sábado, 10 de janeiro de 2015

As crianças também são corruptas

(...) Em muitas famílias assiste-se a relações corruptas. Esta vivência cresce através de uma palavra que protagoniza a rede das relações familiares: o suborno. Os meios justificam os fins e, nas famílias, os fins são “Cala-te, que já não te posso ouvir”, “Arruma o teu quarto! É a última vez que te aviso!”, “Pára de fazer migalhas, não és nenhum pombo!”

Primeiro pede-se, depois ordena-se e, por fim, suplica-se. Se não funcionar, suborna-se. As tradicionais luvas amarelas para lavar a loiça são um engano. As mamãs usam e abusam de luvas brancas. O suborno por debaixo da mesa tem lugar na sala de jantar familiar. “Se comeres metade do que tens no prato deixo-te ver dois episódios seguidos do Mickey Mouse”. “Até podes comer só as batatas e deixar o peixe mas abre a boca, pelo amor de Deus!”.

Em muitas famílias toma-se conta do filho, do gato e do cágado ou fazem-se favores em troca de algo. Porque não há almoços grátis nas famílias. Omitem-se opiniões mesmo quando se vê debaixo do nariz a asneira que os filhos, sobrinhos, irmãos estão a fazer. Há um fechar de olhos, um facilitismo e um “deixa andar” que todos alimentam e que se assemelha a uma espécie de corrupção passiva.

Nascemos e somos criados em família. Ninguém nos atirou do céu cá para baixo ao pontapé e pediu que sobrevivêssemos. Por isso, pai, mãe e toda a família são responsáveis pela moral, mais ou menos corrupta, de cada bebé que colocam no mundo. As crianças têm noção do bem e do mal desde tenra idade. Porque nós, adultos, os orientamos nesse sentido. Claro que a maioria das vezes, o certo e o errado é algo que não lhes rege a acção.

Para as crianças, justo é ficarem acordadas até caírem para o lado, comerem quando bem lhes apetece, atirarem-se para o chão quando são contrariadas. Justo é fazerem como e quando querem. Injusto é que nós, adultos, os impeçamos da sua vontade. E é aqui que os pequeninos podem ser altamente corruptos. A alma infantil não é intocável. Uma criança vende-se por uma mão de bolachas Maria. Por uma banana esmagada com açúcar. Por um bocado de pão. A comida é a moeda de transação, entre filhos e pais, até determinada idade. E as mães, pais e avós sabem muito bem avaliar o poder manipulador de uma bolacha Maria. Depois, o que conta mesmo são os euros. Há também quem negoceie horários, notas e tarefas.

Tudo é negociável é a ideia com que muitas crianças crescem. A recompensa é a semente plantada na moral infantil porque ser mãe, pai, avó é trabalhoso e o facilitismo produz resultados mais imediatos. Estou consciente do consumo elevado de bolachas Maria no meu lar. Vou tentar focar-me noutra palavra em 2015 para substituir a pequena corrupção cá em casa. Acabaram-se as bolachinhas.

Sofia Anjos
Fonte: Público

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