quinta-feira, 28 de novembro de 2019

2018: cimentar o compromisso com a Educação Inclusiva

O Conselho Nacional de Educação acabou de lançar o documento "Estado da Educação 2018" (edição de 2019) que configura uma organização distinta da de relatórios anteriores, estruturada em três partes, todas em torno da ideia de mudança na Educação. Deste documento, retirou-se e republica-se abaixo o texto "2018: cimentar o compromisso com a Educação Inclusiva", da autoria de David Rodrigues, conselheiro deste organismo, patente nas páginas 290-295.

Introdução 

A ideia de que os alunos com dificuldades e/ou condições de deficiência deveriam ser educados conjuntamente com os seus pares é uma ideia bem consistente e consolidada em Portugal. Ainda no tempo da Ditadura se iniciaram as primeiras “experiências” de integração de alunos com deficiências em escolas do ensino regular. A Revolução, de 25 de abril de 1974, proporcionou um terreno fértil para se pensar e levar à prática inovações no campo pedagógico. Entre estas inovações e mudanças inspiradas pelo ambiente de renovação, a integração de alunos com deficiências e dificuldades assistiu a um período de florescimento em que, de forma acelerada, se verificaram significativos progressos. 

Quando em junho de 1994 foi proclamada a Declaração de Salamanca pela UNESCO, Portugal foi um dos signatários deste documento e, pode-se afirmar, que os valores e as práticas prescritas nesta Declaração tinham tido já, em grande parte, a sua consagração na legislação que tinha sido publicada em Portugal três anos antes (no Decreto-Lei nº 319/91, de 23 de agosto). A Declaração de Salamanca veio potenciar e encorajar em Portugal a continuação de reformas necessárias para prosseguir estas políticas a um nível diferente: o da inclusão. A Declaração de Salamanca consagrava as escolas regulares como os ambientes mais indicados para a educação de todos os alunos, incluindo alunos com condições de deficiência. Para que esta “universalidade” de acesso e adequação fosse possível, eram preconizadas alterações nas estruturas educativas. Assim, não seria só o aluno que arcaria com o ónus de ter de se adaptar às regras e funcionamento da escola, mas a escola teria também a obrigação de se modificar de forma a poder prover as respostas educativas que cada aluno precisava e tinha direito. 

Em 2008 foi publicado o Decreto-Lei nº 3/2008, de 7 de janeiro, que explicitamente afirma no seu preâmbulo que “Um aspeto determinante dessa qualidade é a promoção de uma escola democrática e inclusiva, orientada para o sucesso educativo de todas as crianças e jovens. Nessa medida importa planear um sistema de educação flexível, pautado por uma política global integrada, que permita responder à diversidade de características e necessidades de todos os alunos que implicam a inclusão das crianças e jovens com necessidades educativas especiais no quadro de uma política de qualidade orientada para o sucesso educativo de todos os alunos.” Esta lei permitiu às escolas encontrar um enquadramento para os alunos com necessidades educativas especiais (NEE). Este enquadramento era maioritariamente feito através do apoio à frequência destes alunos no contexto da sala de aula e, para casos considerados mais complexos, o estabelecimento de “Unidades de Apoio” e de “Currículos Específicos Individuais”. Era também prestada uma atenção particular ao processo de transição da escola para outros contextos, através dos Planos Individuais de Transição. Consideramos que esta legislação, juntamente com outras medidas legislativas (entre as quais a criação de grupos de recrutamento para Professores de Educação Especial, em 2006) permitiu um considerável avanço nos processos de inclusão e consagrou, de forma inequívoca, que a escola regular, ao recrutar múltiplas possibilidades de resposta podia efetivamente cumprir o desiderato de Salamanca tornando-se o ambiente mais adequado para a educação de todos os alunos. 

O XXI Governo Constitucional encarou como uma prioridade a reforma desta lei. Na verdade, o impulso para a sua modificação tinha já sido dado pelo Governo anterior que criou um grupo de trabalho para estudar as reformas que eram sentidas como necessárias na lei. Várias reflexões apontavam para a necessidade desta reforma, nomeadamente o estatuto dos alunos com Currículos Específicos Individuais e a certificação dos estudos dos alunos que usufruíam de medidas de Educação Especial. 

A 5 de julho de 2017, o Governo colocou em discussão pública um texto que serviria de base para a redação de uma futura lei. Esta discussão pública foi inicialmente programada para um mês, mas por pedido de diferentes entidades e, sobretudo, considerando o período de férias nas escolas, foi alargada para três meses. Este texto foi abundantemente discutido em todo o país, tanto em iniciativas do próprio Governo como de associações profissionais, sindicatos, agrupamentos de escolas e muitas instituições da sociedade civil. 

No âmbito desta consulta pública foi pedido pelo Governo um parecer ao Conselho Nacional de Educação, parecer este que foi elaborado e aprovado em sessão plenária do Conselho a 4 de abril de 2018. Este parecer, tal como os outros pareceres do Conselho, é do domínio público. Passado um ano sobre a sua colocação em discussão pública – a 6 de julho de 2018 – foi publicado o Decreto-Lei nº 54/2018 – Regime Jurídico da Educação Inclusiva no âmbito da Educação Pré-Escolar e do Ensino Básico e Secundário – entrando imediatamente em vigor

O que traz de novo o Decreto-Lei nº 54/2018, de 6 de julho 

O Decreto-Lei nº 54/2018, de 6 de julho, é um diploma que assume um caráter bem distinto da legislação que veio substituir. São notórias as influências de documentos internacionais, bem como as referências à reflexão sobre a já dilatada experiência disponível no país sobre a Educação de alunos com deficiências ou dificuldades em meios regulares. Os documentos internacionais (nomeadamente os emitidos pela UNESCO, pela OCDE, pela OEI, etc.) apontavam há muito para a necessidade de esbater as fronteiras artificiais que eram estabelecidas entre alunos “com NEE” e “sem NEE”, entre a “Educação Especial” e a “Educação Regular”. Encorajava-se a emergência de modelos pedagógicos flexíveis permitindo que a aprendizagem e a educação de todos os alunos se pudesse passar em conjunto, valorizando as suas capacidades e minimizando as suas dificuldades. Procurava-se acabar com a barreira entre os “bons” e os “maus” alunos, realçando que a adoção de modelos flexíveis de currículo poderia beneficiar todos os alunos para progredirem segundo as suas capacidades e interesses. A experiência nacional apontava também para a necessidade de não tornar as “Unidades” em “escolas especiais” dentro da escola regular e dar maior visibilidade e importância às experiências pedagógicas que realçavam a importância de encarar a educação de todos os alunos sem uma separação – e por vezes mesmo hipertrofia – da chamada Educação Especial. 

Apontaríamos sucintamente quatro aspetos que se destacam no Decreto-Lei nº 54/2018, de 6 de julho 

Antes de mais o próprio âmbito. A designação do diploma é de “Regime Jurídico da Educação Inclusiva”, o que o distingue claramente das legislações anteriores que consideravam a “Educação Especial”. Considera-se assim que não existem alunos de “Educação Especial” e alunos de “Educação Regular”, sendo que todos os alunos são considerados como tendo necessidades diferentes, mas todos pertencentes à mesma escola. No artigo 3º do Decreto-Lei são explicitamente citados como princípios orientadores a: a) Educabilidade universal, isto é, a assunção de que todas as crianças e alunos têm capacidade de aprendizagem e de desenvolvimento educativo; b) Equidade, a garantia de que todas as crianças e alunos têm acesso aos apoios necessários de modo a concretizar o seu potencial de aprendizagem e desenvolvimento; c) Inclusão, o direito de todas as crianças e alunos ao acesso e participação, de modo pleno (…). Seria o que poderíamos chamar uma educação para todos e com todos. Surgiram algumas críticas sobre a incoerência desta posição dado que, ainda que não houvesse formalmente “Educação Especial”, continuavam a ser citados os “Professores de Educação Especial”. Esta é certamente uma questão que precisaria de mais debate, mas algumas posições ao nível internacional (cf: Lani Florian no International Journal of Inclusive Education, 2017) chamam a atenção para o facto de o processo de inclusão ser muito mais lato na escola, não abrangendo só os alunos com condições de dificuldades ou deficiência. Estes alunos poderiam ser especificamente apoiados por professores com a designação de “Professores de Educação Especial” ou de “Necessidades Educativas Especiais”. 

Em segundo lugar, este diploma propõe uma pirâmide de serviços que inclui medidas universais, medidas seletivas e medidas adicionais. No número 1 do artº 6º aponta-se que: as medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão têm como finalidade a adequação às necessidades e potencialidades de cada aluno e a garantia das condições da sua realização plena, promovendo a equidade e a igualdade de oportunidades no acesso ao currículo, na frequência e na progressão ao longo da escolaridade obrigatória. Os alunos com dificuldades devem usufruir das medidas que são necessárias – e de complexidade crescente – em função das suas dificuldades. As medidas universais são recrutadas fundamentalmente entre as respostas diversificadas e flexíveis que estão no âmbito da escola, enquanto que as medidas seletivas e adicionais são somente acionadas quando a especificidade e complexidade das respostas exige um nível mais aprofundado e personalizado de provisão. É de prever que a grande maioria de medidas implementadas no âmbito deste Decreto-Lei sejam as medidas universais. Numa pesquisa realizada por nós, em dois agrupamentos, encontramos que, de todos os alunos que precisavam de apoio, existiam mais de 90% de alunos com medidas universais. 

Em terceiro lugar esta lei propõe a criação de “Equipas Multidisciplinares de Apoio à Educação Inclusiva” (EMAEI). Estas equipas são efetivamente o órgão de coordenação de todas as iniciativas e trabalho inclusivo na escola. Compete a estas equipas – maioritariamente constituídas por elementos da escola – caracterizar as dificuldades que os alunos possam apresentar, delinear as respostas necessárias e acompanhar e apoiar a execução destes planos. O Decreto-Lei atribui a estas equipas as seguintes competências: a) Sensibilizar a comunidade educativa para a educação inclusiva; b) Propor as medidas de suporte à aprendizagem a mobilizar; c) Acompanhar e monitorizar a aplicação de medidas de suporte à aprendizagem; d) Prestar aconselhamento aos docentes na implementação de práticas pedagógicas inclusivas; e) Elaborar o relatório técnico-pedagógico previsto no artigo 21º e, se aplicável, o programa educativo individual e o plano individual de transição previstos, respetivamente, nos artigos 24º e 25º; f) Acompanhar o funcionamento do centro de apoio à aprendizagem. Ainda que de forma muito inicial, é possível desde já encontrar diferenças muito significativas no funcionamento destas equipas. Deste funcionamento depende – e decisivamente – o sucesso dos esforços de Inclusão na escola, dado que pela sua constituição e pelas suas atribuições estas EMAEI são um verdadeiro centro nevrálgico de todos os processos que podem conduzir à participação e sucesso de alunos com dificuldades ou deficiências. 

Em quarto lugar, o Decreto-Lei considera a criação de “Centros de Apoio à Aprendizagem” (CAA). Só mais tempo de experiência e reflexão poderá aquilatar da efetiva pertinência destes Centros que, na redação do diploma, têm as seguintes atribuições: a) Apoiar a inclusão das crianças e jovens no grupo/turma e nas rotinas e atividades da escola, designadamente através da diversificação de estratégias de acesso ao currículo; b) Promover e apoiar o acesso à formação, ao ensino superior e à integração na vida pós-escolar; c) Promover e apoiar o acesso ao lazer, à participação social e à vida autónoma. Na letra da lei podemos encontrar uma grande liberdade para a mobilização dos meios que podem integrar estes CAA. Existem escolas que consideram que toda a escola, isto é, todos os meios da escola podem e devem ser mobilizados no âmbito dos CAA. Numa escola da zona do Porto foi-nos dito que a biblioteca e o refeitório são partes deste CAA, dado que é em toda a escola que se processam as aprendizagens significativas para a vida dos estudantes. Outras escolas há que mantiveram os modelos de “Unidades” e que, mesmo tendo eventualmente alargado um pouco o seu âmbito, funcionam como uma estrutura de atendimento e apoio específico destinada aos alunos com dificuldades mais complexas. 

Desafios 

É certamente precoce a fixação de áreas, que constituem desafios à organização da escola e da pedagogia que esta legislação implica, no próprio ano em que a legislação é publicada. Para melhor poder prever o impacto que se sente e que se irá desenvolver nas escolas, realizámos entrevistas a dois diretores de escolas (DE1 e DE2) e a dois coordenadores de EMAEI (EM1 e EM2). Ir-nos-emos servir de transcrições destas opiniões “de terreno” para ilustrar os desafios que esta legislação implica. 

Encontramos cinco áreas em que os desafios parecem ser mais relevantes na opinião dos entrevistados: 

1. As atitudes dos professores face a uma escola que não estabelece mais diferença entre os alunos de “Educação Especial” e torna todos os professores – e toda a escola – responsáveis pela educação de todos os alunos, é vista como uma dificuldade. “Os professores dizem que não sabem o que fazer com os alunos, porque não tiveram formação para isso. Se os alunos forem à sala de aula, eles não têm disponibilidade nem conhecimento para trabalhar com eles” (DE1). “Há professores que só aceitam alunos na sala se eles vieram acompanhados de alguém, ou professores de educação especial ou uma auxiliar” (EM2). 

Por outro lado, há escolas em que a EMAEI decidiu empreender trabalho com os professores que vão receber alunos que tenham sido identificados para receber medidas de apoio: “Sensibilizamos e apoiamos alguns professores sobretudo para que eles possam encontrar trabalhos que os alunos possam fazer na aula” (EM1). “Felizmente há professores que estão mais habituados a trabalhar de forma mais personalizada e isso facilita e muito a participação de alunos com dificuldades na aula. Serve mesmo de exemplo e inspiração para os colegas” (EM1). Encontramos assim, uma preocupação generalizada com a capacidade de mudança da escola e dos professores, mas também experiências que procuram romper com algum fatalismo conservador da escola e dos professores. 

2. Possibilidade de realizar trabalho pedagógico diversificado. A inclusão de alunos nas atividades da escola implica necessariamente a diversificação de atividades. Entender o trabalho pedagógico como uma tarefa homogénea que tem por destinatários grupos homogéneos é um forte obstáculo à inclusão. Em várias escolas o corpo docente mostra dificuldades em mudar formas de ensinar e suscitar novas formas de aprender. “O problema é que os professores têm dificuldade em mudar. Mas a verdade também é que existe pouco apoio cada vez que alguém quer fazer algo de diferente. Por vezes há até uma atitude de desincentivo à inovação” (DE2). “Temos procurado que as mudanças na sala de aula não sejam só para os alunos que são identificados como tendo dificuldades, mas que sejam para todos os alunos. Quando isto acontece todos os alunos lucram” (DE2). “Falta formação que ajude os professores a ensinar grupos heterogéneos. Muitas vezes eles nem sabem como se trabalha com grupos e para que é que isso serve”(EM1). 

Torna-se claro que há muito trabalho a fazer para que a interação pedagógica seja feita de forma a chegar e a ser útil a todos os alunos sem deixar nenhum para trás. Ressalta-se a importância que tem a formação e a criação de modelos cooperativos que apoiem a inovação e permitam sustentar um trabalho pedagógico diversificado. 

3. Apoios exteriores à escola. A criação de Centros de Recursos para a Inclusão (CRI) pelo Decreto-Lei nº 3/2008, de 7 de janeiro, teve por objetivo providenciar apoio de técnicos exteriores à escola, mas essenciais para a habilitação e educação de alunos com condições de deficiência ou dificuldade. Os CRI ficaram responsáveis por providenciar os técnicos necessários para que áreas tão importantes como as terapias pudessem ser enquadradas num contexto educacional. Há algum tempo que se sente a necessidade de rever e re-conceptualizar esta parceria entre os CRI e as escolas. “Estivemos uma parte do ano sem CRI e quando eles vieram tinham um número de horas para nos dar muito inferior àquele que nós achávamos que era essencial”. “Não existe um modelo que permita articular o trabalho dos técnicos do CRI com a escola. É como se fossem entidades completamente distintas” (EM1). “Os técnicos dos CRI são insuficientes e na verdade têm um impacto diminuto na educação das nossas crianças. Para além disso são muito mal pagos, o que não ajuda à sua motivação” (EM2). “O que preferíamos era que a escola pudesse contratar ela mesma os técnicos de que precisa, mas temos encontrado muitos obstáculos” (DE2). 

Vemos que a provisão dos meios que as escolas (e as EMAEI) consideram essenciais para apoiar a educação de alunos com dificuldades ou deficiências é, regra geral, muito insuficiente: chega tarde e em quantidade bem inferior ao que tinha sido determinado. É certamente um desafio a enfrentar tornar estes apoios mais efetivos e pensar mesmo em novos modelos de fazer chegar de forma mais expedita e adequada estes meios às escolas. 

4. Um outro desafio é a formação contínua. Foram levantados vários temas a ser tratados: a) o âmbito da formação; b) a quantidade da formação, c) os conteúdos da formação e d) certificação da formação. Várias opiniões: relativamente à alínea a) “A formação devia ser para toda a escola. Muitos assistentes operacionais que lidam mais tempo com os alunos com dificuldades, não têm formação nenhuma e deviam ter” (EM1). “Precisávamos que algumas famílias fossem mais comprometidas, de forma a saberem o que estamos a fazer e porquê” (DE1); em relação à alínea b): “Precisamos de mais formação. Muitos centros de formação não oferecem cursos sobre inclusão e deviam, porque todos lidamos com ela” (EM1). “Não sei o que se passa, mas há pessoas que já fizeram três e mais cursos sobre o “54” e dizem que ainda não se sentem preparadas” (EM2); sobre a alínea c) “Muitos conteúdos de formação são muito teóricos. Já que a formação é aqui na escola, então que fosse sobre casos da escola” (EM1). “Era preciso que a formação trabalhasse com as pessoas, de forma a elas conseguirem construir materiais para ajudar a flexibilização do currículo e dos conteúdos” (EM1) e sobre a alínea d) “Não se entende porque é que as ações de formação sobre inclusão não são consideradas para todos os docentes. Se forem só consideradas para os Professores de Educação Especial está a passar-se a mensagem que a Inclusão é só da responsabilidade deles” (DE2). 

A melhoria destes aspetos da formação parece configurar um importante desafio no sentido em que é reconhecida a sua importância para a mudança de atitudes e práticas. Trata-se talvez de reforçar o financiamento e direcionar o esforço que tem sido feito na formação contínua para a tornar mais eficaz. 

5. Um último desafio que permanece é a avaliação. A avaliação é frequentemente vista como o grande obstáculo à adoção de práticas inclusivas. Encontra-se ainda muito presente a ideia de que para haver justiça na avaliação o processo deve ser exatamente igual para todos, para permitir que sobressaiam as diferenças de mérito entre os alunos. Esta preocupação com a avaliação é comum e chega até a influenciar as práticas e os valores na educação pré-escolar quando ainda se encontram bem longe as provas aferidas e nacionais de avaliação. O facto do Decreto-Lei nº 54/2018, de 6 de julho, implicar a certificação de todos os alunos é um convite a pensar de novo qual a finalidade e quais os modelos de avaliação que se podem usar. Encontramos já, em muitas escolas, modelos de avaliação com referência a critério e avaliação formativa em detrimento dos tradicionais modelos de avaliação sumativa e normativa. Em termos metodológicos encontramos escolas que têm procurado realizar avaliações com modelos diversos (Ex: portfólios, avaliações orais, avaliações grupais, etc.) que têm permitido “desdramatizar” a avaliação que tantas vezes é confundida com classificação e vista como uma estratégia de motivação, de medo ou mesmo de punição. Algumas opiniões: “Logo que se fala em alunos com NEE a primeira pergunta que os professores fazem é como é que os vão avaliar”(DE1), “Já há alguns anos que tivemos um grupo de professores que trabalhou em avaliação através de portfolios e resultou muito bem. O problema é que no ano seguinte já não se fez nada disso” (DE2). “Propomos aos professores que trabalhem com os colegas de forma a encontrar a melhor forma de avaliar o que os alunos efetivamente aprenderam”(EM1). “A avaliação que nos interessa é a que nos ajuda a melhorar os processos de aprendizagem, por isso é mais importante a avaliação que se faz ao longo do ano do que aquela que só se faz no fim. Muita da avaliação é inútil: por exemplo nunca sabemos o que a avaliação permitiu saber sobre o aluno no ano anterior” (EM2). 

A Inclusão como um “work in progress” 

Certamente um dos problemas maiores com que se defronta a Inclusão é a dificuldade de conseguir conjugar e harmonizar todos os meios, todas as competências e oportunidades que se consideram essenciais num determinado momento para o sucesso dos alunos. A Inclusão continua ainda muito conotada com modelos “clínicos” de intervenção. Modelos que advogavam que conhecendo o “diagnóstico” ou a caracterização de cada caso se poderia descortinar imediata e “cientificamente” os conteúdos, as estratégias, as formas de interação e até os gostos de cada aluno. Não seria prudente afirmar que o diagnóstico de uma determinada condição é inútil ou, melhor, que é sempre inútil. Na verdade, existem situações (daremos como exemplo as manifestações de certos tipos de doença mental) em que o conhecimento do diagnóstico pode ajudar e potenciar a eficácia dos modelos de intervenção educativa. Mas não são estes os casos mais prevalentes. A desvalorização do diagnóstico que podemos encontrar no preâmbulo do Decreto-Lei nº 54/2018, de 6 de julho (“afasta-se a conceção de que é necessário categorizar para intervir. Procura-se garantir que o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória seja atingido por todos, ainda que através de percursos diferenciados, os quais permitem a cada um progredir no currículo com vista ao seu sucesso educativo”) realça que a avaliação mais importante é aquela que todo o corpo docente, com a ajuda de técnicos e da família, deve realizar de forma a identificar os pontos de apoio em que se deve estribar a aprendizagem e a educação. Precisamos por isso de fortalecer o conhecimento, a autonomia e a competência pedagógica, porque é neste terreno que a educação se joga, se perde ou se ganha. Uma outra questão que encoraja as perspetivas clínicas em Educação é o facto de se desenrolarem num quadro de maior previsibilidade. Muitos dos modelos de intervenção, por exemplo, provenientes da neuropsicologia, apontam intervenções específicas para um determinado caso. Estas indicações poderão, sem dúvida, ter a sua utilidade e deverão, sempre que possível, ser tomadas em conta, mas a questão é que os alunos não são educados sozinhos, nem com um só professor. Em suma, precisamos de reforçar uma caracterização fundamentalmente pedagógica que, não podendo prescindir de toda uma informação, aconselhamento e cooperação, por parte de outros técnicos, deve ter como finalidade principal desembocar em práticas pedagógicas adequadas, mas que não esqueçam que o aluno não é um caso isolado, mas um sujeito em contexto. A intervenção educativa desenvolve-se num quadro sistematicamente aproximativo, sintetizado na frase do pedagogo Philipe Perrenoud, “Educar: decidir na dúvida e agir na incerteza”. 

Assim, a Inclusão é um “work in progress”, quer dizer um trabalho que raramente possui um quadro claro sobre o que é “correto” fazer ou não fazer, em que não se conhece e prevê o processo. Por este motivo é tão importante que este trabalho seja sempre desenvolvido com a máxima comunicação e cooperação dentro da escola. A Inclusão não é um fenómeno isolado, delimitado ou pessoalizado. Não é isolado porque não pode existir se só estiverem presentes alunos com condições de deficiência. Hoje em dia, é muito claro que a Inclusão é um valor transversal da escola e que se entrelaça com os valores da participação, dos Direitos Humanos, da equidade e da cidadania. Pensar em Inclusão só quando existem alunos com deficiência é uma grande pobreza, porque retira deste constructo as questões de etnia, de género, de identidade sexual, de nível socioeconómico ou sociocultural, que são absolutamente essenciais para entender uma sociedade complexa. A inclusão não é também um fenómeno delimitado, no sentido em que não tem um lugar. A Inclusão não são os professores de Educação Especial, não são as EMAEI, não são os CAA, não são os CRI, a inclusão é toda a escola e toda a comunidade em que ela existe. Delimitar a inclusão a pessoas ou serviços é um empobrecimento e uma desvalorização da riqueza da inclusão. Por fim, a Inclusão não pode ser pessoalizada. Todos os membros de uma escola têm responsabilidade de promover e defender os valores inclusivos. Encontramos até, e muitas vezes, protagonistas improváveis. Daremos um exemplo, que se passou numa escola na zona de Aveiro: um menino cigano levantou-se em defesa de um menino que não era cigano, verberando uma situação em que ele considerou que o seu colega tinha sido vítima de bullying. É o caso de um “protagonista improvável”, em que uma criança de quem se esperaria uma posição de indiferença ou defesa se dá à coragem de defender um colega seu. A Inclusão não é pois mais de uma pessoa ou de outra, é um património a ser defendido e promovido por todos. 

Inclusão, onde chegamos e onde queremos ir 

Como fica claro, nos números apresentados neste “Estado da Educação 2017”, editado pelo Conselho Nacional de Educação, Portugal desenvolveu ao longo das últimas décadas um trabalho sistemático e constante de promoção da Integração e da Inclusão de alunos com necessidades específicas no ensino regular. Este esforço continuado, que pode ser ilustrado com numerosos marcos legislativos, levou-nos a uma percentagem muito alta – mesmo a nível mundial – de alunos com necessidades específicas, educados em escolas regulares, 99%. Esta percentagem quando citada, suscita reações diversas: para algumas pessoas, trata-se da prova de que um pequeno país com meios muito limitados conseguiu atingir uma percentagem de inclusão rara e meritória; para outros, esta percentagem não passa de um número vácuo, dado que o que é importante considerar são as falhas que este número parece ocultar. Talvez neste caso – não em todos – o mérito esteja em considerar vantagens nas duas posições. Por um lado, Portugal é hoje citado ao nível de organizações internacionais como um caso de sucesso nas suas políticas educativas inclusivas, um país em que a legislação foi carreando um conjunto de medidas que permitiu avanços importantes na Intervenção Precoce e na Inclusão de Alunos no Ensino Regular. Por outro lado, cabe considerar que não interessam números por si só. Estes números têm de ser consistentes com o quotidiano das escolas. E aqui temos muito ainda que avançar se levarmos em consideração a grande carência de recursos, a sua distribuição assimétrica, a necessidade de potenciar a confiança que as famílias depositam no trabalho da escola, enfim, se considerarmos a grande mudança de inovação na organização que a escola for efetivamente capaz de pôr em prática para responder à diversidade. 

Talvez a questão central se jogue entre dois conceitos que são muitas vezes tidos como equivalentes ou mesmo sinónimos, mas que são estruturalmente distintos: a diferença e a desigualdade. 

A Inclusão lida com as diferenças, com todas as diferenças: as dos alunos, as das famílias, as dos professores, enfim… a inclusão assume o valor e a riqueza da diversidade e a complexidade das pessoas, dos grupos e das sociedades. Muito do trabalho “inclusivo” nas escolas é constituído por este esforço de trabalhar com as pessoas a partir de onde elas estão, do que sabem, do que pensam, que atitudes e motivações têm. Pessoas e instituições diferentes a trabalhar com as diferenças. É este certamente um desiderato fundamental da Inclusão. 

Mas não devemos confundir diferença com desigualdade. A desigualdade entre humanos é uma injustiça social. É por esta desigualdade que somos mais ou menos considerados, mais ou menos reconhecidos, onde temos mais ou menos acesso aos bens da sociedade. Por isso a desigualdade é socialmente injusta, porque nem sequer se pode arrogar a ser meritocrática: quem é desigual não o é por algo que tenha feito, mas sim por um conjunto de condições para as quais não fez nada ou quase nada. 

Pensar na Inclusão hoje, depois do Decreto-Lei nº 54/2018, de 6 de julho, é sobretudo termos a consciência de que temos de saber cada vez mais como trabalhar as diferenças. Trabalhar as diferenças a partir da humanidade, da compreensão, da proficiência de que cada um é capaz e que todos devemos ser capazes de encorajar e assumir. Se não aprendermos mais e melhor a trabalhar com as diferenças, inviabilizamos a inclusão. 

Mas trabalhamos as diferenças com um único objetivo: para que destas diferenças não nasça a desigualdade. Para que as pessoas que têm necessidade de um tratamento diferente do que é estandardizado (todas?), ao não o terem, não serem consideradas inferiores, descartáveis e “menos”. A Educação Inclusiva é, assim, o trabalho pedagógico que se faz para que as diferenças não se convertam em desigualdades

São estas as promessas para que esta nova legislação aponta. Estamos certos que muito trabalho há ainda para fazer de forma a calibrar estas medidas com a sua execução em contextos tão diversos. O Parecer emitido em 4 de abril, pelo Conselho Nacional de Educação, apontava já que a presente lei “espelha avanços conceptuais que têm sido divulgados sobre a Educação Inclusiva. Realçaríamos três destas conceções: i) o comprometimento de toda a escola na missão de educar todos os alunos, ii) a perspetiva de encorajar a diversidade de todas as componentes curriculares – nas quais se inclui a avaliação – de forma a fomentar a participação bem-sucedida de todos os alunos, iii) a ideia de criar na escola um sistema de apoio extensivo a qualquer aluno que, de forma episódica ou permanente, possa dele necessitar para o sucesso do seu percurso escolar”. 

De todos os agentes educativos e decisores políticos espera-se, face a esta legislação, uma atitude inclusiva que, neste contexto, significa acolher a diversidade, tirar o melhor partido dela de forma a podermos ter um sistema educativo alicerçado na equidade, na inclusão e nos Direitos Humanos – e particularmente nos direitos educacionais - de todos os nossos alunos. Direitos Humanos para todos os humanos.

Sem comentários: