Aqui os servos nós eles senhores
aqui ficamos nós aqui levantam voo não
os aviões mas certas aves de arribação
Ruy Belo
Em 1933, projeta-se Zéro de Conduite: jeunes diables au collège. É um poderoso manifesto visual contra os ambientes escolares repressivos e anacrónicos. A mensagem fílmica centra-se na revolta dos alunos contra o cosmos asfixiante de uma escola; o espírito que anima os adolescentes é justamente reivindicar a liberdade: “Liberdade ou Morte! A nossa bandeira deve ser desfraldada!” – gritam entusiasmados os escolares. A curta-metragem incorpora o registo autobiográfico de Jean Vigo, mas insere-se num período fértil de intensa e premente reflexão pedagógica em que fervilhava a possibilidade de mudar o mundo reinventando a escola e, para além de circunstanciais eventos, este documento é uma homenagem a todo um universo de pedagogos que, em face dos severos contrastes sociais, sempre se preocuparam na reconstituição da sociedade sem claudicarem do significado da dignificação da dimensão educativa, expurgando as injunções simbólicas das comunicações monológicas. A génese dos movimentos que ousaram inventar espaços educativos também está presente, por contraste, nesta marcante película.
Os tempos traumáticos da primeira refrega mundial questionaram a essência da escola e a carnificina de uma juventude deslocada abruptamente para o teatro de guerra evidenciou um inventário de temas existenciais e ruturas sociológicas que ultrapassava as inócuas estéticas de realismo emocional. Investiu-se na construção da paz através de uma educação nova capaz de dinamizar as gerações futuras para um espírito de cooperação e solidariedade; educar significava procriar um clima de liberdade e de harmonia como o garante da emancipação e a génese de um adulto melhor. Esta aventura teve inúmeros protagonistas, assumindo as escolas novas a autonomia, a educação mista, a aprendizagem pelos sentidos como as suas grandes missões. O contacto com a natureza e o desporto também estiveram presentes. Os tempos mudaram drasticamente e as ideologias totalitárias dos anos 1930 cercearam a gradual disseminação de um novo paradigma educativo. O confronto foi inevitável e vertiginosamente o declínio foi uma consequência, surgindo posições que se centraram numa educação para as elites, em detrimento da sua generalização pelas classes populares. A liberdade de aprender cedeu à introdução de uma disciplina física e simbólica; o combate pelo progresso humano foi-se dissipando em redutos centrados com religar o sentido da humanidade.
No entanto, a herança destes movimentos perdura e assume-se como uma via de ressurgimento de perspetivas pedagógicas e sociais que possam configurar alternativas nos tempos presentes.
A evolução recente das sociedades origina transformações de amplitude inusitada que indiciam uma absoluta incomodidade e fratura sociais. Fenómenos como o fecho de fábricas, o aumento do desemprego e da precariedade, os salários baixos e a multiplicação de horários atípicos, o nascimento do submundo das empresas de trabalho temporário, e o cortejo de múltiplas humilhações quotidianas, são uma constante. A paisagem urbana é angustiante e as periferias das cidades são desoladoras e anódinas. O desmantelamento mundo rural origina fenómenos de desmoralização e o tendencial afastamento dos centros de decisão. A dessincronização dos ritmos profissionais e familiares é uma realidade preocupante em concomitância com a reconfiguração das mesmas e um acentuado envelhecimento das sociedades. As sociedades representam-se numa dualidade que é também extensível ao território: o rural e os de baixo são o corolário de um crescimento económico impessoal e sedutor nas suas ilusões, ocultando os dramas e o sofrimento sociais. A escolarização tem um lugar crescente nas famílias, mas os destinos sociais, mesmo nos países igualitários, estão marcados pelo desmoronar da escola como veículo de “ascensão meritocrática” (Didier Eribon) e a mobilidade social é pautada pela crescente desvalorização dos lugares sociais de chegada para as classes populares, continuando, contudo, os “santuário da elite educativa” a reproduzir e a reduzir as questões essenciais (como sejam a educação e a cultura) a meras questões técnicas, encobertas por um discurso que reedita o a-histórico, abstrato e ideológico Homo economicus, em versões que os “missionários do vazio” (Leonard Cohen) se encarregam de matematizar e especular teoricamente, legitimando politicamente as desigualdades sociais como um inexorável destino, reduzindo a questão social a números e classificações, em simultâneo com a regressão das instituições a meras gestoras burocráticas de populações excluídas de apresentar os seus problemas, como admiravelmente denuncia Ken Loach no filme I, Daniel Blake (2016).
Fenómenos como o abandono escolar, o absentismo ou o homeschooling, entre outras modalidades de rejeição da escola, interpelam drasticamente o mundo educativo contemporâneo. A dimensão histórica destes fenómenos impõe que se indaguem, quer as justificações, quer as significações, que ao longo do tempo (em diferentes escalas e contextos socioeconómicos) foram assumindo tais manifestações (ou seja a sua génese e visibilidade) e a correlação dessas práticas com a centralidade da escola (generalização da escolaridade obrigatória bem como do seu prolongamento temporal) e as convulsões do mundo social. Impõe-se um exercício reflexivo em que se identifiquem as dimensões de resistência à escola – que a partir do século XIX se esboçaram, contrastando com uma retórica e empenho liberais ou o patrocínio dos movimentos filantrópicos, religiosos ou políticos, a favor da educação –, e à escolarização – que necessariamente não significa rejeitar o princípio, mas sim questionar uma certa forma de escola (e que presentemente se pode assumir como resistência ao aumento da escolaridade) – o que permite compreender a criação de escolas ou de dispositivos educativos alternativos ou enveredar por práticas autodidáticas. Merecem atenção particular dois tipos de fenómenos: por um lado, reconstituir a história de todas as populações excluídas ou recusadas pela escola, que não se circunscreveram só aos deficientes ou delinquentes; e, por outro lado, impõe-se uma história das interpretações psicológicas ou das explicações dos professores sobre o absentismo escolar para que se possam entender as razões desta modalidade de recusa da escola. A exploração destes eixos proporciona reinventar uma escola democrática capaz de fazer face aos confrontos que a assolam e que não são somente pedagógicos ou didáticos, são-no fundamentalmente de ordem social, impondo aos professores e educadores práticas inovadoras que sejam ocasião tanto para a mudança de métodos quanto uma reconfiguração da instituição. A quotidiana criação de modalidades pedagógicas de luta contra o abandono escolar permite prefigurar uma mutação na profissão e protagonizar a revolução silenciosa da escola, não ocultando as dimensões da ação pública face à crise da educação, que objetivamente reflete uma crise da sociedade.
Professor Auxiliar do Instituto de Educação da Universidade do Minho e Investigador do Centro de Investigação em Educação (CIEd)
Fonte: Público
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