Cada vez mais pessoas estão a ficar curtas de vista. Podia ser uma metáfora, mas é literal. A miopia – que faz com que se veja mal ao longe – é uma das patologias que está a aumentar mais rapidamente nos países mais desenvolvidos. De acordo com o Relatório Mundial da Visão, publicado o ano passado pela Organização Mundial de Saúde, há atualmente 2,6 mil milhões de pessoas míopes. O crescimento tem sido extraordinário, em alguns países, o número de míopes duplicou nos últimos 25 anos.
Os míopes conseguem ver bem ao perto, mas perdem nitidez e capacidade de focagem ao longe. “Para que possamos ver com nitidez, os raios de luz têm de percorrer as camadas da frente do olho, nomeadamente a córnea e o cristalino, que trabalham em conjunto para desviar a luz, para que esta atinja a camada posterior e fotossensível do olho, chamada retina”, explica o oftalmologista pediátrico Paulo Freitas da Costa, do Centro Hospitalar Universitário de São João.
“O que acontece na miopia é que o formato do olho impede que a luz seja direcionada de forma correta, sendo focada à frente da retina e não exatamente na retina”, detalha o médico. Isso acontece por razões anatómicas: “O olho apresenta um comprimento axial, ou seja, desde a frente até atrás, demasiado longo ou tem a córnea muito curva”.
A miopia geralmente desenvolve-se na infância, razão pela qual os rastreios visuais (no primeiro ano de vida, entre os dois e os três anos e entre os cinco e os seis) são tão importantes. As causas genéticas são um dos principais fatores de risco. “Ter um dos progenitores com miopia aumenta duas vezes o risco de a desenvolver, ter os dois progenitores com miopia aumenta o risco em oito vezes”, especifica Joana Portelinha, oftalmologista responsável do Departamento de Oftalmologia Pediátrica e Estrabismo do Hospital de Egas Moniz, do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental. Assim, todos os pais – os com miopia em particular – devem estar atentos para perceber se a criança manifesta dificuldade em ver objetos ao longe e também se tem tendência para semicerrar os olhos, um ‘tique’ que os míopes desenvolvem na tentativa de focar melhor.
É preciso pôr as crianças fora de portas
Ter pais míopes não justifica tudo. Ao peso do que eventualmente herdamos, juntam-se fatores de risco que são modificáveis porque dependem do estilo de vida e há dois comportamentos que parecem contribuir para a atual epidemia de miopia. O primeiro, e mais importante, é o pouco tempo que as crianças passam ao ar livre. “O mecanismo pelo qual passar tempo ao ar livre previne a miopia relaciona-se com a exposição e intensidade da luz natural, que leva à libertação de dopamina na retina, diminuindo o crescimento do olho”, esclarece Joana Portelinha.
Alguns estudos verificaram mesmo que a progressão da miopia é maior no inverno – quando se passa mais tempo no interior e há menos luminosidade – do que no verão. Da mesma forma, é mais prevalente em meios urbanos, relativamente a meios rurais. “Por isso, recomenda-se que as crianças passem pelo menos duas horas por dia ao ar livre”, conclui a oftalmologista.
Segundo: o tempo excessivo em tarefas de perto. Tem havido resultados contraditórios nos estudos que pretendem avaliar uma relação entre as atividades de ver ao perto, como ler e jogar num smartphone, e o desenvolvimento ou agravamento da miopia. Os estudos mais recentes têm-se focado na distância e no tempo contínuo do trabalho de perto. “Sendo que uma menor distância de trabalho (menos de 30 centímetros) e a ausência de realização de pausas (trabalho contínuo de perto superior a 30 minutos) parecem ser fatores de risco para o desenvolvimento e progressão da miopia.”
A oftalmologista salienta que são necessários mais estudos longitudinais que quantifiquem o impacto destas tarefas e permitam dar recomendações mais específicas. No entanto, há um conselho simples que deve ser seguido: a regra dos 20-20-20, durante a realização de tarefas ao perto. “A cada 20 minutos, olhar algo que fique à distância de 20 pés (6 metros), durante 20 segundos”, clarifica.
Quanto aos benefícios do tempo ao ar livre, não há dúvidas: é um fator que previne o desenvolvimento da miopia e ajuda a travar a progressão das crianças que já a têm. “Mesmo em crianças com ambos os pais míopes ou expostas a uma grande intensidade de trabalho de perto”, diz Joana Portelinha. “Quanto maior o número de horas passado ao ar livre, maior o efeito benéfico.”
Um aviso vindo da Ásia
Singapura, uma pequena cidade-estado no sudeste Asiático, tem uma alcunha curiosa: ‘capital mundial da miopia’. Atualmente, 80% dos jovens adultos são míopes, razão pela qual muita investigação é produzida sobre o tema, sobretudo no sentido de minimizar o problema, que é muito prevalente em países asiáticos. Carla Lança, atualmente professora da Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, foi investigadora na área da miopia no Singapore Eye Research Institute, até 2021. Refere que “as crianças asiáticas apresentam uma das mais altas prevalências de miopia, no entanto, os estudos epidemiológicos mostram uma prevalência crescente em populações europeias”. Licenciada em Ortóptica e doutorada em Saúde Pública, a professora e investigadora aponta duas mudanças sociais que podem ser associadas ao aumento galopante da miopia: a educação e a urbanização.
“A pressão do sistema educacional, com o aumento do tempo passado a ler e a escrever, o tempo gasto em dispositivos eletrónicos e o planeamento urbano estão entre os fatores que contribuem para diminuir o tempo que as crianças passam ao ar livre. É por isso que em sociedades desenvolvidas a miopia aparece durante a infância, particularmente durante os primeiros anos de escolaridade”, sustenta. “É um paradoxo interessante, pois se por um lado a alfabetização é essencial para o bem-estar das crianças, uma excessiva pressão educacional, com exclusão de outros aspetos da vida, como passar tempo ao ar livre, pode ser prejudicial à saúde ocular.”
Mesmo o mais bem documentado fator de risco para a miopia – ter pais míopes – pode ser olhado de outra perspetiva, não genética, mas comportamental. “Embora possa ser explicado pelos pais transmitirem variantes genéticas que predispõem os seus filhos à miopia, existem outros fatores que podem ter maior preponderância: é provável que os pais com miopia sejam, em média, mais instruídos, tendo mais anos de escolaridade (…) transmitindo aos filhos um estilo de vida que é facilitador de atividades como a leitura, (…) aulas extra e explicações em ambientes indoor, reduzindo assim o tempo disponível para brincar ao ar livre e estar expostas à luz solar”, assinala Carla Lança.
A investigadora acredita que os pais têm um papel importante no incentivo das atividades fora de portas, mas lembra também que “muitos pais só estão em contacto com as crianças no final do dia de trabalho, quando já não existe luz solar”, razão pela qual só podem fazer este tipo de programas com os filhos ao fim de semana. A escola está, por isso, nestes países, a ter um papel importante no que toca a pôr as crianças ao ar livre. “A implantação de programas outdoor nas escolas, incentivando as crianças a passar duas horas por dia ao ar livre, torna-se fundamental e a sua eficácia foi demonstrada num estudo realizado em Taiwan: após a intervenção, verificou-se uma melhoria das acuidades visuais das crianças envolvidas no programa.”
Não há que dramatizar, mas o problema, entende a investigadora, também não deve ser desvalorizado, com simplificações como ‘se é míope, basta usar óculos’. Felizmente, há opções de tratamento e correção da miopia (ver caixa), mas também há complicações associadas que podem desenvolver-se mais tarde, durante a vida adulta.
“A miopia ainda carrega o risco de cegueira secundária devido a complicações como o glaucoma, a maculopatia miópica e o descolamento de retina”, recorda. Demasiado tempo dentro de portas, não tem apenas um impacto negativo na saúde e bem-estar em geral, também condiciona o bom desenvolvimento da visão dos mais novos.
Fonte: Notícias Magazine