quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Elas são a sombra dos filhos, à espera de uma lei que as proteja

À meia-noite, Nuno Rita, pai da Mariana, de 10 anos, foi dormir. Mónica Afonso ficou a fazer um turno de vigia à filha até às cinco horas da manhã, para depois o pai acordar e ficar ele mesmo de vigia, enquanto a mãe ia descansar um pouco. Mónica iria trabalhar às nove da manhã. São raras as frações de segundo em que o casal tira os olhos do pequeno visor do telemóvel através do qual olham a filha, no seu quarto, onde instalaram um sistema de vigilância.

Mariana Afonso Rita foi diagnosticada à nascença com paralisia cerebral. Os pais, naturais de Faro, são hoje os seus cuidadores informais, assim são oficialmente designadas as pessoas que assumem a assistência a uma outra que, sem o devido apoio, está incapacitada para atividades necessárias à sua existência. Mas o Estado português ainda não as reconhece.

Há dois anos, deu entrada no Parlamento uma petição com 14 mil assinaturas que defendiam a criação do Estatuto do Cuidador Informal. O grupo de trabalho que desenvolveu o documento pede a criação de benefícios que auxiliem a diminuição do risco de pobreza do cuidador, bem como apoios monetários, tendo por vista a diminuição de rendimentos quando há necessidade de escolher entre ficar em casa e ter um trabalho a tempo parcial, ou mesmo ficar-se desempregado. Licenças de emergência e profissionalização do trabalho diário do cuidador são algumas das reformas previstas neste estatuto.

No final do mês de setembro, Mónica Afonso esteve presente numa vigília, que decorreu na escadaria da Assembleia da República, em defesa da criação deste estatuto que, dias antes, o primeiro-ministro António Costa tinha apelidado de prematuro. Confusão e revolta: confessou, na altura, não ter mais o que sentir.

Pouco depois da meia-noite, Mariana começa a dar sinal, entre choros, gritos e uma respiração ríspida e pesada. Rebola na cama, o que faz Mónica correr, uma, duas, três e tantas outras vezes, quase seguidas, entre a cozinha e o quarto. Até o sol nascer, continua a fazer maratonas para garantir que a filha não se engasga e que tem a melhor noite de sono possível, para que o dia seguinte seja mais fácil de carregar. Corre, mais uma vez, também para a alimentar, processo feito através de uma sonda gástrica. Mónica confessa que já prefere "nem dormir de todo" enquanto Mariana descansa. Passa as noites a acordar por alguma razão, o que muitas vezes a torna irritadiça e, confessa, já discute com a própria filha, "que não merece que aja assim".

O dia em que o DN esteve na casa desta família foi, contudo, atípico. Os pais estavam numa semana de férias. Num qualquer outro dia normal, a situação revela-se sempre bem mais complicada de gerir. "Se estamos a trabalhar, eu e o Nuno nunca chegamos a dormir uma noite inteira juntos. Eu acordo às quatro para ir trabalhar às cinco da manhã. Chego às nove, quatro horas depois, e volto a ir trabalhar ao final da tarde. No tempo em que não estou a trabalhar, está o Nuno", conta Mónica.

Nada é feito sem primeiro pensar no bem-estar de Mariana. Todos os dias, nem Mónica nem Nuno, quando sozinhos em casa, conseguem ir à casa de banho sem Mariana. Medo, dizem. Para que a filha não se engasgue ou sufoque com vómito na sua ausência, levam-na com eles e sentam-na numa cadeira adaptada em frente à sanita.

Uma vez por outra, o pai de Mónica fica a vigiar a neta, para que ambos possam existir enquanto casal e espairecer. Mas, como diz Mónica, "nem todos têm esta sorte".

Ana David e Filipe Pereira, pais de Rodrigo, com oito anos, residentes no Carregado, Alenquer, têm a mesma "sorte". De vez em quando, depois de adormecerem o filho, partem para passear, enquanto Cecília David, 68 anos, toma conta do neto. Ana sabe bem reconhecer o privilégio que é ter alguém para amparar a família quando necessita de um descanso e que a ausência desse amparo pode ser fatal para muitas outras famílias, que acabam monoparentais. "E se já é difícil estar a lutar a dois, só um a lutar é impensável", frisa. Rodrigo, assim como Mariana, é portador de paralisia cerebral.

Até hoje, Mónica e Ana são consideradas figuras clandestinas para o governo. Não há leis que as protejam e ajudem. São apenas dois casos entre os estimados 800 mil cuidadores informais que existem em Portugal. "Não peço muito, mas que haja alguém disponível para, pelo menos durante uma hora, ficar a cuidar do doente, enquanto vamos fazer compras, por exemplo. Porque mesmo para ir às compras é complicado. Ou para tomar um simples banho. Quantas vezes tive a Mariana sentada na cadeira junto a mim, enquanto tomava banho", recorda Mónica. A assistência em casa é uma das ideias propostas pelos cuidadores no Estatuto de Cuidador Informal, entregue para discussão no Parlamento neste ano.

Outra proposta é um subsídio para precaver situações em que os cuidadores informais tiveram de deixar de trabalhar para cuidar de alguém. Como Ana David, que entretanto decidiu ficar em casa e passar a ferro para fora, para conseguir algum rendimento extra, além do salário do marido, ao final do mês. Contudo, "chega apenas para os alfinetes", conta.

Mónica conhece as reações populares à proposta sobre o subsídio para os cuidadores: "Dizem que depois há muitas pessoas que iriam aproveitar-se do subsídio do cuidador, que deixarão de trabalhar para ficar em casa. Olha, eu sou uma delas. Mas não acho justo estar a trabalhar 40 horas e tratar da minha filha em todas as outras horas do dia."

Para esta mãe, o seu estilo de vida é o culpado pelo cancro contra o qual teve de lutar em 2012, quando Mariana tinha apenas 3 anos. Não tem provas, mas até os médicos reconhecem essa possibilidade. Noites mal dormidas, refeições fora de horas e pouco cuidadas, e ainda o stress constante para cuidar de Mariana e a ter sempre debaixo de olho. Mais de cinco anos depois, Mónica já não tem vestígios da doença, mas isso não a descansa. "Fiz um exame que me disse que o cancro não é genético. E por um lado fiquei feliz, claro. Mas por outro assusta-me, porque, se não é genético, está diretamente associado ao meu estilo de vida. E eu continuo com falta de descanso. Ou seja, não estou fora de risco. E a Mariana está cada vez maior e exige cada vez mais trabalho. Tenho medo de a deixar e ao Nuno sozinhos", explica.

O dia em que tudo mudou

Mónica e Ana são parecidas até no começo da sua história como mães. Tiveram ambas uma gravidez calma e plena, que jamais faria adivinhar aquele dia em que tudo mudaria. "A asneira foi feita antes do parto", começa por explicar Mónica.

"Nesse dia, o hospital estava cheio de grávidas. Eu estava no corredor do hospital e há uma enfermeira que me pergunta se eu estava a sentir dores de parto. E eu digo-lhe 'olhe, não sei, porque nunca tive um parto. Contudo, tenho um físico muito fraco e uma cabeça muito forte. Por isso, é possível que esteja a aguentar dores que já são de parto'", explica. Foi imediatamente encaminhada para uma sala: "Ela responde-me 'então vamos até àquela sala, que eu vou fazer-lhe uma maldadezinha. Fui atrás dela, sem saber o que me ia fazer."

Nesse momento, a enfermeira que acompanhava a mãe de Mariana dá conta da já elevada dilatação e decide rebentar as águas "à moda antiga, com puxões". Sem aviso prévio ou pedido de consentimento, a situação complica-se nesse momento, quando sente uma pressão na barriga que a fere. Mariana teria, nesse momento, sido asfixiada pelo cordão umbilical devido a esse procedimento. Mónica Afonso, que até então parecia uma grávida tranquila, entra em choque emocional e físico. "Temos aqui uma grávida que rebentou as águas", teria gritado a enfermeira. Desse momento à sala de parto foram apenas uns instantes. Mariana não chorava quando nasceu. "Disseram-me que, nas primeiras 48 horas, a Mariana estaria a lutar pela vida e que depois disso, sobrevivendo, poderia ficar lá internada. Só ao quinto dia é que pude ter a Mariana ao colo." E só um mês depois viria a saber o diagnóstico da filha: tetraparésia mista, um tipo de paralisia cerebral - fruto daquilo que Mónica acredita ter sido negligência médica.

Uns anos depois, nasceria o Rodrigo, com paralisia cerebral hipóxico-isquémica, causada por falta de oxigénio na altura do parto. Ana David tinha 26 anos e uma vontade inabalável de ser mãe, mas nada sairia como planeado. Foi um parto provocado, como conta, à semelhança do que acontecera a Mónica. "É a minha palavra contra o hospital: no relatório, diz 'parto sem intercorrências', mas sei que, na altura em que estavam a coser, ouço um médico a gritar para duas médicas que estavam a assistir 'isto não volta a acontecer no Hospital de Santa Maria. Amanhã vão ler todos os calhamaços de obstetrícia que há por aí. Todos'. E eu perguntei 'o Rodrigo está morto? Aconteceu-lhe alguma coisa?'" - nada lhe foi explicado, até hoje.

Ana continuou sem ver Rodrigo. Foi transferida para uma sala "onde estavam todas as mães com os bebés ao colo, a receber indicações das enfermeiras". "Menos eu", conta. "Quando peguei no meu filho pela primeira vez, vi que ele fazia movimentos como que a pedir para mamar. Perguntei à enfermeira se ele tinha fome e se lhe podia dar de mamar. Ela diz-me 'não, mãe. Ainda estamos a ver, o Rodrigo ainda está a ser estudado, mas tem alterações neurológicas'. E foi assim que soube. Sem mais nem menos. Como uma bomba", recorda. Rodrigo só chegaria a casa pela primeira vez ao final de três meses internado.

Também Mónica conhece bem essa sensação esmagadora, explica. "Nesse momento, não se sente nada. Não há tempo. Tudo nos chega com o efeito espelho: vem, bate e sai. Só depois, com o tempo, é que nos conseguimos aperceber do que se passou realmente." E o que esperaria estas mães nos próximos anos.

300 euros por três horas

Institucionalizar, procurar assistência ao domicílio ou ser cuidador informal. Se a última alternativa é psicologicamente exaustiva e pode obrigar a uma mudança radical de vida, as duas primeiras podem sair bem mais dispendiosas.

Procurar assistentes foi uma opção para Mónica. Pela sua casa, já passaram algumas ajudas, mas nem sempre correu bem. Umas não conseguiram dar conta do recado, outras desistiram por terem encontrado um emprego efetivo em algum outro lugar. "Pagava 300 euros por três horas." E assim, consciente dos custos que acarretava contratar uma força extra, se tornou cuidadora informal da própria filha, entre turnos que partilha com o marido.

Ana David não teve alternativa: o rendimento da família não chegava para mais do que os cuidados básicos de Rodrigo e garante que ainda fez uma pesquisa alargada. Por isso, demitiu-se, deixando uma casa gerida apenas com o ordenado de Filipe,para cuidar do filho, que necessita de vigilância durante todo o dia. Desde então que ainda não tem resposta do fundo de desemprego. Pensou até "ir para as limpezas, das seis às nove da manhã", mas, "às vezes, é às seis da manhã que o Rodrigo começa a despertar com crises respiratórias". Mas para esta mãe "trabalhadora", como se apelida, desistir não bastou e procurou criar alternativas.

Feitas as contas ao final do mês, confessa que não chega. Se conseguir arrecadar 200 euros, é uma sorte. Pouco tempo depois de deixar o anterior emprego, decidiu investir num pequeno negócio doméstico e começou a passar roupa a ferro, em casa. Primeiro, para amigos, agora para amigos de amigos. A lista vai crescendo, mas Ana não tem mãos para tanto. Ativa o vapor sempre que Rodrigo está a dormir, com sonos nem sempre certos. "De quarta para quinta, por exemplo, o Rodrigo acordou por volta das 05.30 da manhã e só foi dormir às 21.30 da noite. O sono dito normal é das 20.30 às 08.30. E não tenho dormido. Estive a passar ferro até às duas da manhã, porque tenho de o fazer quando o Rodrigo está a dormir, com ele ao pé de mim, vigiado por causa dos vapores (do ferro). Mas o que é que acontece? Tento tratar das coisas e muitas vezes o Rodrigo acorda. E volto a não dormir, nem a trabalhar", lamenta.

O marido é serralheiro mecânico em Alenquer. Todas as sextas-feiras, durante o dia trabalha como serralheiro e à noite como padeiro, até sábado de manhã. "Tudo para entrar mais um bocadinho de dinheiro cá em casa", conta. Tudo, até entrar no famoso negócio de recolha de tampas de garrafas, através do qual conseguiu assegurar grande parte do valor da cadeira na qual Rodrigo é transportado.

Tudo para garantir que não falta medicação, nem fraldas, nem seringas. "Um, dois, três, quatro", começa Ana por contar. "Isto é para a epilepsia. Depois, toma para o estômago. Isto é uma vacina que ele está a fazer agora durante dez dias a ver se passa um bocadinho melhor o inverno em termos de infeções respiratórias, isto são antibióticos que entretanto tivemos de mudar e que já não lhe fazem efeito. Isto é para ajudar a evacuar." É um processo já quase automatizado, não fosse a medicação mudando à medida que Rodrigo cresce. "Retira-se uns, põe-se outros." E todos têm duros efeitos secundários para o seu filho: "Prisão de ventre, dores de cabeça, mal-estar. E a irritabilidade, o pior."

A par da medicação, Ana David tem de garantir que não faltam seringas, utilizadas para transportar líquidos pelo botão gástrico. Tem direito a estes instrumentos quem está registado nos cuidados continuados, como Rodrigo, mas a mãe garante que "o que dão mensalmente não chega para um mês". Além disso, o regime em cuidados continuados deveria garantir que a criança tem assistência em casa, "mas ninguém aparece". "Veem que a mãe está cá e decidem que não é necessário. Mas o Rodrigo precisa disso. E eu. É uma desresponsabilização do Estado", aponta.

Institucionalizar está, para estas mães, fora de questão. Não só pelo quão dispendioso pode ser, mas pelas fracas condições que dizem oferecer. "Ninguém vai ter capacidade para cuidar desta criança como nós cuidamos", lamenta.

Regressar à escola, desta vez com os filhos

O sofá, a televisão e os restantes móveis deram lugar a uma sala de terapias. A um canto, um insuflável com água aquecida, num outro, um colchão. Brinquedos terapêuticos e jogos didáticos enchem o espaço e dão-lhe cor. Por todo o lado, estão espalhados alguns equipamentos adaptados - uns já foram presença habitual em outras casas, de outras crianças, que não sobreviveram. O que foi deles faz agora parte da casa de Mariana.

Desde o primeiro dia que Mónica não desiste de estimular a filha, à procura de novos resultados, de desenvolvimentos. Não desiste, porque desde esse mesmo primeiro dia que vê efeitos da estimulação.

Mariana Afonso foi dada como surda e invisual quando nasceu. Na verdade, a equipa médica que a seguia não apontava uma expectativa de vida superior a um ano. "Quando me disseram que já tinham o resultado da ressonância, explicaram-me que ela tinha lesões em todas as áreas do cérebro. Aquela ponte entre o corpo e o cérebro estava bloqueada logo à entrada. Previram que ela ficaria vegetal. Foi avaliada com 93% de incapacidade." As palavras marcaram tanto esta mãe que ainda hoje é capaz de as reproduzir rapidamente, sem falhas de memória. Mas não foram suficientes para que Mónica - que acreditava que com trabalho tudo seria possível - cruzasse os braços. Fala por experiência própria e passada, que a remetem para os tempos em que foi professora de Educação Física, antes de ser secretária administrativa na GNR, posto atual. Trabalhou com adolescentes e adultos com multideficiências. Conhecia e reconhecia o poder da estimulação. E queria o mesmo para Mariana.

Graças ao trabalho de Mónica e a uma viagem até à Duke University, nos EUA, aos 5 meses de vida da filha, onde fez um tratamento à base de células estaminais, Mariana recuperou os dois sentidos que lhe apontavam como perdidos à nascença. "Antes disso, mesmo os sons mais estridentes não lhe causavam reação. Quando regressámos, um dia o meu pai deixou cair as chaves no chão e ela, pela primeira vez, reagiu a um som. Os olhos dela começaram também a seguir-nos, que para ela deve ser só sombras."

Desde então que os pais de Mariana impulsionaram o seu desenvolvimento, quer físico quer psicológico. Foi em casa que conseguiu as bases - aprender a identificar letras ou cores. Mas é na escola que põe tudo em prática. E Mónica acompanha-a, sempre que as condições de saúde da Mariana permitem que saia de casa - uma noite mal passada pode ser suficiente para não ser capaz de comparecer à escola.

É na Escola Básica de Montenegro, em Faro, que a filha de Mónica e Nuno tem crescido. Mas o percurso escolar começou a ser escrito já há muito tempo, no infantário, uma primeira experiência que viria a contribuir para a decisão de Mónica de ir para a escola com Mariana daí em diante, como outros pais replicam, inserida numa turma de ensino especial. "Nesse infantário, a auxiliar tinha receio de tomar conta da Mariana, não sabia como lidar com ela, tinha medo de não conseguir responder caso acontecesse alguma coisa. Eu percebo. Não é negação. Às vezes, a sensibilidade da pessoa é tão grande que fica petrificada e não consegue encarar a situação", explica. Depois, a escola. Mas o caminho inicial não foi fácil. "Na primeira semana, a Mariana teve ataques. Na segunda a mesma coisa. A partir da quarta começou a estabilizar e a habituar-se à rotina", conta, acrescentando que estes ataques podem surgir ainda hoje, fazendo que Mariana só aguente dez minutos de aula.

Empurra, faz força, mexe um dedo, estica o braço. Às dez da manhã, três vezes por semana, a filha de Mónica tem ainda a visita de um terapeuta ocupacional, em casa, na antiga e convertida sala de estar do casal. Cada movimento é uma vitória e vale os braços levantados no ar, em sinal de euforia.

Ana David diz também fazer parte desta moldura: não esconde a felicidade se Rodrigo faz um movimento mais complexo do que os habituais. Por isso também, à procura de mais estímulos, faz que o filho vá à escola sempre que possível. Mesmo que para isso tenha de percorrer 80 quilómetros todos os dias - 20 para lá, 20 para cá, antes do almoço, 20 para lá novamente e 20 para cá, já no final da tarde.

Terapia da fala, fisioterapia e terapia ocupacional. Rodrigo tem de tudo e não esconde a felicidade ao ver Carla Peixinho, a sua educadora. O sorriso espelha-se no rosto da mãe e da avó, que saem de mansinho da sala onde o deixam, porque lhes custa sempre a despedida.

Sair de casa com Rodrigo é uma equação sempre muito bem calculada - abrir a porta uns minutos mais cedo pode significar uma gripe, devido à humidade no ar. E sem ar condicionado na carrinha não se atrevem a levá-lo seja onde for. Por isso, nem sempre Ana consegue que o filho esteja presente na escola.

E depois deles, o que fica?

"Dias antes de ter o Rodrigo, tive de vir para casa porque estava com a tensão alta. Fiquei em repouso até estar estabilizada. Era janeiro, e da janela de casa vejo uma mãe a passar com um menino num cadeirinha, um menino com paralisia. Fazia frio, estava a chover e eu estava deste lado da janela, a beber um chá quentinho. E disse para mim naquela altura: 'Deus, proteje-me desta situação'", emociona-se, lembrando os dias anteriores ao nascimento do filho Rodrigo.

Continua: "Mas disse 'se acontecer, dá-me muito amor para amar o meu filho, para que nada lhe falte'. E ao longo destes anos temos posto sempre o bem-estar do Rodrigo em primeiro lugar, mesmo entre tantas dificuldades", confessa, já de lágrimas enxutas.

A vida de Rodrigo já esteve várias vezes por um fio. Ana David perde a conta ao número de viagens que todos os anos faz entre casa e internamentos. E sabe que, um dia, uma escolha difícil pode bater-lhe à porta, mas garante: "Eu quero o Rodrigo cá, assim, como está agora, que ainda tem alguma qualidade de vida."

Confessa que se questionou por diversas vezes se teria todas as capacidades necessárias para tomar conta de um filho tão dependente de si, mas nunca pensou em desistir. "Nunca", reforça, sem hesitar, como se a resposta sempre tivesse estado ali, à espera. "É o que digo: apaixonei-me logo pelo Rodrigo mal o vi. Se tenho medo? Tenho. Nunca vivemos descansados."

Mas e depois dos filhos, o que fica? É a pensar no futuro dos milhares de cuidadores informais que Mónica propõe que "seja dada a possibilidade, por parte do governo, de profissionalizar o cuidador informal". "Os cuidadores estariam registados na junta e seria essa junta que daria um ordenado ao cuidador. Porque se o filho morrer, consegue fazer-se à vida, porque esteve a descontar nas horas em que cuidou do filho. Há muitos pais que perderam a capacidade de poder trabalhar em qualquer lado. Se eles dessem as duas vertentes - poder ser ou não profissionalizado - eu não queria ser profissionalizada, porque já tenho a minha licenciatura e a minha carreira. Mas há pais que não têm isto para se agarrar, caso o filho deixe de existir."

Em setembro deste ano, António Costa dizia não haver verbas suficientes para avançar com o estatuto de cuidador informal já neste Orçamento do Estado de 2019. Por pressão do Bloco de Esquerda, o cuidador informal surgiu, pela primeira vez, num Orçamento, embora sem medidas práticas apresentadas. O governo prevê apenas "medidas que previnam situações de risco de pobreza e de exclusão social" e reforços ao acompanhamento, capacitação e formação dos cuidadores. Mas é o início de algo maior, segundo acredita a Associação Nacional de Cuidadores Informais.

Um estudo recente, realizado a pedido do próprio governo, apontava que a atividade dos cuidadores em Portugal valeria quase 333 milhões de euros por mês, cerca de quatro mil milhões de euros ao ano.

"Estamos a sacrificar a vida, enquanto poupamos dinheiro ao Estado", frisa Ana David.

Apesar do panorama político que recusa olhar para este quadro social, Ana e Mónica estão, contra todos os receios, a dar asas a um sonho antigo e a tentar ser novamente mães.

Fonte: DN

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Impactos da (na) implementação do Decreto-Lei n.º 54/2018

Tenho acompanhado um grupo de professores do Brasil que estão de visita a escolas em Portugal. É sempre um privilégio contar com estes olhares “de fora” sobre as nossas realidades. Digo “de fora”, assim mesmo com aspas, porque esta expressão pode ser usada para desvalorizar o que alguém diz sobre uma determinada realidade “ele não sabe o que se passa aqui”, “devia passar aqui uma semana para ver realmente como é”. Não nego que a imersão num determinado contexto nos pode trazer mais informação e mais conhecimento sobre a forma (e as perplexidades) de uma dada organização. Mas, da mesma forma, é um risco (por vezes até salpicado de alguma arrogância) desprezar a opinião de quem vem de fora e que tem um olhar imediato, não macerado sobre uma determinada realidade. É a velha questão de que não é preciso ter dores de dentes para poder ser um bom dentista… 

Mas regressando… estes professores depois de terem visitado escolas e falado com os seus colegas portugueses têm opiniões que nos levam a refletir sobre aspetos que, em muitas circunstâncias consideraríamos banais. Vou pegar em dois deles.

Um professor brasileiro, depois de visitar um “Centro de Apoio à Aprendizagem”, louvou o trabalho que lá era feito: o registo das intervenções, o cuidado e carinho pelas crianças que usavam o Centro, a retaguarda técnica que existia e ainda a preocupação em que as crianças frequentassem o maior número de aulas “regulares” possível. Depois, na conversa com os colegas que trabalhavam no CAP, foi-lhe dito que tudo estava numa grande confusão, que ninguém sabia dar orientações precisas e que não sabiam o que fazer. O colega brasileiro ficou bem confuso e até pensou que estes professores trabalhavam noutra escola. Perguntava ele: “Como é possível classificar o excelente trabalho que é feito nesta escola de “confusão”? Eu procurei explicar que temos uma lei nova que ainda está em fase de instalação e sobre a aplicação da qual persistem dúvidas. Mas não deixei de reparar no olhar irónico do professor perante a minha resposta. 

Outra situação, foi recolhida numa reunião de avaliação em que foi notada o estado de grande desilusão e cansaço dos professores. Expliquei muitos dos argumentos que costumamos evocar: a elevada idade dos professores, o excesso de trabalho burocrático, a carência de recursos, etc. Os colegas brasileiros valorizaram o que foi explicado dizendo até que eram fatores comuns aos que se verificavam nas escolas públicas brasileiras. Mas houve uma observação que me impressionou por ser inusitada. Uma das professoras com mais anos de serviço disse “Certamente nenhum destes professores queria que os seus filhos tivessem aulas com um professor tão desmotivado quando ele está!”

Estes dois exemplos têm de contribuir para a nossa melhoria. Talvez seja mesmo importante para enfrentar o burnout, o cansaço, a desmotivação e a exaustão que tenham de ser procuradas e efetivadas formas diferentes de encarar a profissão. A cooperação, a utilização de estratégias diferentes, uma reflexão conjunta sobre o perfil dos alunos, sobre os objetivos, sobre as “aprendizagem essenciais”, etc. etc. etc. não são só trabalho, são talvez as formas que temos à mão para evitar que a nossa profissão seja triste e torne outros tristes. A nossa profissão lida com as pessoas na melhor fase da sua vida e temos que continuar a ser dignos das expectativas e esperanças que crianças e famílias põem em nós, na escola e na Educação.

David Rodrigues

Fonte: Editorial da newsletter nº 119, outubro de 2018 da Pró-Inclusão

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Basta entrar no secundário um ano mais tarde para o insucesso duplicar

Metade dos alunos que começam um curso científico-humanístico no ensino secundário um ano mais tarde do que o esperado ficam retidos ou desistem. Entre os que iniciam este ciclo na idade normal, aos 15 anos, isso só acontece com 27%. Portanto, basta um ano para fazer duplicar o insucesso. Esta é uma das constatações de um novo estudo sobre o ensino científico-humanístico agora divulgado pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC).

A DGEEC avaliou a situação dos alunos inscritos nos cursos científico-humanísticos, que são cerca de metade dos estudantes do secundário, três anos depois do ano letivo em que entraram. Analisa, por isso, os estudantes matriculados pela primeira vez em 2012/2013, 2013/2014 e 2014/2015 para depois saber em que ponto estavam em 2014/2015, 2015/2016 e 2016/2017. Os três anos são o período esperado para a conclusão do secundário.

Começar mais tarde pode ser associado a retenções prévias durante o ensino básico e, por isso, é uma métrica do impacto dos chumbos no sucesso escolar. Quanto mais avançada é a idade de entrada, ou seja, quanto mais chumbos houve, maior é o insucesso. Por exemplo, só 12% dos estudantes que começam aos 18 termina no tempo previsto e 38% acabam por desistir. Este “é um fortíssimo preditor do desempenho escolar no ensino científico-humanístico, como aliás é natural e conhecido”, constata a DGEEC no estudo Situação após 3 anos dos alunos que ingressam no ensino científico-humanístico – anos lectivos 2014/15, 2015/16 e 2016/17.


Os alunos que não beneficiam de apoio social escolar (ASE) e os que frequentam escolas privadas durante o ensino secundário têm uma melhor prestação neste indicador de conclusão do que os seus colegas que beneficiam de ASE e frequentam escolas públicas. É entre os alunos que recebem mais apoio ASE — o escalão A — que os resultados são piores. Menos de metade (45%) termina o secundário nos três anos esperados. Este dado, acrescenta a DGEEC na sua análise, “é habitual em muitos outros níveis de ensino e ofertas formativas (com uma notável exceção nos cursos profissionais) e é válido não só para os alunos que ingressaram nos cursos científico-humanísticos em 2014/2015, mas também para os que ingressaram em 2013/2014 e em 2012/2013”.

O Algarve e Lisboa são as regiões onde os alunos menos concluem o secundário no tempo esperado, 51% e 54%, respetivamente. A taxa de sucesso é maior no Norte (64%). A DGEEC só analisou dados para Portugal Continental.

Entre os alunos inscritos nos cursos de Ciências e Tecnologias (63%) o sucesso também é maior do que nos outros três — Línguas e Humanidades, Ciências Socioeconómicas e Artes Visuais.

Mesmo assim, ao olhar para a evolução entre 2014/2015 e 2016/2017, os dados da DGEEC mostram que há cada vez mais alunos a concluir o secundário no tempo previsto.

Comparação com os cursos profissionais

Em agosto, a DGEEC fez uma análise de percursos semelhante à publicada neste relatório, mas para os estudantes dos cursos profissionais — que já são 28% do total de inscritos. E, agora, faz algumas comparações.

“A percentagem de alunos que se transfere para outras ofertas educativas a meio do seu percurso no ensino secundário é significativamente superior entre os alunos que ingressam nos cursos científico-humanísticos (cerca de 10%) do que entre os que optam pelos profissionais (cerca de 5%). De facto, como é conhecido, a maioria dos alunos do ensino científico-humanístico que muda de via formativa tem como destino, precisamente, o ensino profissional”, nota a DGEEC, que também contabilizou os alunos que se matricularam noutras modalidades do secundário nestes anos letivos.

Outro dado: “A análise comparativa mostra que, para alunos que ingressam no secundário com a mesma idade, portanto com o mesmo número de retenções anteriores, as percentagens de conclusão em três anos são significativamente superiores no ensino profissional face ao científico-humanístico”, detalha o relatório. Um exemplo: 43% dos alunos que entram para um curso profissional aos 17 anos terminam-no no período previsto. Nos científico-humanísticos isso só acontece com 18%.

“Os alunos que ingressam no profissional parecem ter menos dificuldades escolares durante o ensino secundário do que os que ingressam no científico-humanístico, o que é um facto significativo e diferenciador destas duas ofertas”, conclui o relatório.

Fonte: Público

domingo, 28 de outubro de 2018

sta escola já não é só para ciganos

Há mais de dez anos que não se via crianças não ciganas na velha Escola de Paradinha, a três quilómetros do centro de Viseu. Havia-as no jardim-de-infância, a funcionar num edifício à parte, com entrada independente. Chegada a idade escolar, distribuíam-se por outras escolas do concelho.

Agora, no 1.º ano, há quatro crianças ciganas e oito crianças não ciganas, incluindo um menino com trissomia 21 e outro com paralisia cerebral. Agora, estudantes ciganos e não ciganos almoçam no refeitório, correm atrás da bola, aprendem a desenhar letras “bonitas” e muitas outras coisas.

O que aconteceu? Nas palavras do diretor do agrupamento Infante D. Henrique, João Caiado: “Aqui o fundamental foi os miúdos do grupo maioritário quererem dar seguimento na Escola de Paradinha. Os pais, em boa hora, decidiram mudar a escola. E tiveram apoio para fazer isso.”

Ainda não está tudo como os pais e as crianças imaginaram, mas Emília, uma menina cigana de seis anos, já acha que a escola está “muito fixe”. Luísa, uma menina não cigana de cinco, confessa que gostava de ver alguma cor no tecto. Há de ser “a melhor escola de Viseu”, acredita Tomás, um menino não cigano da mesma idade. Poderá inspirar outras comunidades escolares pelo país fora?

Escola-gueto versus escola inclusiva

Para perceber a história que aqui se vai contar convém, desde já, saber que o pré-escolar e o 1.º ciclo não funcionavam apenas em edifícios separados por um gradeamento, só interrompido por um portão quase sempre fechado. Um era uma espécie de gueto e o outro uma espécie de modelo de inclusão.

Num lado, está um edifício do Plano dos Centenários, o megaprojeto de construção de escolas desenvolvido pelo Estado Novo. Lá dentro, arrumavam-se 20 alunos — os do 1.º e do 2.º ano numa sala e os do 3.º e do 4.º ano noutra, todos virados para o quadro de ardósia e para o quadro interativo, sem livros que não os manuais escolares. Lá fora, um simples pátio de gravilha e terra batida.

No outro lado, está um edifício moderno. Lá dentro, 20 crianças circulavam por duas salas e um polivalente, com quadro de presenças, quadro com agenda semanal, quadro de tarefas, quadro de atividades, quadro interativo, vídeos, livros, jogos, instrumentos musicais. Lá fora, uma casinha de madeira, um baloiço rústico, uma pista com pneus verdadeiros, projetos em curso.

O pré-escolar inspira-se no Movimento da Escola Moderna. Os alunos participam na planificação do dia-a-dia, trabalham (em pares ou pequenos grupos) numa lógica de entreajuda, integram a avaliação. A escola de 1.º ciclo seguia o método tradicional. O que ditava esta diferença? Uma pessoa: a educadora.

Uma educadora invulgar

Conceição Neto esteve colocada em Lisboa, na educação especial. Andou por Macau, antes de esse território transitar para a China. Regressou a Viseu em 1998. Não lhe pediram que desse apoio em várias escolas, como seria de esperar. Pediram-lhe que ficasse em Paradinha. Receberia crianças com paralisia cerebral e crianças ciganas residentes do bairro social situado a cerca de um quilómetro.

O bairro fora inaugurado no ano anterior. Os três blocos, dispostos em forma de “U”, incluíam 104 apartamentos, 99 dos quais propriedade da câmara. E esses acolhiam muitas famílias ciganas até então a viver nas barracas demolidas para dar lugar à construção dos acessos ao Hospital de São Teotónio. A escola, obrigatória, dizia-lhes pouco. O pré-escolar, não obrigatório, menos ainda.

“Estava de passagem, mas fui ficando”, recorda Conceição Neto, abrindo-se num sorriso. Pôs-se a fazer formação em educação de infância e em novas pedagogias, o que a aproximou da Escola Superior de Educação de Viseu. Atendendo à diversidade funcional e étnica, Paradinha tornou-se um local de estágio. Alguns professores começaram a inscrever as suas crianças ali. Entre eles, Mara Maravilha, que desenvolve trabalho artístico nas áreas de performance, teatro/cenografia e instalação.

Mara tem ali as duas filhas — Maria, de seis anos, e Carlota, de três — e nem sabe dizer quantas vezes ouviu: “Com tantas escolas em Viseu, foste pôr as tuas filhas em Paradinha!” Outros pais relatam experiências semelhantes. Joana Medeiros, por exemplo, fazia questão de dizer que o filho, Bernardo, de seis anos, frequentava o Jardim-de-Infância de Paradinha e amiúde perguntavam-lhe: “Tem muitos ciganos?” Respondia: “Tem, tem! Funciona limpidamente!”

Bernardo começou a ler antes dos quatro anos. “No ensino normal, era um bicho. Um dia, chegou a casa a dizer que não queria mais ir para a escola”, conta a mãe. Ali, recuperou a alegria de aprender. A turma funcionava como uma comunidade democrática e cooperante. Ele podia ler para os outros e os outros podiam ajudá-lo a fazer qualquer coisa que lhe custasse mais.

“Além das boas condições, existe a parte humana que faz a diferença”, corrobora Daniel Lourenço, pai de Diogo, o menino com paralisia cerebral, referindo-se à educadora e às auxiliares. “Os miúdos gostam de estar aqui. Eles adaptam-se. O meu filho evoluiu imenso. A questão da etnia não é fator de conflito — nem entre miúdos nem entre pais, que convivem nas festas.”

Ao aproximar-se a idade de transição para o 1.º ciclo, os pais de seis crianças não ciganas e os pais de uma criança cigana começaram a pensar na mudança de escola. Não encaravam Paradinha como uma opção. Desde 2008 que a Escola de Paradinha só acolhia crianças ciganas residentes no bairro social homónimo. Muitas tinham dificuldade em concentrar-se, em cumprir regras, em respeitar colegas, professores e auxiliares. A indisciplina, o absentismo e o insucesso marcavam o quotidiano.

Mara desanimou-se logo no início das “buscas”: “É tão triste chegar a uma escola e encontrar aquilo que vivi há 30 anos — o ensino em gavetas, as crianças sentadas o dia inteiro, de costas voltadas umas para as outras, em comboio, a absorver a matéria.” Não desejava sujeitar a filha àquilo. Procurava uma escola pequena, que melhor se ajustasse à menina, ainda “em estado de encantamento e de curiosidade pelo mundo”. E ia partilhando as suas angústias com outros pais.

No princípio de março, Mara foi buscar as filhas ao mesmo tempo que Ângela Fernandes, mãe de um menino chamado Sebastião, de quatro anos. Enquanto as crianças saltitavam até ao portão, elas tratavam de pôr a conversa em dia. “Já sabes onde vais pôr a Maria?”, perguntou Ângela. “Ainda não”, respondeu Mara. “Ontem à noite, eu e o Sebastião estivemos a conversar. Ele disse que queria ficar na Escola de Paradinha, eu disse-lhe que não e ele ficou muito indignado.”

A primeira reação de Mara foi: “Esquece! Não vamos colocar os nossos filhos nesta escola, conhecendo nós a realidade!” Ao entrar no carro, já ponderava: “O Sebastião tem razão… Por que não podem ele e as outras crianças continuar aqui, com a mesma qualidade que têm no jardim?”

Uma abertura inesperada

Naquela mesma noite, Mara mandou uma mensagem à educadora. Na manhã seguinte, Conceição barafustou: “Não! Nem pensar! Não vamos pôr uma criança [não cigana] sozinha numa escola 100% de etnia [cigana]!” “Sempre defendi que a inclusão se faz pela positiva, não pela negativa”, diz.

Enquanto representante dos pais, Mara queria, pelo menos, questionar o diretor. Imaginou João Caiado a dizer que ela era livre de matricular a filha em Paradinha. Preparou-se para fazer a defesa da escola pública de qualidade, esgrimir argumentos capazes de o fazer entender que aquela escola era imprópria. E ele surpreendeu-a ao sugerir-lhe que se juntasse a outros pais e criasse um projeto educativo.

“Eu tinha ideia de que era com vontade e força que se mudavam as coisas, mas não tinha ideia de que podia ser recebida com uma proposta destas”, admite Mara. Finda a reunião, telefonou à educadora. Assim, de repente, parecia-lhe “uma ótima ideia a possibilidade de falar com outros pais”. No dia seguinte, já não sabia. “Acordei a pensar que, se calhar, não valia a pena.” Só que, entretanto, a educadora já falara com Daniel Lourenço e ele estava empolgado: “Vamos avançar!”

Num instante, outros pais se animaram. Nelson Martins e a mulher, Carla Nines, por exemplo, notavam a ansiedade no filho, David, de seis anos. “Eu gostava que ficássemos juntos”, repetia o menino. E desejavam que ele continuasse com os amigos e com o método de ensino, mas não viam como. “Há uma grande cumplicidade entre eles. Gostam muito de estar uns com os outros”, diz Nelson. 

Aliaram-se seis famílias não ciganas. Puseram-se a ler, a discutir, a pensar em modos de quebrar a separação entre o pré-escolar e o 1.º ciclo, reduzir o absentismo e o insucesso, reforçar a capacidade pedagógica, promover “uma resposta de qualidade a todos e a cada um”. No dia 19 de março, davam por terminada a primeira versão do Projeto Paradinha — Escola e Comunidade.

Convencidos de que a escola, tal como estava, era parte do problema, porque não dava oportunidade para pensar, desenvolver a criatividade, perceber a importância da educação para a vida, e pegando no Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo Governo em 2017, delinearam o modo de dar continuidade ao pré-escolar.

A alegria das crianças

A poucos dias das férias de Verão, as crianças soltavam a imaginação sobre o que seria a nova escola de 1.º ciclo. Isso mesmo se podia verificar ao juntá-las num banco corrido do jardim-de-infância.

“Nós queremos fazer um escorrega lá”, dizia Simão, um menino cigano, de seis anos, muito assíduo e pontual. “Tudo igual aqui”, anunciava Bernardo. Igual como? “Pneus. Uma pista. Uma casinha de madeira”, explicou. “Isso já temos aqui. Podem vir brincar aqui”, esclareceu a educadora. O portão passaria a estar sempre aberto. “Baloiços!”, tornou Simão. “Uma escalada”, propôs Maria, clara líder do grupo. “Três baloiços”, tornou Simão. “Uma escalada para crescidos”, continuou Maria. “Um buraco”, voltou Simão. “Se não quisermos ler mais, vamos para o buraco e saímos!”

Simão estivera para não ser matriculado na Escola de Paradinha. “A mãe da Maria foi lá a casa falar com a minha mãe”, contou ele.

A mulher, de 26 anos, não tardaria a confirmar a versão do filho. “A Escola de Paradinha não tem condições”, enfatizou. “As professoras não se preocupam. Se as crianças souberem, sabem; se não souberam, não sabem. São ciganos, acabou! Não tem de saber ou deixar de saber! Nunca quis isso para os meus filhos.” Já por isso, matriculara a filha, agora com nove anos, na Escola de Jugueiros.

Nadja Soares não pode ir às reuniões de pais. Está em regime de obrigação de permanência na habitação. Está quase sempre confinada ao apartamento, ao qual se acede subindo por umas escadas atravancadas de tralha alheia. Quase só tem autorização para ir ao médico ou para levar as crianças a alguma consulta.

Mara Maravilha foi a casa dela. “Explicou-me que vai haver uma nova vida nesta escola, que vai ser uma melhor vida. Se vir que o meu filho não aprende, retiro logo e ponho onde está a minha filha e acabou”, avisou. “Quero que os meus filhos tenham estudos. Por sermos ciganos, não temos de ser marginais.”

Naquele dia, no jardim-de-infância, estavam a faltar Emília e Débora. No grupo que ia transitar para o 1.º ciclo, tirando Simão, só havia crianças não ciganas. “Há algum problema por Simão ser cigano?”, perguntou a educadora. “Não”, responderam os outros, em coro. “Há algum problema por irem para uma escola com mais meninos ciganos?”, tornou a perguntar. “Não!”

Dezenas de faltas

Um ar de esperança soprava no Bairro de Paradinha. “Estamos contentes”, admitia Vanessa Torres. Tinha a filha, Iasmin, de sete anos, a frequentar o 1.º ano, e o filho mais velho, José, de nove, a frequentar o 2.º ano. “Gostava que tivessem contacto com outras crianças. É uma emoção que a gente sente ao saber que há pessoas que se importam com as nossas crianças e que não têm o preconceito que muita gente tem.”

A escola, assim, não lhe servia. Já ponderava transferir as suas crianças. Outras mães ameaçavam fazer o mesmo.

“O meu filho tem 11 anos. Andava no 3.º ano com os livros do 2.º”, queixava-se Carla Cabeças, mãe de um rapaz chamado Isaque, que gosta de usar uns óculos enormes e sem lentes, só pelo estilo. “Um dia mais tarde quer tirar uma carta de condução e não consegue.” Carina Pinto repetia a queixa, mostrando o caderno do filho, Isaías, também ele no 3.º ano com livros do 2.º: “Só faz desenhos!” Por ele, já não ia à escola. “Anteontem, quando acordei o meu filho para ir para a escola, ele disse: ‘Ó mãe, o que faço lá? Fico cansado. Não faço nada. Só brinco!’”

O único Estudo Nacional Sobre as Comunidades Ciganas — feito por Manuela Mendes, Olga Magano e Pedro Candeias, em 2014, a pedido do Alto-Comissariado para as Migrações — destapa percursos escolares curtíssimos. Os investigadores encontraram uma taxa de analfabetismo de 15,5%; cerca de 30% não tinham completado o 1.º ciclo; 39% tinham concluído apenas o ensino básico, maioritariamente o 1.º ciclo; só 6% terminaram o 3.º ciclo; 2,5%, o secundário.

O percurso daquelas três mães refletia essa realidade. Vanessa saiu da escola aos 12 anos. Carina também saiu com essa idade. Carla saiu aos 13. E essa era a história da maior parte das ciganas portuguesas que têm hoje à volta de 30 anos. Já não é o percurso da maior parte das crianças da idade das suas.

Em 20 anos, mais do que duplicou o número de crianças ciganas a frequentar o ensino obrigatório. O Perfil Escolar da Comunidade Cigana, que caracteriza os alunos matriculados nas escolas públicas do continente no ano letivo 2016/2017, mostra que o pré-escolar amedronta cada vez menos, que o 1.º ciclo está praticamente garantido, que há uma quebra do 1.º para o 2.º ciclo, outra do 2.º para o 3.º, que é nesta última etapa do ensino básico que há mais abandono, que poucos frequentam o secundário, embora haja cada vez mais gente a fazê-lo (alguns até tiram cursos superiores).

Nem Vanessa, nem Carla, nem Carina teorizaram sobre a história de exclusão e a defesa da cultura cigana. Não se puseram a falar na importância da virgindade das meninas, nas quais a tradição deposita a honra das famílias. Tão-pouco sobre a centralidade do casamento, que tende a celebrar-se em idade precoce. Focaram, sim, a fraca qualidade do ensino e o pouco que se espera de crianças como as suas.

As duas professoras, Célia Oliveira e Luísa Sousa, por sua vez, invocavam a desvalorização da escola, a fraca motivação para trabalhar, a dificuldade em ficar num espaço fechado, a relutância em cumprir regras, o fortíssimo absentismo. O interesse dos pais também lhes parecia, de um modo geral, reduzido. “Pede-se que venham buscar a avaliação e não vêm”, exemplificavam.

Era extenso o registo de faltas (justificadas e injustificadas). O ano ainda não tinha terminado e na turma do 1.º ano já havia uma criança com 114 faltas, outra com 59, outra com 36, outra com 37. No 2.º ano, havia uma criança com 102 faltas, outra com 73, outra com 69, outra com 53. Os colegas tinham menos, mas não poucas: 43, 37, 31, 23, 11. Os cinco alunos do 3.º ano também somavam dezenas de faltas: 58, 54, 31, 27, 20. No 4.º ano, só um aluno tinha 44 faltas e o outro 22.

O exemplo de Maria Elisa, de 38 anos, seria paradigmático. Também se queixava do pouco que aprendera a neta que está a criar, Lucinda, de oito anos. “Ela está no 2.º ano e ainda não sabe as letras todas, só sabe algumas!” Só que não a obrigava a ir à escola. “Batiam-lhe e ela não queria ir!”

“O meu filho só não vai à escola se tiver alguma dor ou se for ao dentista”, apressava-se a afirmar Carla. “O meu também não falta”, assegurava Carina. O problema, para elas, era a escola e as professoras. “Elas não se esforçam porque é tudo cigano”, acusava Carina.

Estavam com fé naquilo a que chamavam “o projeto da Mara”. Ao fazer o projeto, Mara e os outros pais tinham ouvido os seus anseios. “Os miúdos vão querer ir à escola”, acreditava Daniel. “E vão levar para casa essa alegria. Porque é o que acontece com os nossos filhos aqui.”

Professoras escolhidas a dedo

O perfil da equipa educativa sempre pareceu fulcral aos pais que se juntaram para mudar a escola. Não queriam professores colocados por uma lista de ordenação. Isso não garantiria estabilidade, nem formação na pedagogia da Escola Moderna, nem motivação para trabalhar com turmas com diversidade cultural.

Escreveram ao ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, e à secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, que teve uma criança no Jardim-de-Infância de Paradinha. “Entendam, por favor, este nosso apelo como um grito de esperança e mudança no que consideramos ser a última oportunidade para transformar este espaço novamente numa escola”, lê-se no documento, datado de 16 de abril. “Vemos nesta escola um problema grave para resolver, sim, mas também uma oportunidade única, e com sentido, de fazer dela uma ESCOLA de qualidade para TODOS.”

“Dentro do agrupamento, não apareceu nem um professor interessado”, revelou João Caiado. Desconfia que não foi por não terem a formação necessária (ou hipótese de a fazer). “Acho que se assustam com a ideia de trabalhar em Paradinha. Há muito que esta escola é evitada.”

O bairro quase só é notícia por más razões. Há dois anos, fez manchete o julgamento de 55 pessoas acusadas de tráfico de droga. Até janeiro de 2014, haveria três pessoas a vender. Depois, houve detenções do Bairro da Balsa. A partir daí, e até março de 2015, terá passado a haver uma lista de famílias que se revezavam. O Tribunal de Viseu condenou 46 pessoas, 30 das quais com pena suspensa.

No ano passado, o presidente da câmara, Almeida Henriques, pediu ao Governo um reforço de segurança naquela zona. “Não desejamos nem aceitamos que se alastre o sentimento de insegurança que é típico do modo de vida de bairros problemáticos de grandes cidades, mesmo que tal se confine a focos pontuais”, declarou então, segundo o site da Emissora das Beiras.

O lixo amontoa-se nas ruas. Limpam-no moradores que, por receberem rendimento social de inserção, são forçados a fazer trabalho socialmente útil. Quase não há iluminação pública. As lâmpadas foram destruídas com espingardas de pressão de ar. O carteiro só lá vai duas vezes por semana e com escolta policial. A escolta começou há uma década na sequência de uma agressão.

Para haver qualidade de ensino e igualdade de oportunidades para as crianças em desvantagem — o diagnóstico aponta para défice de estímulo cognitivo, de domínio da língua, de conhecimentos gerais sobre o mundo, de apoio da família, de saber estar —, os pais queriam quatro professores e não dois. E identificaram quatro, que o Ministério da Educação só teria de colocar. Previram também quatro assistentes operacionais no 1.º ciclo. Outras duas ficariam no jardim-de-infância, com uma nova educadora — Conceição Neto assumiria a coordenação da escola, cargo que não existia. Impunha-se ainda recuperar e readaptar o espaço escolar, o que convocava a câmara.

Atrasos nas obras e boatos no bairro

No final de agosto, os pais estavam muito preocupados: as obras ainda não tinham começado. E havia muito que fazer. Não bastava intervir nas salas. Todo o espaço escolar seria de aprendizagem. Nas traseiras, por exemplo, nasceria uma oficina de artes e um espaço de brincadeira. Para aumentar a área disponível, as crianças passariam todas a almoçar no jardim-de-infância.

Os trâmites legais não explicavam o atraso por inteiro. “No Verão, há muita gente de férias”, justificou a vereadora da Educação, Cristina Brasete, de visita à obra. “Tiveram dificuldade em ter os materiais. Começaram as obras e ficaram meio parados.” Por dentro, ficaria tudo feito. Por fora, ainda não.

Fez o elogio do projeto-piloto que, funcionado, poderá ser replicado, com reajustes. “Este projeto não vai acontecer só porque se quer”, enfatizou. “Tem de haver muita paciência. Estas crianças estão aqui há muito tempo.” Estava confiante, ainda assim. “Acho que vai fazer com que isto funcione é a conjugação de vontades.” 

Adiou-se o arranque das aulas para o dia 24 de setembro. Entretanto, um boato difundiu-se pelo Bairro de Paradinha.

Mário Pinto, que já foi mediador cultural e que tem duas crianças no 1.º ciclo, o Mário, de oito anos, no 2.º ano, e a Jordana, de 11 anos, no 4.º, desconfiava do benefício do projeto. “Vou ver quais as condições que lá vão pôr.” Havia 1.º e 2.º numa sala, 3.º e 4.º noutra. “Agora querem pôr 1.º ano só numa sala e 2.º, 3.º e 4.º noutra sala. Se for esse o caso, tiro os meus filhos! O que adianta? O resto do pessoal que é todo cigano vai ficar todo na mesma sala! Estão a fazer alguma regalia?”

Na rua principal do bairro, exaltavam-se os ânimos. Carina Pinto, por exemplo, não conseguia compreender por que iam ficar os do 1.º ano numa sala e os dos outros anos noutra. “Corre que até os recreios vão ser separados”, comentava Carla Cabeças. Carina também ouvira: “Acho mal. O recreio é para toda a criança!” Mário previa o pior: “Se já havia confusões, mais confusões vai haver!”

Os pais não ciganos estavam abismados. Tanta recetividade antes do Verão! Algumas mães ciganas até tinham ajudado a definir as necessidades mais urgentes. Agora, acreditavam que eles queriam pôr meninos ciganos num lado e não ciganos noutro? “Há um mal-entendido muito grande”, lamentava Mara. “Se tivéssemos preconceitos, os nossos filhos não andavam naquele jardim-de-infância.”

Para sossegar os ânimos, João Caiado convocou uma reunião. Sim, o projeto começaria com 12 crianças do 1.º ano numa sala e 19 dos outros anos noutra. Tinham-se matriculado mais duas crianças não ciganas, Tomás e Francisco, o menino que tem trissomia 21. E havia mais um menino cigano, Ariel, com nove anos e uma doença genética, própria de populações fechadas, que somara tantas faltas que ficara retido no 1.º ano. “O projeto tem de começar com uma turma de 1.º ano”, salientava Conceição Neto. “Embora estejam numa turma, vão trabalhar com meninos de outra turma.” Quantos alunos do 2.º ano saberiam mesmo ler, por exemplo? “A ideia é trabalhar em grupos por níveis de conhecimento para que todos aprendam.”

A alegria infantil

Uma semana depois do início das aulas, a alegria extravasava os muros da escola. E o mal-estar dissipara-se.

“Aquilo que falavam não era”, admitia Carla. “Estamos a gostar. Os miúdos estão mais acompanhados. Há mais professoras, mais auxiliares, mais regras. Os meninos estão mais motivados”, concordava Carina. “Antes, era sempre a mesma rotina. Agora, fazem mais coisas. Antes, chegavam a casa e diziam que não queriam ir para a escola. Agora, estão com vontade de voltar”, tornava Carla.

Naquele dia, as crianças do 1.º ciclo tinham ido todas ao Festival Outono Quente, no Parque Aquilino Ribeiro, ver o espetáculo Don Afonso Henriques 3 em 1, um herói que salta de um livro para um programa de rádio, dentro de uma peça de teatro. E Alfredo, um menino cigano de 11 anos que frequenta o 4.º ano, dera a mão ao Francisco, o menino com trissomia 21. Estivera atento a visita inteira.

Alfredo estava animado com a mudança. “A escola está mais melhor assim!” Parece-lhe que se porta melhor e tudo. “Eu antes tinha cá o meu irmão e ele fazia disparates, dizia asneiras e isso.” Agrada-lhe ter mais professoras e mais crianças para brincar à bola, à apanhada, ao escondidinho.

Está tudo diferente. As salas não têm cadeiras viradas para o quadro. O quadro é só um recurso para a professora ou para o aluno que queira apresentar alguma ideia. As crianças trabalham em grupo de frente umas para as outras. O dia começa com a turma sentada numa manta estendida num canto, a delinear o plano para o dia. E termina com a turma a discutir o que foi o dia. 

Pediu-se à turma de 1.º ano que se sentasse na manta a avaliar tudo. “Gosto muito desta escola. É muito divertida. Tem muitos meninos”, dizia Maria. “Eu gosto desta escola porque tem mais jogos, mais livros, mais professoras, mais amigos”, dizia Bernardo. “Tenho quase tudo o que eu queria.”

Naquele tapete, faltava Simão. Os pais matricularam-no em Paradinha, mas mudaram de ideias quando souberam que Ariel se juntaria à turma. Queriam que fosse para Jugueiros, como a irmã. Só que nessa escola não havia vaga no 1.º ano. Simão haveria de vir para esta escola ao 10.º dia, quando o número de faltas injustificadas já pedisse queixa à Comissão de Proteção.

“Estes já vêm trabalhados do jardim-de-infância. Estes já encaram a etnia com normalidade”, afiançava a professora Sandra Tavares. “Não há essa questão de este é cigano, aquele é não é cigano. Aqui há crianças. A palavra ‘cigano’ não se usa. Eles às vezes é que dizem: ‘Eu sou cigano.’ E eu pergunto. E não tens orgulho? E eles dizem: ‘Sim’.”

Acreditar no poder transformador da escola

Um mês depois de iniciadas as aulas, Conceição Neto fazia um balanço positivo. As crianças estão a faltar muitíssimo menos. Não havia registo de conflito entre crianças ciganas e não ciganas, apenas entre crianças ciganas de famílias desavindas. Incidentes e divergências passavam da escola para o bairro e do bairro para a escola. “Vamos ter muitos obstáculos — já estamos a ter”, reconhecia. “Temos de esclarecer as famílias, dizendo sempre a verdade, abrindo as portas, mostrando que estamos a dar o nosso melhor, mas principalmente criando nas crianças a vontade de vir à escola.”

As regras apertaram. Quem chega depois das 9h15 já não tem direito a almoçar e quem inicia uma atividade de enriquecimento curricular não pode sair antes do fim. Foi acionada uma vasta rede de parceiros. Um deles é a Caritas Diocesana, que gere um centro comunitário dentro do bairro. O sociólogo António Ramalho está nesse centro a gerir uma equipa que pode bater à porta de quem está a faltar.

Um dos maiores desafios é fazer acreditar no poder transformador da escola. Ajuda ter bons exemplos para apontar. Ali, no bairro, moram pessoas com diferentes níveis de escolaridade, umas a trabalhar na venda ambulante, outras a trabalhar por conta de outrem, no mercado formal, o que é muitíssimo mais raro. Não pesa só a baixa escolaridade, também o estigma. “Há um processo de exclusão e um processo de auto-exclusão”, nota Ramalho.

Até quando andará o filho de Carina na escola? “Até ele conseguir. Gostaria que tivesse uma vida que a gente não tem. As feiras que dão? Mal é que o cigano não tem trabalho por ser cigano!” E o de Carla? “Gostava que não andasse, como nós, nas feiras, que tivesse uma vida como os outros têm.” E os de Vanessa? “Quero que estudem, que façam aquilo que eu não fiz, que vão para a faculdade.”

Fonte: Público

sábado, 27 de outubro de 2018

“Uma classe adoecida pela organização do trabalho”

Setenta e cinco por cento dos professores e educadores do Ensino Básico e Secundário dão aulas em exaustão emocional. Praticamente metade demonstra sinais preocupantes e 24% têm sinais críticos ou extremos de desgaste. Quarenta e dois e meio por cento não se sentem realizados profissionalmente. Quase 22 mil confessam que tomam medicação a mais e cerca de nove mil falam em consumo excessivo de drogas e álcool para enfrentar o ritmo de trabalho e fazer face às exigências do sistema. Cerca de 3% apresentam consumos combinados de álcool, droga e medicamentos. Oitenta e quatro por cento desejam reformar-se antecipadamente sem penalizações. O maior estudo realizado no nosso país sobre a vida e o trabalho dos professores portugueses mostra uma “classe doente”. 

“O primeiro resultado completamente esmagador revela que estamos perante uma classe adoecida pela organização do trabalho”, refere (...) Raquel Varela, coordenadora do “Inquérito Nacional sobre as Condições de Vida e Trabalho na Educação em Portugal”, realizado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa a pedido da Federação Nacional dos Professores (FENPROF). “A maioria dos docentes está a trabalhar doente”, avisa. 

As imagens que sobressaem deste estudo são preocupantes. Uma parte significativa de quem ensina, e que tem uma enorme responsabilidade de transmitir conhecimentos às futuras gerações, está cansada, exausta, desmotivada, num desgaste contínuo. E uma classe doente empobrece um país. Por tudo isso, fala-se numa revisão do modelo de gestão das escolas. Raquel Varela, investigadora e historiadora da Universidade Nova de Lisboa, alerta para o perigo de uma alienação por parte de uma classe profissional e para um sentimento de não pertença a um lugar, neste caso, à escola. 

O desgaste emocional é uma das áreas que mais salta à vista no estudo: 47,8% dos professores revelam sinais no mínimo preocupantes, dos quais 20,6% exibem sinais preocupantes, 15,6% sinais críticos e 11,6% demonstram sinais extremos de esgotamento. Os professores sentem-se operários numa linha de produção que não pára. Raquel Varela refere, a propósito, que os professores “sofrem um processo de proletarização”. Ou seja, os docentes sentem que não são parte interveniente e pensante no processo educativo, em que as suas ideias, a autonomia, e a criatividade não são tidas em consideração, “e passam a estar sujeitos a ordens externas”. 

No entanto, o estudo mostra uma baixa taxa de despersonalização, que acontece quando alguém olha e trata as pessoas como objetos. Uma taxa de 7,6%. “O que significa que os professores ainda têm muito carinho pelos alunos. Adoeceram mas não explodiram nos alunos”, diz Raquel Varela. E este “adoecimento”, sustenta, não acontece “por um processo individual de culpa”. “É a organização do trabalho que os adoece”. Um trabalho amarrado a um modelo de gestão autoritário e a um sistema de ensino padronizado. 

Indisciplina e burocracia 

O trabalho burocrático, a indisciplina, a pouca autonomia, a falta de reconhecimento público, o salário, a desmotivação. A coordenadora do projeto toca nestes pontos que se cruzam no estudo, com quase 120 perguntas e perto de 16 mil inquéritos completos respondidos por professores de norte a sul do país, incluindo ilhas, do ensino público e privado. E alerta para a necessidade de se rever um modelo de ensino “nos meios e nos fins”. Isto porque, em sua perspetiva, a escola continua a ensinar para o mercado e não para o capital humano. Educa-se para as necessidades das empresas, em constantes mudanças, esquecendo-se o essencial. “Precisamos de um ensino universal que dê acesso a todo o conhecimento produzido pela humanidade”, defende. 

Mais de 70% dos professores estão preocupados com a indisciplina e este é um ponto que se relaciona com esse “adoecimento”. E os problemas de indisciplina e de insucesso escolar aumentam e preocupam porque “não têm um tratamento coletivo”, ou seja, não se resolvem num trabalho e esforço conjuntos. “Os professores culpabilizam pais, pais culpabilizam professores, diretores culpabilizam professores. Entopem-se escolas de faltas disciplinares, processos burocráticos demorados e a questão da indisciplina tem-se revelado cada vez mais importante como fator de adoecimento dos docentes e de perturbação das escolas”, lê-se no estudo. 

O estudo confirma que o excesso de trabalho burocrático também está relacionado com o estado de exaustão emocional. “Aumenta toda a gestão burocrática. Aumenta a quantidade e multiplicidade de tarefas que os professores não devem, não podem, e não sabem fazer. É urgente que as escolas contratem profissionais que façam esse trabalho”. Por outro lado, é urgente valorizar as carreiras de quem ensina, fundamental para quem passa os dias na escola, transmite conhecimentos, contribui para o desenvolvimento do país. 

“A equipa de investigadores consegue provar que o problema é de organização do trabalho. O afastamento entre as expetativas dos docentes e a realidade do exercício da sua profissão é a principal causa dos problemas diagnosticados, bem refletidos nas conclusões que, nesta fase, é possível tirar, num estudo que, até pelo volume dos dados (cerca de dois milhões), não está e não podia estar terminado”, refere a FENPROF, em comunicado.

Fonte: Educare

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Percursos Alternativos

No início do ano escolar, entre as análises que se fazem, uma há que se sobrepõe a todas as outras, respeitante às taxas de reprovação ocorridas no ano passado, deixando a sensação de que, quaisquer que tenham sido, foram certamente excessivas.

Trata-se de uma questão antiga e que será eterna, pois que, em qualquer classe escolar, há sempre os que têm sucesso na aprendizagem e os que não o conseguem.

Mas será bom pensar que o insucesso, quando exista, não é só do estudante que está em causa; em boa verdade, esse insucesso atinge também a instituição que ministra as atividades escolares, deixando dúvidas sobre se ela terá feito tudo para conseguir o sucesso de todos os alunos.

Nesta cadeia de responsabilidades, até poderemos ir mais além, interrogando-nos sobre se a essa instituição foram asseguradas as melhores condições para realizar o seu trabalho. 

É que, na análise de um insucesso escolar que atinge este ou aquele aluno, há múltiplas causas, nem sempre imputáveis a esse mesmo aluno. E, não sendo essa a problemática geral que hoje pretendemos abordar, é bom deixar a ideia de que é demasiado simplista dizer que o aluno não foi capaz de acompanhar o ritmo que todos têm de adotar. 

Ou será que cada um dos alunos não tem direito a que respeitem o ritmo que lhe é próprio? Haverá um percurso escolar ajustado a todos os alunos? Ou existe, para cada aluno, um percurso que lhe é mais adequado? 

Estas e outras questões deixam o entendimento de que a apreciação de um caso de insucesso escolar convoca, para discussão, aspetos variados que superam, largamente, a explicação simplista de que este ou aquele aluno é menos dotado ou trabalhou menos do que os outros. 

E se não sabemos explicar, devidamente, o insucesso de um aluno, teremos de interrogar-nos sobre o significado da consequência mais frequente desse insucesso, traduzido na repetição de um ano escolar. 

Desde logo, no percurso de vida do aluno em causa, há um momento de atraso, como que uma paragem forçada, quando os companheiros desse percurso continuarem a avançar. 

E esta situação tem sequelas de toda a ordem, designadamente de âmbito psicológico, deixando uma sensação de derrota em que nem sequer há vencedores. 

Daí que todos os esforços no sentido de superar os casos de insucesso sejam bem vindos, sendo certo que o primeiro passo será sempre garantir a cada aluno o percurso escolar mais ajustado à sua condição, no mesmo passo em que se lhe possibilita a adoção do ritmo que lhe é próprio.

Albano Estrela

Fonte: Educare

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Parlamento contra proibição de fármacos para hiperatividade antes dos seis anos

A maioria dos deputados discordou nesta quarta-feira da proposta do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) para proibir a prescrição de medicamentos para a hiperactividade e défice de atenção até aos seis anos, como a Ritalina, considerando que o Parlamento não pode interferir num acto médico. (...)

Fonte: Público com desenvolvimento da notícia

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O Decreto-Lei n.º 54/2018 na visão de Joaquim Colôa

Texto elaborado por Joaquim Colôa para a audição pública sobre o Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, na Assembleia da República, em Lisboa, no dia 10 de outubro de 2018.

Minhas Senhoras e meus Senhores boa tarde, começo por cumprimentar o Senhor deputado Jorge Falcato moderador desta audição pública bem como todas as participantes da mesa assim como todos e todas as presentes. 

Agradeço, em particular, ao grupo parlamentar do Bloco de Esquerda o convite que me endereçou para, conjuntamente, refletirmos sobre educação enquanto ação inclusiva e para a inclusão. Esta é uma oportunidade por excelência para falarmos de uma escola que se pretende realizar enquanto “escola completa”. Uma escola do século XXI que está atenta à atividade técnico-pedagógica com base em evidências científicas e que assume com segurança e convicção que é um microcosmo social que se concretiza através da transmissão, pela comunicação. A evidência de que as pessoas, todas as pessoas, vivem em comunidade porque têm coisas comuns e a comunicação é a forma pela qual eles processam esse comum ( Kricke & Neuber, 2017). 

Assim, hoje estaremos inevitavelmente a falar de um dos pilares da democracia, o direito de na diversidade e pela diversidade cada pessoa fazer aprendizagens e se autodeterminar em liberdade e justiça, assumindo natural e criticamente o direito à participação em equidade. Ao sublinhar estes princípios éticos, indissociáveis de qualquer democracia, reivindico como mote central para a reflexão os valores subjacentes aos direitos humanos e, se me permitem, estou convicto de que não existe local mais nobre para falarmos de direitos humanos, como é a Assembleia da República, espaço físico e simbólico do exercício da democracia.

Inicio por dizer que a minha narrativa se centrará somente em alguns aspetos que considero centrais do Decreto Lei 54 de Julho de 2018 e que se me apresentam mais críticos. Assim não pretendo proceder a qualquer interpretação mais ou menos exaustiva do referido diploma legal, não só porque o tempo não o permite como, percecionando-se a sua pouca clareza, correria o risco de me enlear em (re)interpretações sucessivas, diversas e quiçá díspares. Realidade que um mês depois da implementação efetiva de dito diploma é já factual em muitas escolas e formações explicativas e (re)interpretativas que todos os dias são oferecidas, mas também vendidas a todos aqueles a quem foi acometido o dever de operacionalizar o que no citado normativo se pretendeu conceptualizar. Do pouco tempo de vigência do Decreto Lei 54 de Julho de 2018, parece-me podermos reter, já, que quiçá fruto de diversas abordagens mais ou menos formais realizadas a diversos níveis do sistema educativo, inclusão pode ser tudo e o seu contrário. 

É hoje um facto que em nome da inclusão, pressupostamente propagada pelo citado normativo, em algumas escolas se têm colocado e repito colocado alunos em contextos de aparente interação que, por não se acautelarem os necessários mecanismos de participação e sentido de pertença, se configuram como antes da publicação de dito diploma legal, em práticas tantas vezes guetizantes. Quantas vezes, durante este mês, temos assistido à descrição de ambientes de exclusão, mesmo quando inscritos em contexto de sala de aula. A sala de aula e/ou o facto de se estar nesta tem vindo a ser entendido, tantas vezes, como imperativo primeiro do normativo. Entendimento que, sem norteamento conceptual e inerentemente operacional consistente, transforma a sala de aula em simples contexto instrumental de definição da própria inclusão. Assim, em nome da diversidade e diferença mais não se substantivam e aprofundam, não só na esfera do simbólico, teorias, atitudes e práticas de normalização. 

O Decreto Lei 54 de Julho de 2018 é um normativo eivado de várias contradições tanto no que se refere à sua linguagem como a muito do seu articulado mais específico. É um documento ambíguo logo na conceptualização do modelo multiníveis, aspeto central em redor do qual se pretende organizar todo um racional filosófico e de ação. Esta ambiguidade é facilitadora da emergência de práticas de inclusão que se prestam a ser uma expressão de mudança discursiva, ou seja, uma retórica de boa vontade a que alguns têm relutância em opor-se, mas que tende a perpetuar e mesmo ampliar práticas muito pouco inclusivas. Mais que algumas vezes se tem ensaiado a tese de que se as coisas não funcionarem é porque existem nas escolas resistências e bloqueios mais uma vez assacados, essencialmente, aos professores e, sobretudo, aos Professores de Educação Especial, mesmo sendo esta uma lei dita para a inclusão e não para a Educação Especial. Talvez por este tipo de mensagens mais ou menos institucionais, mais ou menos subliminares alguns Departamentos de Educação Especial, num assumir evidente de tais contradições e ambiguidades, se transformaram eles e só eles mesmo, à revelia de outros diplomas legislativos, em Departamentos de Educação Inclusiva. 

Estamos assim perante uma realidade em que alguns aspetos críticos identificados em outros países após alguns anos de implementação do modelo multiníveis se configuram, em Portugal, como emergentes logo na casa de partida ou seja no próprio normativo. Realidade que se amplia pelo facto de no Decreto Lei 54 de Julho 2018 o modelo multiníveis ter sido redesenhado numa versão, diga-se em abono da verdade, muito portuguesa. No normativo agora em apreço o modelo multiníveis apresenta-se como um híbrido conceptualizado numa perspetiva de organização de medidas educativas que se configuram como respostas circunscritas e prescritivas à expetável diversidade de alunos que compõem as escolas do século XXI. Assim, sem qualquer olhar critico e com uma capa de cientificidade, ao modelo multiníveis é, de forma não assumida, atribuída a qualidade de modelo pedagógico. Nesta lógica, ao modelo multiníveis são entrosadas de forma direta e artificial (para não dizer de contornos técnicos questionáveis) ações que, em grande parte, definem outro modelo, o de Diferenciação Pedagógica que como o seu nome indica este sim é um modelo pedagógico. É mesmo com surpresa que verificamos que a própria expressão Diferenciação Pedagógica é destituída da sua substantivação enquanto modelo de ação para se transformar, ela própria, em medida educativa. Deste modo, por força de uma reconceptualização, diríamos que sui generis e quiçá inovadora, ao modelo multiníveis sonega-se-lhe a sua função original.

Como referem Balu et al (2015), as inovações educacionais, como a ferramenta de trabalho “multiníveis”, são mais eficazes se usadas como concebidas originalmente. Assim, como também concluem Durlak & Dupré (2008), que a fidelidade ou a aderência hábil ao modelo, permite que os profissionais compreendam melhor se todos os componentes estão a ser usados e o grau em que esses componentes estão a ser eficazes ou ineficazes. Tomando eu esta premissa como séria e cientificamente sustentada, prevê-se a médio prazo em Portugal algumas barreiras adicionais à monitorização efetiva do Decreto Lei 54 de 2018 bem como à consecução de resultados e processos de qualidade. Mais que os autores referidos afirmam, ainda, que os níveis mais elevados de fidelidade estão ligados aos melhores índices apresentados pelos alunos. 

A opção híbrida presente no Decreto Lei 54 de Julho de 2018, que com algumas reservas apelidamos de conceptual, apresenta como já referimos adstritas ao modelo multiníveis medidas prescritivas que se distribuem pelos três níveis e que advém da atomização de ações que compõem, em grande parte, o modelo de Diferenciação Pedagógica. Ações transformadas em medidas ditas educativas e assumidas como contínuas de cariz progressivamente mais restritivo e acumuláveis tal qual como estava inscrito na Decreto Lei anterior, o Decreto Lei 3/2008. Embora fosse pertinente, dispenso-me de realçar, 10 anos depois da sua implementação, alguns dos problemas que tais medidas educativas também de cariz circunscrito e prescritivo colocavam às práticas de inclusão. Tenho consciência de que podem estas considerações ser vistas como meramente opinativas e de leitura técnica e teórica, no entanto é esta realidade que se tem vindo, já, a consubstanciar em parte como fator central de dificuldades na operacionalização do Decreto Lei 54 de Julho de 2018. São vários os relatos de operacionalizações em curso, quantas vezes meramente instrumentais e ao ritmo de (re)interpretações sucessivas, conjunturais e mesmo contraditórias. Assim, um mês após a implementação do Decreto Lei 54 de Julho de 2018 são emergentes aspetos que nos remetem para algumas avaliações realizadas em outras latitudes geográficas, estas feitas alguns anos após a implementação do modelo multiníveis. De entre várias realçamos a não coincidência entre a apropriação de termos e conceitos relativos ao modelo e a alteração de práticas, observando-se por vezes a manutenção de um conjunto de práticas pouco consistentes e mesmo marginais (Kavale, Holdnack & Mostert, 2005). Para além disso este facto tenderá a consubstanciar, mais cedo e de forma menos avisada, uma realidade também constatada algumas vezes nas diversas avaliações à implementação do modelo multiníveis, dizem essas avaliações que este ora pode ser ignorado tanto por professores, gestores e outros decisores escolares como pode ser manipulado e mal implementado reduzindo-se, muitas vezes, a um conjunto de dados que servem tão só para o preenchimento de diversos formulários (Cicek, 2012). Facto que se poderá tornar ainda mais pertinente se assistirmos à monitorização de processos, a vários níveis do sistema e à luz do Decreto Lei agora em apreço também eles desprovidos de princípios científicos e pedagógicos consistentes e por isso acantonando-se em interpretações de interpretações e em ações de cariz essencialmente administrativo, nomeadamente no seu afã de recolher dados/números que ilustrem e corporizem quadros que, independentemente dos seus objetivos quantas vezes questionáveis, assentam mais no preconceito conjuntural que na racionalidade necessária à mudança qualitativa que muitos almejamos estrutural. 

Para que essa mudança seja na realidade diferenciadora e qualitativa, diversa literatura produzida em vários países e que se tem dedicado a relatar a monitorização (cientificamente sustentada) da implementação do modelo multiníveis refere que, para além de ser importante respeitar o modelo original, o elemento mais crítico é definir uma visão clara e conquistar o empenho da liderança escolar, das estruturas intermédias, bem como dos líderes de professores e daqueles que influenciam as práticas dos professores em cada escola (Maier et al., 2016; O’ Connor & Freeman, 2012). É fazendo justiça a esta ideia que, por entre outras razões, em todas as escolas, estados e países (dependendo de organizações políticas e administrativas) onde se decidiu pelo modelo multiníveis, o prazo de implementação deste é de cerca de três anos letivos. Três anos que são, apelando-se à autonomia de cada organização, devidamente mas também livremente planificados tanto no que respeita a tempos, como a ações nomeadamente formação em contexto real, alocação de recursos disponíveis e a disponibilizar bem como no que se refere à elaboração de documentos diversos como são os de avaliação e monitorização contínua de resultados, e processos.

Na nossa realidade pese informalmente ouvir-se dizer e repito, ouvir-se dizer, que a legislação é para se ir implementando e a sua operacionalização é para se ir fazendo, a verdade é que o normativo nos diz que: “1 - O presente decreto-lei produz efeitos a partir do ano escolar 2018-2019 - 2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, e do regime previsto no artigo 31.º, devem as escolas proceder à sua aplicação na preparação do ano letivo 2018-2019”. Peço desde já desculpa por não transcrever o articulado no artigo 31º, mas parece-me mais assertivo tomar esse tempo para assumir que decorrente da letra da lei encaramos como natural que tomem forma medos também eles contraditórios. Também este clima pouco propício a inovações e mudanças tem sido tónica na maioria das escolas. Decorrente tanto da publicação do diploma legislativo em Julho de 2018 para ser considerado na preparação do ano letivo de 2018/2019 como dos climas, quantas vezes (en)formativos e pouco propícios à reflexão a que temos vindo a assistir, parece-nos natural que o stress de diversos agentes educativos tenha vindo a aumentar colocando em causa a já frágil resiliência de muitas organizações escolares. Apelamos agora a um documento de monitorização de implementação do modelo multiníveis, produzido noutras geografias em que se refere que: Implementar um novo modelo pode criar muito stress, reduzindo o envolvimento. Quando o envolvimento é baixo, o novo modelo tem menos probabilidades de ser implementado a longo prazo (Damschroder et al., 2009; Fixsen, Naoom, Blase, Friedman, & Wallace, 2005). 

Mais que como já referimos o modelo multiníveis é na sua origem um (re)organizador de serviços que remete para um conjunto de respostas que em determinada organização já existem ou necessitam ser mobilizadas de forma a concorrerem para a adequação precoce de comportamentos de aprendizagem e de interação social, claramente identificados. Este modelo no seu original, por não ser um modelo pedagógico, necessita relacionar-se, sem se confundir, com modelos de essência pedagógica como poderão ser o Desenho Universal para a Aprendizagem e/ou o Modelo de Diferenciação Pedagógica. 

Consciente ou inconscientemente e parecendo-nos que para suprir a função original denegada, em Portugal, ao modelo multiníveis, inscreve-se no Decreto Lei 54 de Julho 2018 uns putativos Centros de Apoio à Aprendizagem. Estes, pressupostamente, pretendem ser aglomeradores (físicos e virtuais – dizem alguns) de serviços e respostas. Função que, repetimos, no seu original o modelo multiníveis assumiria. Aliás diga-se em abono da verdade que esta função do modelo multiníveis é verdade tanto para os ambientes educativos como em outros cenários nomeadamente e como mero exemplo, os financeiros e os de marketing. 

Mas voltando aos Centros de Apoio à Aprendizagem, quer corporizem grosso modo e como tem vindo a ser assumido em diversas instâncias, os recursos já disponíveis em cada um dos agrupamentos de escolas, quer não, tenderão inevitavelmente pela forma simplista e omissa como são descritos no articulado do Decreto Lei 54 de Julho de 2018, a transformarem-se gradualmente em lugares físicos de segregação. Deste modo, a médio prazo, estou convicto que será ainda mais real a guetização já antes observada em alguns serviços disponibilizados pelas escolas. Falamos nomeadamente das unidades referenciadas a diversas tipologias de deficiência, mesmo podendo estas apropriar-se de novas denominações que a alguns parecerão mais inclusivas. 

Acreditamos que tenderão também a efetivar-se e a assumirem-se como legais em algumas escolas determinadas práticas marginais que têm sido informalmente toleradas a diversos níveis de decisão e em algumas zonas do país até mesmo incentivadas por decisões mais ou menos informais da própria tutela. Para ilustrarmos referimos como exemplo as turmas constituídas somente por alunos a quem tinha sido prescrito um Currículo Específico Individual. No futuro a denominação poderá ser a de qualquer nova medida educativa, possivelmente alguma das consideradas mais restritivas, quiçá a denominada “adequação curricular muito significativa”, ou esta prática segregadora referenciar-se ainda a qualquer pensamento seletivo e/ou categorizador assumido como interpretação legítima do que pode ser a operacionalização dos Centros de Apoio à Aprendizagem. A acontecer esta realidade que nos parece cada vez mais emergente, estaremos perante mais um aspeto crítico assacado ao modelo português. Pese, no entanto, este aspeto crítico também ser identificado em diversas avaliações realizadas, em outros países, após algum tempo da implementação do modelo multiníveis, o original. Aspeto critico que levou Basham, Israel, Graden, Poth & Winston, (2010) a chamar a atenção de que em nenhum dos níveis a ação pode ser confundida com “medidas seletivas” e argumentativas, com risco de estas se confinarem a procedimentos essencialmente administrativos, para respostas mais restritivas (para ilustrar esta ideia embora tomando novamente a liberdade de não transcrever o artigo 31º, aconselho vivamente a sua leitura atenta). Acrescentando que a acontecer o que antes descrevo estaremos perante um modelo que se baseia em meras ações de elegibilidade de alunos para serviços de cariz mais restritivo. Prática que os autores antes referidos identificaram noutras geografias e que por esse motivo alertam que os níveis de ação propostos pelo modelo multiníveis não podem ser assumidos como “lugares”, o Nível I, a “educação normal”, o Nível II a “educação compensatória” e o Nível III a “educação especial”. 

Para finalizar e retomando o tópico recursos quero ainda, se me é permitido, discordar das vozes que apresentam o Decreto Lei 54 de Julho de 2018 como percursor de mudanças inovadoras, pelo menos no que aos Centros de Recursos para a Inclusão diz respeito. É por demais evidente que no que a estes se refere se mantém o status quo tão confortável para algumas organizações. Sobre tal assunto e para não vos roubar mais tempo reproduzo, de cor, as palavras do Presidente da Associação de Docentes de Educação Especial que no essencial vai de encontro ao que defendo desde 2008 e cito: “Sobre os Centros de Recursos para a Inclusão avançamos muito na discussão, mas não avançamos na decisão. Quanto aos Centros de Recursos para a Inclusão parece que estamos todos de acordo, mas não acontece nada. Necessitamos mudar, está na altura de fazermos alguma coisa relativamente aos Centros de Recursos para a Inclusão. O modelo de intervenção é um modelo que está eivado de imensos problemas na relação entre o que são os Centros de Recursos para a Inclusão e as escolas. Os Centros de Recursos para a Inclusão são para a Inclusão, não para as terapias não para a Educação Especial. Deve ser estudado, seriamente estudado, um modelo de financiamento que não seja este e que permita às escolas recrutar os recursos que necessitam para educar os seus próprios alunos.” 

Estas palavras foram ditas nesta mesma casa. Casa que reafirmamos e terminando a nossa intervenção, ser por excelência o lugar físico e simbólico da democracia e do poder de todos os cidadãos e todas as cidadãs no efetivo dever de participação discricionária, com ética pessoal, social e profissional, em liberdade e em justiça. 

Bem-hajam

Texto original disponível aqui.