No dia em que as alterações no ensino especial chegam ao Parlamento, Miranda Correia, um dos maiores especialistas nacionais do sector, diz ao DN que houve precipitação da tutela e que só uma minoria das necessidades educativas é abrangida
"Lei exclui 90% dos alunos"
Em 2005, enviou ao Governo um relatório apontando a existência de 75 mil alunos com necessidades educativas permanentes sem assistência. Como chegou a esses números?
Em Portugal não há estudos de prevalência que nos dêem estimativas fiáveis dos alunos com necessidades educativas especiais. Guiamo-nos sobretudo por estudos feitos por autores estrangeiros. Países como o Canadá e o Reino Unido apontam para prevalências de 10% a 12%. Tendo em conta a nossa população de cerca de 1,5 milhões de alunos podemos falar em150 mil alunos com necessidades educativas, dos quais pelo menos 100 mil são permanentes. Já me ofereci para fazer um estudo de prevalência nacional, nas escolas, mas o Ministério não respondeu.
Não estamos a falar de alunos com deficiências físicas ou psíquicas. Que tipo de necessidades estão em causa em concreto?
Estas necessidades abrangem muitas problemáticas. A mais prevalente diz respeito às dificuldades de aprendizagem específicas. É um 'guarda-chuva' que engloba várias desordens: as dislexias, as disgrafias, as discalculias, as dispraxias...
O Ministério da Educação disse que muitos alunos que as escolas incluíam no ensino especial não tinham dificuldades de aprendizagem permanentes. Terá negligenciado casos como os que referiu?
Há uma confusão muito grande neste País em relação ao que são problemas de aprendizagem e dificuldades de aprendizagem específicas. Estes alunos existem. Não são inventados. Se os sujeitarmos a exames como imagiologias por ressonância magnética pode não acusar nada, mas vêem-se diferenças claras em relação aos alunos normais. Essas desordens provocam problemas no processamento de informação, que se reflectem, em termos académicos, nas áreas da leitura, escrita, cálculo e muitas vezes do próprio ajustamento social. Se calhar, muitas pessoas que vemos na rua a arrumar carros foram estudantes destes, que o sistema não acompanhou. São inteligentes, muitas vezes acima da média, mas não percebem porque os colegas conseguem ler e eles não. E isso nem o professor de apoio nem o professor de turma resolvem.
Partindo do princípio de que não considera benéfico, nem para estes alunos nem para os que têm deficiências permanentes, integrá-los no mesmo acompanhamento, qual é a alternativa para esses casos?
Existe um modelo que eu próprio propus há 15 anos. Permite dar apoio a alunos em risco educacional (famílias desfavorecidas, gravidez na adolescência), alunos com necessidades educativas permanentes e até a alunos sobredotados. Não se trata de ter serviços na escola, mas de levar os diferentes especialistas à escola em função dos casos. Já há um agrupamento no Norte a usá-lo, com bons resultados. Há dias, o secretário de Estado da Educação [Valter Lemos] disse que o ensino especial usa um modelo apoiado na CIF [Classificação Internacional de Funcionalidade]. Mas a CIF não é um modelo. É uma lista de verificação, que muitos consideram inadequada para a Educação. E que ainda por cima confunde os professores nas escolas. Imagine que tem um aluno com dificuldades de aprendizagem severas. Para o diferenciarmos de um aluno com deficiência mental temos de procurar saber o seu coeficiente de inteligência. Não é a CIF que vai fazer isso. É um psicólogo que vai avaliar. Um professor que preencha essa lista está a praticar um acto anti-ético.
Como é que ele vai graduar, por exemplo, funções intelectuais?É com base na CIF que o decreto-lei 3/2008 identifica os alunos elegíveis para apoios especializados. Alunos surdos, cegos......
E o que podemos dizer é que a lei exclui cerca de 90% dos alunos com necessidades educativas permanentes. Os casos previstos para apoio especializado são cerca de 4000 no País: alunos cegos, surdos, com perturbações do espectro do autismo e mulitideficiência. É óbvio que devem ser alvo de educação especial. Como os outros.
Mesmo em relação a essa minoria que cita, o anúncio da transferência de muitos alunos de escolas especializadas para a rede pública - o que o Ministério chamou de 'escola inclusiva' - tem gerado muita apreensão, sobretudo nos pais. Como avalia a medida?
Defendo a inclusão a 100%. Mas estou aqui como professor e investigador. E nessa condição diria que só será uma boa ideia quando as escolas tiverem a atitude, os conhecimentos e os recursos para poderem incluir a maioria dos alunos com necessidades educativas especiais. Houve uma precipitação muito grande no que diz respeito à publicação desta lei, e um orgulho, por parte do Ministério da Educação, que o levou a não ouvir ninguém a não ser os "seus" peritos.
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