Naquele dia, igual a tantos outros, Sandra Manuel, de 42 anos, que anda numa cadeira de rodas depois de ter sido atirada pelo ex-companheiro da janela e ficado paraplégica, tinha uma sessão de fisioterapia, em Lisboa. No fim, pôs-se à espera dos bombeiros que iriam buscá-la, mas um imprevisto atrasou-os e Sandra Manuel decidiu meter-se a caminho sozinha.
Os carros no passeio eram tantos que teve de ir pela estrada até à paragem do autocarro. O autocarro que chegou não tinha rampa, mas o motorista garantiu-lhe que dali a meia hora passaria outro com uma. Aproveitou para ir à farmácia. Teve de ser ajudada a entrar, a rampa era tão inclinada que corria o risco de cair. No café lá perto, nem entrar consegue – não tem rampa. Fica na esplanada, à espera que a atendam. É uma “luta diária”: “Sair para o exterior é uma aventura”, diz.
Os deputados da Assembleia da República (AR) sabem que ainda há muito para fazer. Para Heloísa Apolónia, d’Os Verdes, mais do que leis, é preciso garantir “meios para concretizar” o “que é fundamental”: “equipas multidisciplinares, nas escolas, para dar apoio e garantir a inclusão de alunos com deficiência”; “acesso de pessoas com deficiência a serviços de saúde em igualdade com os demais cidadãos”; “eliminação de barreiras arquitetónicas e acesso aos transportes públicos”; “manutenção de equipamentos e estações, por exemplo elevadores ou escadas rolantes do metro”.
Também a deputada do PSD, Sandra Pereira, considera que há “muita coisa por fazer e muita coisa inacabada”: “Destaco a Lei das Acessibilidades que já perfez mais de dez anos e não foi cumprida. A maioria dos edifícios não foram adaptados e verificamos uma total ausência de fiscalização no cumprimento desta lei. Sendo que o diagnóstico está feito: a entidade fiscalizadora não pode ser a mesma entidade que aprova os projectos arquitetónicos. E por isso há que mudar a lei, autonomizar e reforçar a fiscalização.”
Diogo Martins, de 29 anos, dedica-se a estudar o acesso dos cidadãos com deficiência a transportes públicos, num grupo de trabalho da Câmara Municipal de Lisboa. Tem uma distrofia muscular congénita de Ullrich, que o obriga a usar cadeira de rodas e um ventilador. Normalmente anda num carro adaptado conduzido pelos pais e, apesar de ressalvar que nem tudo está mal no que toca às acessibilidades, é “claro que há sempre problemas”. Um exemplo: “No Intercidades, as carruagens não foram pensadas para serem acessíveis, não têm um desenho de interior, nem espaço. Teria de mudar-se todo o interior. Compensa comprar carruagens novas.”
Também para Francisco Guerreiro, do PAN, as prioridades incluem melhorar as acessibilidades, sobretudo em escolas, universidades, e transportes; e responder, de forma eficaz, às “necessidades de intérpretes de Língua Gestual Portuguesa [LGP]” nos serviços públicos, em particular nos da Saúde.
Amílcar José Morais, de 42 anos, que nasceu “surdo profundo” e é professor de LGP, defende que ainda há um “longo caminho” para que a sociedade inclua toda a gente e não tenha “cidadãos esquecidos”. Queria, claro, ver a LGP reconhecida como língua oficial. “Os surdos vivem à margem da sociedade”, lamenta.
Planos de futuro
Apesar de destacar o que considera serem conquistas (rede de balcões de inclusão, quotas no acesso ao emprego no sector privado, Prestação Social para a Inclusão (PSI), constituição de uma Comissão para a Promoção das Acessibilidades e de Equipas Técnicas de Promoção da Acessibilidade, entre outras medidas), também a deputada do PS, Maria da Luz Rosinha, admite que é preciso mais: “O PS não considera que esteja tudo feito, ou que todos os problemas das pessoas com deficiência estejam resolvidos”, diz, explicando que, para já, “os deputados do PS, em conjunto com o Governo, vão focar-se em encerrar algumas iniciativas em discussão na AR, como é o caso da adequação da licença parental, quando os filhos são prematuros ou têm deficiência, e em especial garantir que o Estatuto do Cuidador Informal é aprovado”.
Diogo Martins – que vive com os pais que o ajudam no dia-a-dia – tem muitos planos para o futuro. Gostava de trabalhar na área dos transportes, ter casa, “constituir família”, viver um período noutro país. Para ajudar a que se concretizem, diz precisar que o Modelo de Apoio à Vida Independente (MAVI), em fase de projectos-piloto, esteja a funcionar em pleno.
Trata-se, porém, de um processo que não está isento de críticas. O deputado do BE, Jorge Falcato, inclui-o numa “grande expectativa que foi defraudada”. Entre outras questões, considera que os projetos-piloto não garantem a resposta adequada: “Está a haver uma subversão da vida independente, que é para a pessoa ter autonomia, não é para ir passear um bocadinho. Se o projeto-piloto não cumpre o necessário, não se tiram conclusões úteis para redigir a lei e o perigo é chegar-se à conclusão de que assim não vale a pena”, alerta, insistindo que, nestes projetos, haverá pessoas que disporão só de “três horas e meia diárias de apoio”.
Este é apenas um exemplo. Acima de tudo, aponta, falta “uma estratégia [nacional] para a deficiência”: “Temos uma atuação um pouco errante e contraditória”, diz Jorge Falcato, lembrando que “foi uma promessa desta legislatura” a “redacção de um livro branco sobre a deficiência”. “Nem livro branco, nem estratégia. As questões da deficiência são transversais a toda a vida. Emprego, formação profissional, acessibilidades, vida independente, todas as áreas têm de estar articuladas e a ir para o mesmo porto. Portugal ratificou a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência e não a está a cumprir satisfatoriamente”, insiste.
Ressalvando que o PCP continuará a intervir sobre estas matérias, também a deputada Diana Ferreira admite que “há muito por fazer”: “Há problemas estruturais que precisam de resolução. Falta concretizar legislação já existente e que sejam executadas políticas públicas que concretizem direitos consagrados em lei – educação, protecção social, emprego e formação profissional, habitação, mobilidade, diferentes acessibilidades, acesso à cultura e ao desporto.” Ainda assim, admite que houve avanços: “a redução de custos do atestado multiusos”, num caminho que deve “ser de gratuitidade”; a criação da PSI, “que pode e deve ser mais abrangente”; e o MAVI, “que tem de ser concretizado”.
Uma aprendizagem
Para além dos partidos que fazem parte da solução de Governo, também a direita aponta caminhos: “Num mundo cada vez mais digital, não podemos descurar a eliminação das barreiras de comunicação e tecnológicas. É necessário expandir o uso do Braille e a linguagem gestual. E é necessário o fornecimento de conteúdos nos meios de comunicação, inclusivamente a Internet, em formatos acessíveis a pessoas com deficiência”, diz a social-democrata Sandra Pereira.
Também para o centrista Filipe Anacoreta Correia “há imensa coisa para fazer”: “Na área das acessibilidades, a lei é óptima, o problema é o incumprimento”, afirma o deputado, para quem é prioritário garantir o Estatuto do Cuidador Informal.
Carlos Santos, de 41 anos, também entende que “faltam apoios” para pais que “deixam tudo para tomar conta dos filhos com deficiência”. O agora analista de processos de negócio era um universitário de 23 anos, quando teve um acidente de mota que o deixou de cadeira de rodas, com uma paraplegia completa.
Conta que teve um “grande apoio familiar”, que a mãe – que trabalhava na Segurança Social – se reformou e mudou-se “de malas e bagagens” da Covilhã para Lisboa: “Era a minha mãe que me levava para a faculdade, ajudava a entrar em casa, a sair de casa.” O primeiro contacto com o que “iria ser o futuro” foi quando teve alta, chegou a casa e percebeu que teria pela frente “oito degraus até ao elevador”, “três degraus para o terraço”: “Só barreiras.”
Hoje trabalha, vive numa casa com a namorada, tem um carro adaptado, trata da higiene, lava a loiça, cozinha. Apesar disso, também concorda que “ainda há um grande trabalho a fazer”. Exemplos: “é preciso fiscalização” em edifícios públicos e habitacionais; é preciso respeitar os lugares de estacionamento para cidadãos com deficiência e que são usados, “todos os dias” e “abusivamente”, por outras pessoas; é preciso que os transportes públicos assegurem as necessárias condições; que os passeios sejam rebaixados; que os bilhetes, para lugares acessíveis em espectáculos, não sejam mais caros; que as quotas de emprego sejam respeitadas.
Sandra Manuel era tripulante de ambulância, numa corporação de bombeiros. Para além da desilusão de se ver impossibilitada de cumprir a função que tinha, também se deparou com o facto de o quartel ser antigo e não estar preparado para receber uma cadeira de rodas. Agora, está inscrita num projecto de empregabilidade da Associação Salvador, Instituição Particular de Solidariedade Social que actua na área da deficiência motora, e já participou em algumas formações e entrevistas.
Foi, aliás, através daquela associação que conseguiu apoio para colocar uma plataforma elevatória no prédio, onde vive. Até lá, sem elevador, “esteve quatro anos prisioneira” em casa. Só saía com ajuda: “Tinham de descer dois andares comigo e com a cadeira ao colo.” Hoje sente-se mais livre. Vive sozinha, trata da higiene, veste-se, deita-se, levanta-se, cozinha.
Mas tudo foi uma aprendizagem, como mostram as frases inscritas em papéis colados na parede da sala: “há sempre duas formas de viver a vida, ou presos ao medo ou agarrados à coragem, apesar do medo” ou “a esperança acaba sempre por surgir e dizer-nos que amanhã será melhor”. Foi uma aprendizagem, mas continua a ser uma luta: “O meu maior desejo seria dizer que vivo num país que não exclui cidadãos.”
Fonte: Público
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