terça-feira, 18 de novembro de 2014

Uma criança maltratada só fala com um adulto capaz de ouvir a sua terrível história

O britânico Richard Rose é o principal promotor de uma terapia para ajudar crianças traumatizadas a desenvolverem relações afetivas – e a cura – fora do meio natural de vida, ou seja, da família onde nasceram. A metodologia, que criou no Reino Unido em 1997 e a que deu o nome Life Story (história de vida), envolve os cuidadores (nas instituições ou famílias de acolhimento) e transporta a criança no tempo, levando-a a entender o quadro familiar em que os seus avós e os seus pais cresceram antes de se tornarem abusadores ou negligentes.

A técnica “em expansão” no Reino Unido, diz, está a ser desenvolvida na Austrália e experimentada em Portugal onde o especialista supervisiona uma equipa que acompanha, há dois meses, dez crianças a viver em instituições ou acolhidas na família alargada, no Alentejo.

O especialista e autor de dois livros – entre os quais Life Story Therapy with Traumatized Children (2012) – é também professor associado na área de Serviço Social e Política Social na La Trobe University em Melbourne, na Austrália, onde está igualmente ligado ao Berry Street Childhood Institute e trabalha nos Serviços de Famílias de Adopção em Belfast, na Irlanda do Norte. E dirige os Serviços de Intervenção junto de Crianças Traumatizadas em Inglaterra e País de Gales, onde aplica, juntamente com outros profissionais, esse método junto de cerca de 200 crianças retiradas à família – uma pequena minoria do total de 66.600 crianças retiradas aos pais e a viver em instituições ou (a grande parte) famílias de acolhimento, só na Inglaterra e País de Gales.

Richard Rose falou (...) em Lisboa onde esteve nesta segunda-feira a apresentar uma conferência no encontro Os Direitos da Criança no Acolhimento Institucional, organizado pelo programa Crianças e Jovens em Risco da Fundação Calouste Gulbenkian.

Em que consiste o método “história de vida”?
O objetivo é construir uma boa compreensão da experiência de vida da criança, antes e no momento do seu nascimento e desde o nascimento até ao momento atual. O que as crianças e os jovens vão querer saber é se eu, no meu contacto com eles, sou autêntico ou se estou a usar as mesmas palavras que ouviram durante anos de outros profissionais, como “eu percebo, tudo vai correr bem, tens que ultrapassar [os teus traumas]”. O que faço é falar com eles, sobre a sua vida e a sua família, com conhecimento real e não apenas a partir do que li num relatório. Isso faz muita diferença. As crianças percebem que estive na casa dos pais, dos avós ou de outros familiares. Isso permite desenvolver um verdadeiro diálogo com elas e dá-lhes um sentimento de autenticidade e de pertença.

Esse sentimento surge ao fim de quanto tempo?
Depois da primeira fase de recolha de informação sobre a criança e a família, a intervenção directa dura nove meses. Durante esse tempo, depois de falarmos da história da criança até ao seu nascimento e depois dele, chegamos ao momento presente e falamos do que a criança gostaria que fosse o seu futuro. E vemos crianças, que estavam muitas vezes presas ao passado, a serem capazes, de um momento para o outro, de perceber que estão no presente e que podem pensar no seu futuro.

É uma viagem no tempo que oferece à criança uma percepção mais positiva de si mesma?
Sim, e um método que permite o fortalecimento dos laços entre a criança e o cuidador na instituição ou na família de acolhimento, porque fizeram essa viagem juntos. A partilha de compreensão e de experiências, durante as 18 sessões ao longo dos nove meses da intervenção, cria essa oportunidade de vinculação entre os dois. Quem acolhe a criança pode ver para lá do seu mau comportamento, para lá dos seus problemas, pode ver uma pessoa que precisa de ser protegida. A ideia é que a família de acolhimento se transforme numa âncora e que as crianças em situação de acolhimento passem a ter uma pessoa que as conhece bem, que as compreende, que gosta delas. Antigamente, trabalhávamos com a criança. Mas se não trabalharmos com o acolhimento, como podemos esperar que haja avanços?

O objetivo é pois aproximar a criança da família de acolhimento e ao mesmo tempo levá-la a compreender a família de origem?
Sim, a criança precisa de saber o que aconteceu com os pais, para perceber os maus tratos, os abusos sexuais, a negligência que sofreu. Muitas vezes os próprios pais foram maltratados ou abusados em criança. O seu entendimento do que é cuidar de uma criança está alterado em função da sua própria experiência. Nessa altura, junto da criança, a abordagem deve ser não a de diabolizar o comportamento que ela própria está susceptível de desenvolver, influenciada pelo comportamento que os pais tiveram com ela, mas perceber a origem desse comportamento. Falamos das suas experiências, das terríveis recordações do passado e da dor. Os adultos não gostam de ouvir falar desse tipo de dor, dos maus tratos, dos abusos sexuais. Mas é isso que está na cabeça das crianças. É disso que elas vão falar.

E conseguem falar disso facilmente?
Não falam disso facilmente, dos maus tratos, dos abusos sexuais. É preciso desenvolver uma relação de confiança com elas e mostrar que se é capaz de ouvir o que elas têm para dizer e receber essa informação de forma segura. O que elas não querem é dizer uma coisa muito difícil a uma pessoa e sentir que essa pessoa fica abalada com essa informação. Se sentem que nos vão magoar ao dizer algo muito triste, não o vão dizer.

Protegem quem as está a ouvir?
Protegem. As crianças questionam-se se a pessoa pode ouvir as coisas que tem para dizer ou se são demasiado horríveis. E retraem-se. Mesmo as muito pequeninas. Nas entrevistas em que acusam os pais de abusos sexuais, retraem-se se sentem que a pessoa não é capaz de ouvir esse tipo de relato.

E desresponsabilizam os pais ou acusam-nos?
Muitas crianças com quem trabalho desenvolvem uma história que as mantém seguras. Trabalho com uma menina de 13 anos, que me diz que quando tinha três anos o pai abusava dela. E que ele não é verdadeiramente responsável pelo que aconteceu, porque ela podia tê-lo impedido de o fazer, se quisesse. Num caso destes, não valeria de nada eu dizer-lhe que o pai é que é responsável e não ela, porque toda a gente já lho disse. Ela já ouviu isso e isso não lhe faz sentido.

Como se consegue então pô-la a pensar que não foi responsável?
O meu trabalho foi pô-la a reflectir sobre o que é ser uma criança de três anos, como pensa uma criança de três anos, como fala, quais as suas faculdades. E depois ver como é um adulto, um pai, não o pai dela, mas como é um pai, que pode ser bom ou não. No fim, ela foi capaz de dizer que não podia tê-lo impedido de abusar dela mesmo se quisesse. E essa [convicção] era a chave. Porque naquele momento, ela não estava preparada para ouvir que o pai era responsável. O que ela tinha que compreender era que a sua culpa e a sua vergonha não estavam bem direcionadas. Ela tinha que chegar a essa conclusão. E chegou.
 
Fonte: Público

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