) verifica-se que há um conjunto de crianças e jovens que precisa de "uma aprendizagem e de uma estrutura na escola distinta" da educação regular "para potenciar o seu pleno desenvolvimento", defendeu. E "não são pequenas" as percentagens de alunos já sinalizados nas escolas e a ser alvo de intervenção especializada no âmbito das NEE.
Segundo a investigadora, há 2.081 alunos em unidades de apoio especializado e unidades para a educação de alunos com multideficiência, quase 2.000 em unidades de ensino estruturado para alunos com perturbação do espetro de autismo e 10.331 com currículo específico individual. Há ainda cerca de 153 mil alunos que "têm muita dificuldade no desempenho de funções essenciais à sua vida" e 12.118 que foram sinalizados como tendo "dificuldades totais". 
Sónia Ferreira advertiu que "a pobreza e a exclusão social são potenciadoras da existência de dificuldades ao longo da trajetória de vida". "Se tivermos uma criança com necessidades educativas especiais no seio de uma família que se debate com as questões da pobreza e de exclusão social a probabilidade de saída deste ciclo de pobreza é muito baixa", disse, salientando que os níveis de escolaridade e literacia ligados a estas situações "são, em regra, inferiores aos seus pares". 
Também contribuem negativamente para o desenvolvimento destas crianças, as experiências de racismo, discriminação e de estigmatização que são alvo, as desigualdades no acesso a bens e serviços, "a inadequação de alguns apoios sociais" e a dificuldade de compreender a linguagem dos serviços que muitas vezes impede estas famílias de aceder a um conjunto de apoios a que têm direito.

Fonte: CM por indicação de Livresco

Horta biológica serve de terapia para jovens

A escola D. Dinis, em Quarteira, está a usar uma horta para ajudar na inclusão de alunos com necessidades educativas especiais, ao mesmo tempo que ensina à comunidade escolar os valores da natureza e da solidariedade. 
Há três anos que o professor de educação musical Aníbal Soutinho, com a ajuda da direção da escola, está a dinamizar um projeto que tem crescido exponencialmente. 
Num espaço pouco utilizado nasceu uma horta aberta a toda a comunidade escolar, mas com especial atenção a alunos com necessidades educativas especiais. 
"Estarem em contacto com a natureza é uma excelente terapia. Muitos deles apenas têm o contacto com estes produtos já nos supermercados e aqui podem presenciar todo o processo", conta (...) Aníbal Soutinho. Segundo o docente, a horta tem tido cada vez mais adesão por parte dos alunos e está previsto crescer ainda mais em termos de espaço. 
Uma boa notícia para quem participa ativamente nas tarefas agrícolas. "Já levei alfaces para casa e são muito boas. Até porque não têm quaisquer produtos químicos", afirma (...) Gabriel Almeida, de 15 anos e aluno do 9º ano, que partilha do mesmo entusiasmo do colega Daniel Ribeiro, de 16 anos: "Quero ver a horta bonita e bem tratada, por isso venho aqui quase todos os dias." 
São cultivados legumes e frutos e os destinos são variados. "Um dia a escola fez uma refeição só com produtos da horta e já levámos legumes para o centro paroquial local, onde são servidas refeições diárias a pessoas mais desfavorecidas. Assim colaboramos com a sociedade e ajudamos quem precisa", realça Aníbal Soutinho.

Fonte: CM por indicação de Livresco

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Calendário escolar para o ano letivo de 2016/2017

O Despacho n.º 8294-A/2016, de 24 de junho, determina a aprovação dos calendários, para o ano letivo de 2016-2017, dos estabelecimentos públicos de educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, dos estabelecimentos particulares de ensino especial, bem como o calendário de provas e exames dos ensinos básico e secundário.






As crianças doentes sem cura já têm uma “casa” quando saírem do hospital

Foram precisas grandes doses de persistência e tenacidade para erguer — reerguer é a palavra mais exata — a casa senhorial deixada em testamento, no século passado, por Marta Ortigão às irmãs hospitaleiras do hospital pediátrico Maria Pia para benefício de crianças “doentes ou desemparadas”. O edifício permaneceu encerrado ao longo de algumas décadas, até que o Centro Hospitalar do Porto concedeu à associação o direito de superfície por 28 anos.

Quando arrancou, a associação Nomeiodonada — “no meio do nada é como os pais se sentem quando os filhos entram numa unidade de cuidados intensivos, dizem que é como se estivessem no deserto”, explica a enfermeira — tinha mesmo muito pouco. Cada sócio inicial — oito profissionais de saúde e um pai — participou com 32 euros. Daí até aos 2,3 milhões de euros que foi necessário angariar para custear a obra bastaram meia dúzia de anos. De resto, quase tudo no Kastelo é doado, desde os tapetes aos candeeiros, aos móveis e mesmo vários equipamentos de saúde.

Tudo ali foi pensado para mascarar o facto de esta ser, afinal, uma unidade de saúde. Não há refeitório, mas sim “sala de jantar, como em nossa casa”, os enfermeiros e auxiliares vestem informais t-shirts em vez de batas, há bonecos pintados em todas as paredes. Uma "sala de terapias" está equipada com tudo o que é necessário para exercitar as crianças, numa ala à parte e que foi construída de raiz ficam os quartos, todos com saída para os jardins.

“É um pequeno hospital, mas tentámos desconstruir essa ideia”, explica José Couceiro da Costa, o empresário que começou por ser voluntário e agora é diretor financeiro da associação, depois de ficar com “uma dívida de vida para com o Serviço Nacional de Saúde”. Complicações na sequência de uma cirurgia levaram o seu filho mais novo a permanecer quase dois meses em coma no Hospital de Santo António e José nunca esquecerá o apoio dos profissionais que o trataram.

Enquanto vai falando com os operários que tratam dos últimos retoques e com o padre da paróquia de S. Mamede de Infesta que acaba de trazer o oratório e o crucifixo para a sala de oração, José não esconde a sua preocupação com a sustentabilidade do Kastelo. Com 30 camas, só foi possível contratualizar com o Ministério da Saúde dois terços, numa experiência-piloto que custará cerca de 700 mil euros por ano. “Não havia dinheiro para mais”, lamenta o empresário, que teme que a contribuição estatal para as 20 camas — dez em internamento, dez em ambulatório — não chegue para custear as despesas fixas e o pagamento à equipa de profissionais, que conta com médicos, enfermeiros, psicólogos e fisioterapeutas, entre outros.

Na associação todos estão, porém, habituados a fazer esticar o dinheiro. Muitas das salas e quartos do Kastelo têm mecenas. Há empresas, desde metalúrgicas a têxteis, mas também não faltam pessoas singulares a patrocinar a causa. Graças à campanha Arredonda levada a cabo pelo Lidl, foi possível juntar um milhão de euros, o prémio BPI Capacitar representou mais 100 mil euros, a Câmara de Matosinhos contribuiu com outros 300 mil, a Missão Sorriso doou 36 mil euros, enumeram. Mas muitos mais contribuíram. “Milhares de pessoas ajudaram. Portugal inteiro está aqui reunido”, frisam.

A casa também foi idealizada a pensar nos pais. Pais muitas vezes completamente exaustos, esgotados com o peso de terem um filho gravemente doente. Para eles, o Kastelo reserva o “quarto mais atípico de Portugal” — uma sala com três camas, duas mesinhas de cabeceira e nenhuma porta, “para não se sentirem constrangidos” — no primeiro piso do palacete, que alberga ainda uma biblioteca e duas salas de formação. A família, frisa-se, “é parte integrante do Kastelo”: às terças e quintas “cuida-se” das mães, ao domingo, dos pais, e, ao sábado, dos irmãos.

Cá fora, no jardim, foi criado um espaço recatado, atrás de treliças com heras, para os pais “chorarem”. “Em nenhum idioma existe um vocábulo para expressar a perda de um filho. Quando se perde um pai fica-se órfão, quando se perde um marido ou mulher fica-se viúvo. E se se perder um filho? Não há palavras. Se for filho único, deixa-se mesmo de ser pai ou mãe”, reflecte José Couceiro. No Kastelo, todos estão preparados para dar apoio no luto.

Teresa, que se habituou a falar com as crianças nos cuidados intensivos mesmo quando estão em coma — “elas não estão surdas” —, não abdica do seu lema. Quer que tenham “o melhor de tudo” enquanto a vida durar: “A filosofia do Kastelo é dar vida aos dias das crianças e não dias à vida.”

Fonte: Público

Crianças presas em espaços fechados não aprendem nem crescem

E se lhe dissessem que 70% das crianças portuguesas passam menos tempo ao ar livre por dia do que os 60 minutos recomendados para os detidos em prisões? Provavelmente não acreditaria, mas é verdade. A conclusão é de um estudo levado a cabo (...) no nosso país e vem reforçar as convicções de vários especialistas, segundo os quais é necessário fazer algo para mudar a situação com urgência. (...)

Uma das vozes que mais se tem feito ouvir nesta matéria é a de Carlos Neto, professor catedrático e investigador da Faculdade de Motricidade Humana (FMH). Nas suas palavras, esta tendência de manter as crianças em espaços fechados “retira-lhes a possibilidade de poderem viver uma infância feliz, por não experienciarem situações corporais que são próprias da idade e fundamentais na formação da sua personalidade e identidade”.

O Professor revela que “são crianças muito protegidas e aprisionadas corporalmente quanto a possibilidades de confronto com o espaço físico exterior”, lembrando ainda que esta não é uma situação exclusiva de Portugal: “Verifica-se de forma generalizada por todo o mundo e tem vindo a assumir dimensões muito preocupantes na perspetiva dos direitos e da saúde das crianças.”

Pandemia do controlo

Mas como é que se chegou a este ponto? Carlos Neto não hesita em apontar o dedo àquilo que designa por “pandemia do controlo adulto das experiências de movimento na infância” ou “terrorismo do não”. As consequências são as que se adivinham e o professor, a trabalhar com crianças há mais de quatro décadas, enumera-as: “Promove uma pobreza de cultura motora, criando condições para que se instale uma iliteracia física, prejudicial ao desenvolvimento de estilos de vida saudável nestas idades e ao longo da vida.”

Embora admita a importância do estabelecimento de regras na educação dos mais novos, realça que “os pais atuais têm uma preocupação excessiva, e por vezes obsessiva, em não permitir que os filhos corram riscos em situações de movimento ou de atividade física”. O problema é que, ao impedirem o confronto com o risco físico, estão a “contribuir para um aumento do sedentarismo e analfabetismo motor na infância”. Sublinha ainda que “aprender a mover o corpo em liberdade e sem constrangimentos é uma necessidade crucial para o desenvolvimento motor, cognitivo, emocional e social da criança”.

Desaparecimento da rua

Questionado sobre o contexto que levou pais e educadores a aprisionarem as suas próprias crianças, o professor elenca diversos motivos. Entre eles, o “desaparecimento da rua enquanto local de jogo”, muito por via da crescente urbanização das cidades, aumento do tráfego automóvel e ausência de políticas públicas dirigidas ao bem-estar na infância. Ao mesmo tempo, assiste-se ao “excessivo alarmismo dos órgãos de comunicação social sobre os perigos a que as crianças estão sujeitas”, levando à redução da permissão dada pelos pais para que se desloquem sozinhas.

O que os pais não sabem – ou facilmente esquecem – é que esta via da proteção excessiva está longe de ser benéfica para os filhos: “Brincar é ganhar confiança em si próprio e é também o melhor caminho para evitar o acidente, ou seja, quanto mais risco mais segurança.”

Ainda assim, o fundador e antigo presidente da Sociedade Internacional para Estudos da Criança não tem dúvidas em afirmar que “hoje temos melhores pais, melhores famílias, melhores crianças e melhor sociedade do que há anos atrás. O que está em causa é o aparecimento de novos problemas associados à educação das crianças do nosso tempo que podem estar a colocar em perigo a sua identidade, autonomia e necessidades básicas de desenvolvimento biológico e cultural”, alerta.
Mudanças precisam-se

Para inverter a situação são necessárias mudanças urgentes. Entre elas, Carlos Neto destaca “mais políticas públicas dirigidas à infância” e também “mais coragem política” na adoção de modelos que permitam conciliar melhor o trabalho dos pais com a escola e a família.

Na sua perspetiva, “a angústia da gestão do tempo dos filhos instalou-se na vida quotidiana dos pais, tornando-se um dos fenómenos mais intrigantes do nosso século”. Como resultado, os mais novos estão a ser vítimas daquilo que designa como um “inconsistente modelo de organização da vida social”. Pais cansados e em stress por excesso de horas de trabalho, por um lado, e crianças com agendas excessivas de tempo escolar e extraescolar, por outro, não permitem pensar na existência de tempo disponível para uma relação equilibrada e saudável do tempo para brincar entre pais e filhos”, afirma. E acrescenta mesmo que “de forma paradoxal, no nosso tempo passeiam-se mais os cães do que as crianças”.

Defende que “as cidades devem ser amigas das crianças e desenvolver projetos adequados às suas necessidades de desenvolvimento”. Para tal, considera que é necessária uma “nova cultura governamental das cidades e do seu planeamento”, contribuindo para a qualidade de vida das populações. Algo que já está “em grande desenvolvimento em muitas cidades do mundo”, nomeadamente nos países escandinavos, sublinha.

Mais presos, menos atentos

Comparar o tempo de recreio dos detidos em estabelecimentos prisionais com o tempo de recreio escolar é, para Carlos Neto, uma “forma inteligente de demonstrar o que está a acontecer na infância atual”. Apoiado em diversos estudos sobre o assunto, lembra que está demonstrado que “crianças ativas no recreio são aquelas que aprendem melhor dentro da sala de aula”, revelando mais capacidade de atenção e concentração. Por esse motivo, entende que “necessitamos de valorizar o tempo de intervalo escolar no projeto educativo das escolas públicas e privadas” e os “recreios devem ser estruturados de forma a ser aliciantes para as crianças”.

Lamenta que o tempo de recreio escolar seja uma espécie de “terra de ninguém”, acabando por ser “pouco valorizado pelos adultos”. “É caso para dizer que as crianças aprendem muito no recreio e deveriam brincar mais dentro da sala de aula”, sintetiza, explicando que “cerca de 90% dos reclusos presos por homicídio foram privados de brincadeira na sua infância”.

Fonte: Observador por indicação de Livresco

quinta-feira, 23 de junho de 2016

OCDE aponta riscos à separação de alunos em função das suas dificuldades

Separar os alunos por grupos, dentro de cada escola, ou até dentro de cada turma, em função do nível em que estão na Matemática, pode até ter como objetivo apoiar os que menos sabem, e estimular os que estão mais avançados. Mas métodos deste tipo, disseminados nos países da OCDE, e também utilizados em muitas escolas portuguesas, podem “reduzir as oportunidades de aprendizagem dos alunos mais desfavorecidos” em termos socioeconómicos, admite um relatório publicado esta semana pela OCDE.

Intitulado Equations and Inequalities: Making Mathematics Accessible to All, o relatório diz que cerca de 70% dos alunos de mais de 60 países e economias que participaram na última edição do PISA (sigla para Programme for International Student Assessment), em 2012, frequentam escolas onde existe a política de, nas aulas de Matemática, separar os alunos pelo nível em que estão. O PISA, recorde-se, é um estudo feito pela OCDE de três em três anos sobre a forma como os alunos de 15 anos aplicam conhecimentos e competências de Matemática, Leitura e Ciências perante situações da “vida real”.

Em Portugal, dos quase 6000 jovens que participaram em 2012 nessa avaliação, 60% frequentavam escolas onde existiam experiências deste género — sendo estas muitíssimo mais comuns em estabelecimentos de ensino situados em contextos sociais mais problemáticos. Já em países como a Nova Zelândia, Irlanda ou o Reino Unido a prática de agrupar alunos em função das competências dos mesmos está presente em quase 100% das escolas, tanto em contextos mais favorecidos como noutros mais difíceis, mostra o relatório.

Certo é que a OCDE recomenda que se faça uma avaliação às “políticas e práticas de seleção dos alunos em função das suas aptidões”.

Diz que a “verdadeira alternativa” são as turmas onde coexistem alunos com diferentes ritmos, admitindo, contudo, que isso é muito mais exigente em termos de ensino. Por isso, defende “que seja dado um apoio reforçado aos professores que trabalhem com turmas onde existe heterogeneidade”.

Mas mesmo os eventuais efeitos negativos de uma separação de alunos por nível podem ser mitigados, por exemplo, se essas soluções forem temporárias, sustenta. E se for oferecido aos alunos em dificuldades um apoio mais personalizado.

Alerta-se ainda para este facto: para além dos esquemas do tipo “turmas de nível”, práticas como a “transferência de alunos de uma instituição para outra por causa de problemas de desempenho ou de comportamento”, ou a definição de percursos escolares com base nos conhecimentos dos alunos — encaminhando-os para cursos vocacionais ou mais académicos, conforme as competências que revelam — estão igualmente associadas a “um acesso mais desigual aos conteúdos matemáticos”.

Quase 5 horas de aulas

O relatório começa por mostrar como o número de horas que as escolas dedicam às lições de Matemática tem aumentado. A média da OCDE é cerca de 3 horas e 38 minutos por semana, sendo em Portugal de 4 horas e 48 minutos. É uma das cargas horárias mais pesadas (aumentou cerca de uma hora e meia desde 2003), semelhante à que existe em Singapura, cujos alunos são dos que melhor se saem nos testes do PISA de Matemática (2.º lugar na edição de 2012). Portugal está em 23.º lugar no ranking dos 34 da OCDE.

Depois, os autores do estudo mostram como os alunos de meios familiares mais desfavorecidos beneficiam, em geral, do mesmo tempo de aulas de Matemática do que os seus colegas mais favorecidos. Aí não há diferença. E, no entanto, os primeiros mostram menos familiaridade com conceitos de matemática, como “média aritmética” — apenas 20% dos mais pobres dizem conhecer este conceito bem, contra 40% dos mais privilegiados. Em Portugal o hiato é maior ainda, 9% contra 37%. Em média, sem olhar à classe social, apenas 30% compreendem bem tal conceito.

“Os alunos mais desfavorecidos são expostos a problemas de Matemática aplicada básicos, enquanto os seus pares mais favorecidos têm acesso a um ensino que os ajuda a refletir como verdadeiros matemáticos e a adquirir uma compreensão dos conceitos aprofundada”, diz o relatório.

O tempo dedicado às aulas formais é importante. Mas "mais do que o tempo de instrução, são os conteúdos ensinados” que fazem a diferença na performance dos alunos quando confrontados com questões como as que lhes são colocadas no PISA, prossegue. Bem como “um bom clima disciplinar” na sala de aula.

Desinteresse e confusão

Em Portugal, os conteúdos que estão a ser ensinados têm suscitado preocupações. Esta semana, a Associação de Professores de Matemática (APM) divulgou uma carta aberta onde reforça “mais uma vez que está em total desacordo com os atuais programas e defende a sua suspensão e substituição o mais rapidamente possível”.

(...) João Pedro da Ponte, professor catedrático e presidente do Instituto de Educação, da Universidade de Lisboa, diz que há uma “grande onda de desinteresse e confusão entre os alunos portugueses”. Aponta o dedo às “mudanças curriculares intempestivas introduzidas em 2013, no sentido de uma formalização radical” da disciplina, que têm levado, na sua opinião, “à desmotivação crescente de alunos”. E ainda às “metas curriculares definidas em 2011, metas que os professores não percebem, que foram escritas de cientistas para cientistas”.

Pedro da Ponte antecipa mesmo “um choque” no próximo PISA. Acha que os alunos testados vão revelar resultados bem piores do que em 2012.

Sobre as "turmas de nível", lembra que “a discussão é antiga” e defende “soluções intermédias”. “Para alunos com mais capacidade pode ser vantajoso estar em turmas de alunos com mais capacidade. Mas acredito em soluções que não estigmatizem”, que sejam temporárias, e onde os mais fracos tenham acesso a apoios reforçados, como existem nas chamadas Turmas Fénix em várias escolas.

Matemática complexa

O que o relatório da OCDE vem sublinhar é que mesmo os mais fracos devem ter oportunidade de aceder à Matemática mais complexa.

“A exposição a tarefas e conceitos de matemática pura (como equações lineares ou de segundo grau) está fortemente ligada à obtenção de melhores resultados nos testes do PISA”, lê-se. Já “a correlação entre a exposição dos alunos a problemas de matemática aplicada simples (como utilizar um horário de comboio para calcular quanto tempo dura o trajeto de uma estação a outra) e a sua performance no PISA é mais fraca”.

Pelo que, conclui-se, “a simples inclusão de referências ao mundo real no ensino da Matemática não transforma um exercício de rotina num bom problema”. Ou seja, “usar problemas bem concebidos e desafiantes nas aulas de Matemática”, isso sim, “pode ter um enorme impacto na performance dos estudantes”.

A OCDE reconhece a dificuldade de ensinar alunos, sobretudo em meios mais desfavorecidos, “a desenvolver estratégias de resolução de problemas, estabelecer ligações, fazer previsões, conceptualizar”. Talvez seja preciso reformular manuais escolares, materiais de ensino e apostar “na formação específica dos professores”.

Fonte: Público

Jovens lusos criam app para portadores de deficiência

A aplicação EBSSA+ Especial foi criada por estudantes da Escola Básica e Secundária de Santo António, no Barreiro, para ajudar portadores de deficiência com dificuldades de comunicação e venceu o primeiro prémio do concurso nacional App for Good.

A aplicação foi pensada para auxiliar jovens com autismo, portadores de trissomia 21 e vítimas de acidente vascular cerebral a expressarem-se através de imagens, que aqui se encontram organizadas por temas.

O software também inclui um jogo didático, dados sobre os cuidados de saúde dos utilizadores e contactos de emergência.

"O trabalho desenvolvido pelos alunos da Escola Básica e Secundária de Santo António no Barreiro é prova do potencial do jovem talento que existe em Portugal e do sucesso do concurso Apps for Good" que pretende "estimular e capacitar jovens a perceberem e aplicarem o potencial da tecnologia para transformar o mundo", diz João Baracho, diretor-executivo da organização CDI Portugal, que apoia o desenvolvimento de tecnologia para o desenvolvimento de uma vida ativa.

A aplicação venceu o prémio "Melhor App" da iniciativa nacional Apps For Good 2014/2015, promovida pela CDI, e representou Portugal na final internacional do mesmo concurso, que decorreu em Londres no dia 20 de junho.

Fonte: Boas Notícias por indicação de Livresco

Na promoção da leitura, não se deve dar a mesma receita a todos

O escritor e ilustrador brasileiro Roger Mello, presente no Encontro de Literatura Infantojuvenil em Pombal, Leiria, defende que a promoção de leitura não deve ser feita com a mesma receita para todos.

"Não se deve dar a mesma receita a todos, de maneira nenhuma. As crianças são indivíduos e tentar trabalhar de maneira homogeneizada gera uma série de não leitores", disse à agência Lusa o autor Roger Mello, que ganhou em 2014 o prémio Hans Christian Andersen, tido como o Nobel da literatura infantil.

O escritor, que fala hoje em Pombal, para uma plateia composta por professores, educadores de infância, animadores e bibliotecários, considera que cada criança tem gostos particulares, sendo necessário "respeitar a diferença".

Para Roger Mello, nem toda a gente tem de gostar de Machado de Assis ou de Eça de Queirós (por muito que ache isso "um absurdo"), admitindo que as animosidades para com alguns autores podem ter origem nessa leitura imposta.

Um plano de leitura rígido "cria um pavor da leitura", disse à Lusa. "É horrível, porque, se uma criança tem de ler alguns autores muitos bons, estes parecem horríveis porque são obrigados [a lê-los]", e acaba por se criar "um trauma".

De acordo com Roger Mello, "a melhor coisa" para promover a leitura é garantir "uma biblioteca acessível", "bons promotores da leitura" e professores "que gostem de ler".

O escritor, natural de Brasília, tem mais de cem obras publicadas, mostrando um "fascínio" pelo diálogo "intenso", entre imagem, texto e design, que gosta de imprimir na sua obra, bem como pelo "universo infantil".

Apesar de trabalhar na área da literatura infantil, Roger Mello recusa-se a fazer uma divisão das obras por idades, considerando que a diferenciação de públicos "é coerciva". "O público é que vai eleger o que vai ler".

Por isso, quando escreve e desenha, fá-lo "egoisticamente", considerando que essa é "a melhor maneira de fazer para o outro".

"Não sendo eu mais uma criança, teria de me esforçar para não ser preconceituoso. O mal de muitas pessoas que trabalham nesta área é que tentam fazer para o outro, sendo que elas não são o outro", explica o autor formado em design industrial.

Um erro "muito comum" de autores que escrevem para o público infantil, passa por "usar todos os diminutivos e tornar [o livro] mais acessível e mais fácil". "Mas tornar mais acessível é tornar inacessível. É fazer para ninguém".

"Encantado" pela loucura das crianças, Roger Mello, apela para que o mundo seja mais infantil e mais louco, lamentando que a sociedade faça com que a criança "vá crescendo e vá-se afastando da loucura" e perdendo o seu lado experimental.

Numa sociedade "pragmática e meritocrática ao extremo", o autor encontra na criação e na arte, cuja "maior função é não ter função", uma forma de mostrar que o mundo "não precisa de ser pragmático" ou feito de "coisas como o mercado".

"A maturidade não nos tornou melhores. A maturidade não fez nem um pouco de bem às pessoas. Não nos tornou mais adultos. Temos todos de ser mais infantis", conclui.

Fonte: RTP por indicação de Livresco

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Reformulação da atribuição do subsídio de educação especial

Pela Resolução da Assembleia da República n.º 113/2016, de 22 de junho, propõe-se a reformulação da atribuição do subsídio de educação especial, designadamente:

— A alteração do Decreto Regulamentar n.º 14/81, de 7 de abril, na redação que lhe foi dada pelo Decreto Regulamentar n.º 19/98, de 14 de agosto, de forma a garantir a atribuição do subsídio de educação especial às crianças e aos jovens que preencham os requisitos necessários para esse efeito, assegurando uma resposta eficaz às suas efetivas necessidades.

— A revogação do Protocolo de Colaboração celebrado, em 22 de outubro de 2013, entre o Instituto da Segurança Social, I. P., e a Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares e a celebração de um novo instrumento que garanta a efetiva atribuição do subsídio de educação especial no ano letivo 2016/2017. 

— A abertura de um processo de auscultação das associações representativas do setor e de outros interessados, com o objetivo de rever os diplomas legais que regulamentam o subsídio por frequência de estabelecimento de educação especial, respeitando a Recomendação n.º 1 -A/2008 do Provedor de Justiça. 

— A salvaguarda dos meios humanos e materiais nos cuidados primários e hospitalares do Serviço Nacional de Saúde (SNS), necessários a assegurar a resposta às necessidades clínicas de todas as crianças e jovens com deficiência, no médio e longo prazos.