domingo, 11 de janeiro de 2015

O pai padrasto e o padrasto pai

Dois adolescentes: Mariana tem 16 anos e Diogo tem 15. Aparecem na minha consulta hospitalar por difíceis relações familiares, em ambos os casos caracterizadas por conflitos sobre as questões do quotidiano, impulsividade e oposição frequentes, ameaças de saída de casa.

As famílias são diferentes na sua composição: Mariana vive com os pais e irmão, Diogo vive numa família recomposta, quatro anos após o divórcio dos pais.

Nestes adolescentes com problemas familiares, começo sempre por ouvir a família em conjunto, depois mando sair os adultos e falo só com os jovens, para no final voltar a reunir todos. Nos dois adolescentes em referência, o silêncio dos mais novos caracterizou a primeira parte: num contexto muito acusatório, os pais da Mariana e a mãe do Diogo criticaram os jovens, manifestando grande pessimismo sobre uma eventual evolução positiva.

As conversas individuais foram mais interessantes:

Mariana — Professor (parece que o devo tratar assim), o grande problema é com o meu pai, que não me respeita. Grita todo o tempo, ameaça que me põe fora de casa e até já chegou a bater-me, há muito pouco tempo. A minha mãe é uma fraca, acho que tem medo dele e acaba sempre por lhe fazer a vontade. O mano é um miúdo, só tem 12 anos, de qualquer modo às vezes ainda me defende e respeita-me sempre. Não consigo sequer olhar para o meu pai, já não espero nada dele, mas as coisas estão a piorar, veja que agora entra no meu quarto sem bater, diz que ele é quem manda lá em casa e não pode haver portas fechadas. Mas sabe o que mais me irrita? É quando estamos na sala e ele se põe a fazer-me festas, a chamar-me “a luz dos seus olhos” ou “a minha queridinha”. Se quer saber, mete-me nojo. Sabe como lhe chamo? Pai padrasto, é o nome que lhe assenta bem.

Diogo — A minha mãe é “secante”, está sempre a mandar vir: diz que como de mais e vou ficar gordo (o que é mentira porque jogo futebol federado e não quero engordar); chama-me mal-educado porque ouve os meus telefonemas com os meus amigos, em que às vezes digo certas palavras… sabe como é; está sempre contra o futebol, porque diz que prejudica os estudos; e quer proibir todas as saídas à noite, como se eu fosse um bebé. É claro que eu às vezes grito e até já a empurrei, mas quem pode aguentar esta pressão?! O meu padrasto é a minha safa. Leva-me aos treinos e aos jogos de futebol, está sempre a dizer à minha mãe para ter calma e até consigo falar com ele sobre raparigas. Para mim, não é padrasto, é um pai, porque o meu pai verdadeiro não me liga nenhuma. Acha que se pode chamar pai a alguém que só me telefona no Natal e nos anos?

Mariana e Diogo estão em plena adolescência, por isso muito dos seus comportamentos podem ser interpretados como esforços de afirmação e de crescimento. As figuras parentais são essenciais para assegurar um desprendimento adequado e uma autonomia respeitadora dos direitos de toda a família. Nas famílias modernas, os laços biológicos não significam sempre que tudo vá correr bem; e os padrastos e madrastas de hoje já não têm a conotação negativa dos contos tradicionais infantis.

Ser “pai” hoje quer dizer estar presente, disponível, companheiro, respeitar o espaço do adolescente, não hesitar em ser firme e traçar fronteiras, perceber o limite da intimidade física. Nesta estória, o pai é o “padrasto” e o padrasto é o “pai”.

Daniel Sampaio

Fonte: Público

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