As descrições abstractas, hipotéticas, por vezes eivadas de idealismo, não passam, na maioria dos casos, de conjecturas altamente desfasadas das realidades da sala de aula.
Numa era em que se pensava, fruto da muita investigação credível existente, que era possível levar a verdadeira inovação às escolas e às salas de aula, eis que, no que respeita à educação especial, mais uma vez, as metas são traçadas por aqueles que ao deterem o poder decidem quais as políticas desejáveis, descurando o conhecimento científico acerca da forma como, hoje em dia, se deve responder às necessidades dos alunos com necessidades educativas especiais (NEE).
Vem isto a propósito da informação prestada pela Lusa sobre a avaliação que o ministério da educação pretende levar a cabo, que terá por base o sistema de sinalização de alunos com NEE utilizando a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF).
Dá-se aqui uma primeira machadada na investigação. Sinalizar alunos com NEE utilizando a CIF? Mas, se a CIF é apenas uma classificação (classificar não será já em si um acto discriminatório?) que se alimenta das observações e avaliações efectuadas, nos vários domínios de desenvolvimento do aluno (académico, socioemocional e pessoal) e nos contextos onde ele se move (escola, casa, comunidade), por professores e outros agentes especializados, como pode, por si só, sinalizar seja o que for? É que o âmago da CIF, para quem a desconhece, baseia-se numa grelha (em termos científicos, numa escala gradativa) que, tendo por base um sistema de codificação, exige que seja aposto um visto numa de quatro opções. Impera, assim, a subjectividade, tantas vezes em prejuízo do aluno. Mais, se já se efectuaram avaliações cujos resultados, pressupostamente, permitem a elaboração de programações eficazes para os alunos com NEE, por que carga de água se vai despender mais tempo e dinheiro para, ainda por cima, subjectivar tudo o que já foi feito?
A segunda machadada (neste caso não só à investigação), ao continuar a ler a informação da Lusa, tem a ver com, quem?, o quê?, porquê?
No que concerne ao, quem?, não é verdade que Rune Simeonsson seja o autor da CIF, nem pouco mais ou menos. A sua equipa, isso sim, limitou-se a acrescentar-lhe alguns itens para adaptar a sua utilização a crianças e adolescentes.
Quanto ao, o quê?, considerar o autor da adaptação da CIF para conceber o modelo de avaliação que irá testar a sua eficácia é como perguntar ao Cristiano Ronaldo quem é, na sua óptica, o melhor jogador de futebol do mundo.
No que respeita ao, porquê?, pergunto porque é que Rune Simeonsson sentiu a necessidade de frisar que a CIF tem "em conta os contextos envolventes, e não as doenças". Aqui adivinha-se o pretender tornear um complexo sanitário (relativo à saúde e não à higiene, claro!) que, provavelmente, muito o tem atormentado, uma vez que a Organização Mundial de Saúde (OMS), cujo objectivo é o de "dirigir e coordenar as actividades internacionais relativas a questões sanitárias e de saúde pública", ao referir-se à CIF, diz que, "Como novo membro da Família de Classificações Internacionais da OMS, a CIF descreve a forma como os povos vivem com as suas condições de saúde... A CIF é útil para se compreender e medir os resultados de saúde...". Mais, num comunicado emanado da OMS (Press Release, WHO/48), pode ler-se, "A CIF põe em pé de igualdade todas as doenças e condições de saúde, sejam quais forem as suas causas...Têm sido feitos estudos científicos rigorosos para assegurar a aplicabilidade da CIF... no sentido de se poderem recolher dados fidedignos e comparativos no que diz respeito à saúde de indivíduos e populações". Assim sendo, não me restam quaisquer dúvidas de que a CIF diz respeito à saúde e que qualquer extrapolação para a educação pode trazer consequências desastrosas para os alunos com NEE. Quanto aos contextos envolventes (por contextos envolventes pretende-se dizer ambientes de aprendizagem e de interacção do aluno), que parece ser a imagem de marca da CIF, é importante que se diga que é uma imagem de marca já muito gasta, dado que desde os anos sessenta/setenta eles sempre foram considerados quando se efectuavam avaliações aos alunos com NEE. Ainda, continuando no porquê, não se percebe como um especialista de renome nos vem afirmar que com o uso da CIF, vamos assistir a uma "diferença radical" no atendimento a alunos com NEE e "a um passo inédito que Portugal tomou com a sua aplicação". Só pode ter sido por, a todo o custo, pretender vender o seu produto e por nos considerar uns saloios sem quaisquer cuidados científicos ou pretensões educacionais.
A terceira machadada, por incrível que pareça, vem confirmar o absurdo, ou seja, se, por um lado, o secretário de Estado da Educação, Valter Lemos, afirma que a "tutela vai avaliar a aplicação da CIF", como que a querer dizer-nos que ela se encontra numa fase piloto e, por conseguinte, sem consequências gravosas para os alunos com NEE, por outro lado, diz-nos que não está minimamente "preocupado" com o "facto de a aplicação da CIF ter reduzido o número de crianças com apoio". Com estas afirmações, Valter Lemos está não só a demonstrar a sua insensibilidade em relação aos problemas dos alunos com NEE, mas também a entrar numa contradição flagrante, pois reconhece o uso da CIF como definitivo, atirando para o insucesso esse "número de crianças com apoio" que, de uma forma "administrativa" (fruto de directrizes e inspecções a escolas), verão, com certeza, o seu insucesso escolar aumentar, conjuntamente, na maioria dos casos, com a erosão da sua auto-estima.
A quarta machadada, também dada por Valter Lemos, refere-se à sua douta frase de que "partir do pressuposto de que quantas mais crianças forem apoiadas melhor é errado" (espero que se perceba a sua afirmação, a necessitar, pelo menos, de pontuação), não percebendo o secretário de Estado da Educação que, quanto mais e melhores forem os apoios para os alunos, melhores e mais ricas serão as suas aprendizagens. Mais, ainda, ao afirmar que "Tínhamos freguesias em que todas as crianças de etnia cigana estavam sinalizadas", ao retirar-lhes os apoios, não fez mais do que atirá-los para a sarjeta educacional, sem respeitar minimamente os seus direitos. Já agora, ainda em relação às etnias, ao afirmar que "Isso não é uma resposta adequada", quero chamá-lo à atenção de que existem respostas adequadas para este tipo de alunos, consignadas na designada "educação bilingue/bicultural" que, a saber, nem sequer existe no país.
Finalmente, a quinta machadada tem a ver com a exigência de, até 2013, ter "todas as crianças com NEE nas escolas de ensino regular." Ter-se-á esquecido Valter Lemos dos direitos que a Constituição Portuguesa confere a todas as crianças, incluindo as crianças com NEE? É que esse esquecimento desrespeita o direito à liberdade de escolha e a uma igualdade de oportunidades que nem sempre se processará nas escolas regulares, especialmente por falta de recursos, humanos e materiais?
Todas estas machadadas, dadas aos princípios fundamentais que regem os direitos das crianças, designadamente das crianças com NEE, devem-nos envergonhar e fazer com que actuemos com firmeza em defesa desses direitos, expressando um forte espírito de solidariedade que o nosso ministério da educação parece ter esquecido. É que o desafio, o prazer e, tantas vezes, o sofrimento que os professores e os pais sentem ao trabalhar com crianças com NEE ultrapassa, em muito, o que os políticos, os especialistas e os comentadores escrevem ou glosam sobre a forma como se devem educar estas crianças. As descrições abstractas, hipotéticas, por vezes eivadas de idealismo, não passam, na maioria dos casos, de conjecturas altamente desfasadas das realidades da sala de aula. No momento presente, iria mais longe, adicionando-lhes a retórica, o oportunismo político, a ignorância, a insensatez e a arrogância de quem só olha para o umbigo, rejeitando o diálogo a todo o custo, por medo que se descubra que o rei realmente vai nu.
Numa palavra, diria, que o ministério da educação continua a espalhar-se a todo o comprimento, como aliás já nos habituou.
Luís de Miranda Correia