quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Trabalhar com um cromossoma a mais

Daniel, Henri, Inês, Luís e Noemi são cinco dos cerca de 15 mil portugueses com Trissomia 21. E são cinco exemplos de como a alteração genética com que nasceram não lhes roubou uma vida profissional.

A banca de trabalho de Daniel Rodrigues está imaculada. A louça chega do restaurante, ele passa-a por água, mete-a na máquina de lavar e não deixa acumular tarefas. "Tudo o que me pedem, eu faço logo. É uma segunda família que eu tenho aqui", garante o ajudante de cozinha, cuja alegria não deixa ninguém indiferente.

Daniel tem 26 anos e chegou ao Hotel Axis Porto, há cerca de dois anos, para fazer um estágio, no âmbito do projeto europeu "Valuable", criado para promover a inclusão profissional de trabalhadores com Perturbação do Desenvolvimento Intelectual (PDI). Há um ano, assinou contrato. Começou na copa, na limpeza de louças, e daí passou para a cafetaria, para fazer reposição nos pequenos-almoços. "Tem vindo sempre a evoluir. Até já faz bolachas, descasca frutas, prepara sobremesas, faz receção de mercadorias e o registo das temperaturas dos equipamentos de frio, por exemplo. Tudo o que outra pessoa faria nas funções em questão", atesta Simão Sá, diretor do hotel. Facto revelado: "O número de reclamações do pequeno-almoço baixou bastante".

Daniel é um dos cerca de 15 mil portugueses com Trissomia 21 (também designada Síndrome de Down). A alteração genética com que nasceu, que faz com que tenha três cromossomas 21, em vez de dois, pode diferenciá-lo na fisionomia e em algumas capacidades cognitivas, mas nem por isso o torna cidadão e trabalhador menos válido. Trabalha a sério, faz descontos, recebe um ordenado no final do mês. É feliz.

No Axis Porto, Daniel não é a única pessoa com Trissomia 21. Noemi Costa, também de 26 anos, é camareira. Está em estágio profissional, mas Simão Sá assegura que "a ideia é que fique com contrato, logo a seguir". "A verdade é que, inicialmente, não tínhamos ideia de contratar. Mas acabámos por sentir que eles os dois eram mais-valias para nós", recorda o diretor.

"As equipas funcionam melhor"

"Tiro a roupa suja, ponho lençóis lavados, reponho coisas no bar, aspiro e limpo o pó. Gosto do que faço", afirma Noemi, com uma inicial timidez que logo depois não a impede de destravar a língua e de ir dizendo, à medida que se lembra, que também já fez trabalhos como modelo, estagiou em Itália e pratica natação. Noemi conhece de cor o piso 4 do hotel e os 19 quartos que arruma, com dedicação e afinco, diariamente, na companhia de Mena Neves. Para Noemi, a colega de trabalho "é linda". "Mimi, e o que é que nós somos?", questiona Mena. "Uma equipa fantástica", atira Noemi, qual grito de guerra. E Simão Sá não deixa de sorrir ao ver a cumplicidade criada ali, no hotel que gere: "Quando o Daniel e a Noemi integraram as equipas, elas passaram, efetivamente, a funcionar melhor. As pessoas tinham muitas competências técnicas, mas faltava a parte emocional do trabalho em equipa".

Laura Bastos, psicóloga e técnica social da Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21, instituição que integra o projeto "Valuable", confirma: "É um facto comprovado que estas pessoas melhoram o funcionamento das equipas de trabalho, desde logo porque passa a existir maior tolerância. Além disso, são muito dedicadas e minuciosas. Se as ensinam a fazer uma tarefa de determinada forma, vão sempre fazê-la com perfeição. Quando estão empregadas, passam a ver o trabalho como a sua vida".

Mas, para que as coisas corram bem, salienta a técnica, é imperativo "haver acompanhamento especializado" e que os jovens em questão não sejam "largados nas empresas". "No nosso projeto, conversamos com os empregadores antes e damos-lhe dicas sobre como, por exemplo, dividir as tarefas em micro tarefas, para que as pessoas com PDI as aprendam melhor. Na primeira semana, acompanhamos os jovens todos os dias. Depois, espaçamos as visitas, para que vão ganhando autonomia. Mas nunca cortamos o vínculo", explica a técnica.

"Olham-me de lado"

O acompanhamento personalizado é também a imagem de marca do programa de profissionalização de outra associação, a Pais 21 - Down Portugal. Foi através desse projeto que o sorridente Henri Turquin, de 29 anos, chegou à Starbucks, no El Corte Inglés de Lisboa, onde está empregado há um ano. É ali que Henri levanta e limpa mesas, trata dos lixos e das louças, entre outras tarefas. "Gosto daquilo que faço. Nunca tive uma equipa tão fantástica a trabalhar comigo", confessa Henri. Ele, que leva uma vida praticamente autónoma e que vai de Metro para o trabalho. "Ando de transportes públicos sozinho desde os 16 anos. A primeira vez perdi-me, mas depois consegui chegar onde queria", recorda, a rir. "É um cromo dos transportes públicos. Safa-se melhor do que eu", adiciona a mãe, Carmo Teixeira.

Nos tempos livres, Henri frequenta a companhia de teatro da Pais 21, pratica natação e namora com a Pilar há dois anos, altura em que os olhos, já de si iluminados, passaram a brilhar ainda mais. Tanto que até já fala em casamento. Na Starbucks, ganhou uma nova vida, depois de ter trabalhado como tratador de cavalos, sem remuneração, durante seis anos. Agora, ao final do mês, é pago pelo que faz. E aproveita para praticar o seu francês, já de si fluente - ou não fosse filho de pai francês -, com os turistas. Na normalidade dos seus dias, só tem um lamento: "Às vezes, há alguns clientes que olham para mim de lado, mas eu não ligo".

Carmo Teixeira, também vice-presidente da Pais 21, sublinha que "nem todos os jovens com Trissomia 21 têm capacidades para trabalhar, pois alguns têm outras patologias associadas". No entanto, frisa que há quem tenha capacidades, só que "os pais cortam-lhes as asas, com medo". "Sempre lutei para que o Henri fosse autónomo. Claro que fiquei de coração nas mãos das primeiras vezes que foi sozinho para algum lado, mas não podemos protegê-los de tudo. Temos é que lhes dar ferramentas e, sempre que possível, apoio técnico. E educá-los. Educar não custa dinheiro", constata.

Os empregadores do país ainda abrem poucas portas a quem tem Trissomia 21, criticam as associações. Mas teme-se que a lei que estabelece um sistema de quotas de emprego para pessoas com deficiência - que já está em vigor, mas em período de transição, até 2023 - faça aumentar as vagas pelos motivos errados. "Não podem empregar estas pessoas sem mais nem menos. É sempre necessário acompanhamento e um tutor interno, por exemplo, porque o maior problema destes jovens é a nível comportamental", adverte Laura Bastos.

Das poucas pessoas com Trissomia 21 que se encontram empregadas legalmente, a maior parte encontrou emprego com a ajuda de associações. Não foi o caso, contudo, de Inês Gomes, 22 anos, natural de Ílhavo. Independente e senhora do seu nariz, Inês é um exemplo de determinação, muito à conta dos pais, que sempre lutaram para que estivesse inserida na sociedade. Inês conta-nos, com um discurso fluente, como cumpriu a escolaridade obrigatória até ao 12.º ano e como é ser, hoje, funcionária dos quadros da Câmara de Ílhavo, onde exerce funções de assistente no Museu Marítimo. "Antes, estive na biblioteca [através de um Contrato Emprego-Inserção]. Foi quando recebi um ordenado pela primeira vez e fiquei espantada por receber. Passei a sentir-me igual a toda a gente", destaca a jovem, orgulhosa. É que, agora, pode comprar com o seu dinheiro aquilo de que mais gosta: livros e canetas. E admite outro prazer: "Sempre que recebo o salário, faço questão de pagar um jantar aos meus pais".

No museu, Inês faz vigilância e acompanha os visitantes do espaço. Tira dúvidas sobre a história da pesca do bacalhau quando a interpelam - "Uma colega ensinou-me e eu decorei as coisas" - e está sempre atenta, pois "é preciso ver se as pessoas têm bilhete, avisá-las para não tirarem fotografias com flash e ver se mexem em alguma coisa que não podem". E quando está a terminar de contar a sua rotina, brilham-lhe ainda mais os olhos, com uma quase vaidade sincera, quando revela: "Sou eu que apago as luzes do museu, ao final da tarde. Fui promovida nisso".

"O importante são as pessoas"

É no Hospital de Cascais que encontramos Luís Filipe Farrolas, auxiliar administrativo, nitidamente orgulhoso da farda que enverga. Tem 26 anos e foi também através da Pais 21 que ali chegou, depois de cinco anos a trabalhar, sem remuneração, numa padaria. "Saía de casa às sete de manhã e chegava às 20 horas. Foi bom para a autonomia dele, mas achei que já merecia um bocadinho mais de regalias. Agora, recebe o seu ordenado, tem o seu dinheiro e paga as suas contas, mesmo tendo eu que o ajudar, porque ele não tem muita noção do dinheiro", explica Fernanda Basílio, mãe de Luís.

Acarinhado por todos no hospital, Luís é exímio no trabalho como administrativo e basta vê-lo a trabalhar uns segundos para perceber o empenho que coloca, diariamente, nas funções que lhe foram atribuídas. "Distribuo o correio, tiro fotocópias, plastifico documentos, ajudo na copa e arrumo as salas de reuniões", especifica. Fernanda bem diz que Luís se "adapta às circunstâncias". Só que, mesmo sabendo disso, o coração de mãe fê-la temer, ainda o filho era criança, como é que ele seria aceite na sociedade. "Duvidava que o aceitassem", assume, transparente. Afinal, aceitaram. Ou não fosse Luís especial. Não porque tem Trissomia 21, não porque tem uma fisionomia diferente, mas porque é capaz de dar, numa constatação que esmaga, a mais simples e verdadeira das lições a quem o ouve: "Com ou sem Trissomia, o importante são as pessoas".

Fonte: JN

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