Já lá vão seis anos desde que a Escola EB 2/3 António Alves Amorim, em Lourosa, Santa Maria da Feira, proibiu o uso de telemóveis em todo o recinto. A recente explosão mediática do caso – os responsáveis garantem que os alunos, hoje, socializam mais – tem vindo a instalar um debate na sociedade que está longe de ser consensual. Neste ano letivo, os agrupamentos de Almeirim também o vão proibir nas escolas do 1.º ciclo, seguindo uma recomendação do Conselho Municipal de Educação. Uma petição pública pelo caminho e o próprio ministro da Educação já pediu um parecer ao Conselho das Escolas sobre o uso de telemóveis dentro dos estabelecimentos de ensino, por se tratar de um “tema complexo”. Tão complexo que divide até os especialistas.
“O debate é totalmente pertinente, sendo certo que não concordo absolutamente nada com a exclusão total dos smartphones, nem na sala de aula porque pode ser um instrumento valioso, nem no recreio.” João Nuno Faria, psicólogo e coordenador do núcleo de intervenção no comportamento online na clínica PIN – Partners in Neuroscience, conhece bem as consequências do uso excessivo do telemóvel por jovens (lá iremos), mas defende que a proibição é “uma imposição altamente artificial”, “corre-se o risco de se criar uma realidade distópica dentro da escola”. Na verdade, lembra, os próprios adultos usam os telemóveis nas pausas do trabalho quando poderiam estar à conversa com os colegas. Porém, a questão primordial está em olhar para as escolas, “que são iguais à realidade dos anos 1980 ou 1990”. “As crianças hoje são diferentes, os estímulos mudaram, o conhecimento sobre o Mundo das crianças e jovens mudou, mas o recreio e a sala de aula são os mesmos.”
Mas quais são as vantagens do telemóvel na escola? Dentro da sala de aula, pode ser um instrumento pedagógico para pesquisar informação, para uma aprendizagem ativa, “se devidamente utilizado”. “Há uns anos valentes fui convidado para ir conhecer uma escola em Lisboa e um aluno do quarto ano veio mostrar-me o seu caderno, onde estava colado um QR code ao lado de uns apontamentos. Passando o tablet ou o telemóvel sobre esse código, dava acesso a um vídeo de uma nave espacial a romper a atmosfera e a entrar no Espaço, coisa que nenhum livro tem a capacidade de fazer.” A opinião de João Nuno Faria não é diferente quando o assunto é o recreio, que “já devia ser mais interativo, com códigos QR espalhados para caças ao tesouro, para exploração de interesses musicais, as possibilidades são gigantescas, mesmo para estimular a interação, e está-se a desperdiçar uma tecnologia que podia ser usada com benefícios”.
O psicólogo que trabalha com problemas de excessos, de adições online, não é alheio aos riscos das utilizações abusivas de smartphones ou de redes sociais. Longe disso. “Mas a proibição que se está a fazer não é pelo uso excessivo, é porque se olha para o recreio e se vê os jovens todos conectados. Mas qual é a alternativa? O contexto não é rico. Os recreios na maior parte das escolas em Portugal são ambientes estéreis, tirando um campo de futebol.” Além disso, sublinha, os casos de uso excessivo de smartphone são cerca de 2%. E os casos de risco andam perto dos 10%. “As consequências do uso desregrado são taxativas e preocupantes, uma delas é a queda do rendimento escolar, mas não corresponde a todos os jovens que usam smartphones.”
Riscos, os pais e os limites aos ecrãs
Olhemos, pois, para essas consequências. Estar fixamente a olhar para um smartphone não só traz problemas físicos como um conjunto de falta de experiências que a interação humana cara a cara proporciona, “é um vazio ao nível do treino de competências sociais não verbais”. As redes sociais também entram nos perigos, estão construídas com um algoritmo “que entrega aquilo que o indivíduo gosta, que atesta o que ele pensa e confirma as suas ideias sobre o Mundo, o que não estimula o espírito crítico”. Claro que há muita criatividade no TikTok, muito conhecimento a circular no Instagram ou no Facebook, mas a navegação vai bem além disso. E há dois aspetos ainda mais preocupantes para João Nuno Faria. A falta de desenvolvimento emocional, espelhado em “terminar relações por mensagem, sem o confronto cara a cara, sem sentir o impacto da dor no outro, o afastamento do humanismo”. E a questão da espera. “As interações pessoais implicam saber esperar, para um jogo de futebol entre amigos é preciso compatibilizar horários, esperar que toda a gente se equipe, se organize, é muito diferente do online em que o jogo começa imediatamente. As crianças hoje não treinam a espera.”
Certo é que os pais têm de entrar neste debate, conhecer os perigos, procurar serem modelos de uma utilização regrada, estar atentos a uma utilização excessiva. Só que perceber quando é que a utilização passa os limites não é tarefa fácil num mundo cada vez mais tecnológico. As orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) têm por base o sedentarismo e a atividade física. Até aos dois anos, segundo a OMS, ecrãs é melhor não. Depois, entre os dois e os cinco anos, sugere-se uma hora por dia no máximo e não mais de duas horas entre os cinco e os 17. “Se pensarmos na realidade atual, pondo todos os ecrãs dentro deste saco, é irrealista. Se virmos um filme na escola esgota-se aí o plafond? Há ecrãs e ecrãs. Os ecrãs passivos, onde entra um programa de televisão, um vídeo no Youtube, um filme, uma série. E os ativos, que são aqueles que devolvem alguma coisa de acordo com a interação, como as redes sociais e videojogos. Estes últimos têm muito maior potencial aditivo e é preciso estar-se mais atento”, avisa João Nuno Faria.
Voltemos ao recinto escolar. Para Iolanda Ribeiro, professora na Escola de Psicologia da Universidade do Minho e coordenadora do grupo de investigação em Linguagem, Leitura e Escrita, que desenvolve programas para escolas, muitos deles digitais, além de jogos interativos de leitura ou atividades digitais para pais e filhos, a pergunta que tem de ser feita é “por que é que as crianças precisam de um telemóvel na escola?”. A partir do 2.º ciclo, afirma, a questão é pertinente, mas até lá “não há razão nenhuma”.
Não é só o isolamento e a menor interação social, é o menor desenvolvimento de competências, as alterações do sono. “Isto implica pensar não só na escola, mas em todos os contextos da vida da criança e no facto de os pais lhes darem telemóveis tão cedo. Não o fazem por mal, fomos todos submersos pelo digital, mas há aqui um papel fundamental da família”, refere a investigadora. Até as crianças entrarem para o 1.º ano, alerta, é preciso muito controlo.
E pondo os olhos no debate que se acendeu nos últimos tempos, Iolanda Ribeiro assume que uma proibição generalizada nas escolas pode ser exagerada, “não podemos ignorar que as crianças nascem num ambiente digital, mas pode ser boa para abrir uma discussão mais alargada”. Uma discussão que tem de envolver sociedade, Ministério, escola, família, ciência. “Não sei se vai ser possível proibir os telemóveis em todas as áreas da escola. Mas definir regras parece-me fundamental, até pelos impactos neurológicos que os estudos têm vindo a apontar. A ciência também tem de ajudar a clarificar o caminho. É óbvio que há coisas no digital fantásticas, pode ser muito útil para a aprendizagem com atividades orientadas, mas o seu uso tem de ser controlado”, atesta.
Lá fora e as dúvidas entre proibir e sensibilizar
Olhemos para a Europa. Nomeadamente para a Suécia, onde o governo está a recuar na aposta que tinha na digitalização total do ensino, as escolas estão a voltar a recorrer mais aos livros e a reduzir o tempo dedicado às pesquisas nos tablets. Em França, a proibição de telemóveis nos estabelecimentos de ensino foi adotada em 2018. Nos Países Baixos, a mesma medida avança no próximo ano. Lia Raquel Oliveira, professora universitária de tecnologia educativa, tem vindo a mudar de opinião. “Antigamente, achava que os telemóveis deviam ser usados também na escola. Hoje não. Acredito que, pelo menos até ao sexto ano, não deve haver telemóveis nas escolas. A partir daí há que haver bom senso, criar caixas para guardar os equipamentos em determinados momentos. Já temos informação suficiente para sabermos que nos distraem completamente, que nos tiram o foco, pior ainda nos mais jovens. E o uso tem de ser cauteloso.”
Do 6.º ano para a frente, a docente do Instituto de Educação da Universidade do Minho não é defensora da proibição, mas, tal como João Nuno Faria, acredita que é preciso abandonar a escola pós-industrial e criar a escola do século XXI, para se pensar em como se encaixam os telemóveis. “É inglório e absurdo pensar na questão dos telemóveis sem pensar a escola, os currículos, para que existe, como se faz.”
Júlio França conhece bem os corredores das escolas. É psicólogo da educação numa secundária e faz uma ressalva antes de tudo: “O telemóvel não é o diabo em si. Sei que há professores que recorrem a jogos digitais, que usam esta ferramenta na aula, e que os alunos até se sentem mais motivados quando o podem usar.” O problema é a vida para lá das paredes da sala de aula, são as horas infinitas de olhos nos ecrãs nos recreios e em casa. “Vemos, muitas vezes, que os alunos acabam por não socializar nos intervalos. Estão sentados, cada um a olhar para o seu telemóvel e isso promove o isolamento social.” Não é só, há consequências físicas, de saúde mental, “e a questão do bullying nas redes sociais, um fenómeno que se vê a acontecer e que é muito facilitado porque o telemóvel está mesmo à mão”.
Apesar de tudo, a proibição taxativa não lhe parece a receita milagrosa, “o fruto proibido é o mais apetecido, cada escola ou agrupamento deve poder decidir no seu regulamento interno”. Até porque, lembra, “o comportamento nas escolas não é diferente daquele que todos nós temos socialmente, a vida na escola não faz mais do que refletir o que se passa fora”. O caminho, acredita, é o da sensibilização e os profissionais da educação têm de entrar neste jogo. “Hoje, a escola é responsabilizada por tudo e mais alguma coisa, mas neste tema pode de facto haver um papel importante na promoção de hábitos saudáveis nos intervalos.” Sendo certo que as famílias não podem ser desresponsabilizadas, não se podem demitir de um trabalho necessário, “não podem ter medo de definir limites aos filhos, não podem continuar a fazer o que se vê nos restaurantes, a entregar o telemóvel aos miúdos para eles se entreterem”. Embora o psicólogo admita que “hoje é praticamente impossível fugir a isso” e que é difícil contrariar estes hábitos.
Júlio França não é adepto de verdades absolutas quanto ao tempo de ecrã por dia, depende de família para família, mas dá uma dica. “O uso do telemóvel, do computador, da Playstation, da Nintendo não pode ser o tempo maior da vida da criança. Precisa de se mexer, de ter atividade física, de interagir com outras crianças e adultos. A exposição aos ecrãs não pode ser a fatia principal do bolo do dia a dia da criança.”
Há uma certeza, as crianças e jovens de hoje serão adultos necessariamente diferentes em termos de comportamento daqueles que passaram a infância a jogar à bola. Mas ainda não há consenso nem tampouco fórmulas mágicas sobre o caminho a seguir dentro das escolas.