terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Não falava até aos 11 anos, não escrevia até aos 18. Hoje tem 37 e é professor em Cambridge

Foi diagnosticado com autismo, aprendeu a falar aos 11 anos e a ler e a escrever aos 18. Com dois mestrados e um doutoramento, aos 37 está prestes a tornar-se professor na Universidade de Cambridge.

Diagnosticado com autismo e um atraso no desenvolvimento geral das suas capacidades, Jason Arday foi tendo dificuldades na fala até aos 11 anos e, até fazer 18, não sabia ler ou escrever. Hoje tem 37 anos e está prestes a tornar-se a pessoa negra mais nova a conseguir um cargo de professor na Universidade de Cambridge.

Não sabia falar, mas lembra-se de sempre ter tido a curiosidade afiada em questões que geralmente passam ao lado de uma criança como “porque é que existem pessoas sem abrigo?” ou “porque é que existe guerra?”.

Apesar da sua condição, que em muitos casos afeta o sentido de empatia, Jason refere que, desde cedo, nutriu empatia pelo sofrimento de outras pessoas, o que lhe dava uma vontade de agir em prol do bem de quem precisasse.

Quanto às suas influências, segundo Jason Arday, foi a sua mãe que exigiu mais dele e teve um papel fundamental no seu desenvolvimento, autoconfiança e capacidades. Incentivando-o a ouvir música de todos os géneros, ela esperava que isso o ajudasse a conceptualizar a linguagem. Já para a leitura e a escrita, foi um amigo e tutor, Sandro Sandri, que o ajudou e incentivou.

Inicialmente, o objetivo de Ardat era tornar-se um professor de educação física, acabando até por tirar um curso nessa área. Mas, à medida que ia trabalhando como professor e crescendo numa zona que refletia a realidade de desigualdades sistémicas que jovens de minorias étnicas têm de superar, outras ambições começaram a vir-lhe à mente.

Aos 22 anos, Arday interessou-se num curso de pós graduação diferente e falou com o seu tutor, que acreditou nele e lhe disse “tu consegues”. O curso era na área da Sociologia.

Com esse voto de confiança, lançou-se no seu desafio. Mas confessou que “aprender a tornar-me num académico foi difícil, sobretudo porque não tinha grande prática de como o fazer”.

Durante o dia, Arday trabalhava como professor de educação física, durante a noite concentrava-se em toda a papelada e trabalhos para as cadeiras de Sociologia.

“Quando comecei a fazer trabalhos académicos, eu não sabia o que estava a fazer. Houve uma altura em que tudo era rejeitado”, desabafa.

As adversidades tornaram-se lições e a certo ponto, Arday divertia-se com a aprendizagem. A meta mantinha-se à vista e, quando deu por isso, tinha completado dois mestrados e um doutoramento em Educação.

8 anos depois prepara-se para o cargo que lhe é destinado enquanto professor de Sociologia da Educação em Cambridge.

Atualmente, só existem 5 professores negros nesta Universidade. O seu objetivo é trazer mais pessoas como ele a lugares de topo, como o que conseguiu.

“O meu foco é como é que se pode democratizar o ensino e abrir portas a mais pessoas que vêm de situações desfavorecidas”, acrescenta.

Fonte: CNN Portugal por indicação de Livreco

Viver com uma doença rara. Patrícia, Gonçalo e Margarida combatem o estigma todos os dias

Gonçalo Alves estava a entrar na adolescência quando um professor de Educação Física alertou os pais para a quantidade (anormal) de vezes em que caía. Era um miúdo "perfeitamente normal", que gostava de jogar à bola, quando os primeiros sintomas se manifestaram: primeiro as quedas, depois a falta de força e as dores. Mas entre os primeiros e os últimos demorou "cerca de dois anos para que chegasse o diagnóstico final". Aos 13 anos, Gonçalo soube que era portador de atrofia muscular espinal, conhecida pela sigla SMA (Spinal Muscular Atrophy), uma doença rara e degenerativa que em Portugal afeta cerca de 150 pessoas. Esta é uma das doenças raras diagnosticadas no país, que terá, segundo estimativas, entre 600 e 800 mil pessoas a sofrer de algum tipo de patologia rara.

Gonçalo tem agora 23 anos. É um otimista militante, que conta ao DN ter tido a sorte "de nunca deixar de andar, por isso sou um privilegiado". Trabalha desde os 17 anos, já fez várias coisas, e neste momento é operador de caixa num supermercado em part-time, enquanto frequenta o 2.º ano do curso de Marketing no Instituto Politécnico de Lisboa. Desloca-se num carro adaptado e tem contrariado todos os prognósticos que lhe vaticinavam a finitude. Há três anos integrou um grupo-cobaia de um medicamento experimental e continua a fazê-lo, através do Hospital de Santa Maria. "Desde que comecei a fazer essa medicação a doença não progrediu, e só isso já é um grande alento", explica Gonçalo, que, ao contrário de muitos outros portadores da doença, faz todo o seu dia a dia com relativa autonomia. Porém, nota que há "muita coisa com a qual a sociedade não está preparada para lidar. Por exemplo, perceber que nós não conseguimos atravessar a rua de um lado para o outro com rapidez ou subir passeios altos. Um dos maiores entraves com que se depara no mundo profissional é a questão das cadeiras altas. Por outro lado, movimentos mais bruscos limitam o seu dia a dia de trabalho. "Tenho a sorte de contar sempre com o apoio dos meus colegas e coordenadores, que adaptaram tudo no meu local de trabalho para eu poder estar bem e confortável no desempenho das funções. Costumo dizer sempre que sou um privilegiado com as pessoas que tenho à minha volta, incluindo a entidade patronal", relata. Aos 17 anos disseram-lhe que num ano ou dois deixaria de andar. E então não se matriculou na universidade, foi trabalhar a tempo inteiro e convenceu um amigo a acompanhá-lo numa viagem pela Europa. De resto, viajar continua a ser um dos seus objetivos de vida.

Patrícia e o sonho de ser atriz

Patrícia Santos nunca andou. Os médicos descobriram-lhe a doença ainda em bebé, quando tinha apenas nove meses. É portadora de SMA tipo II desde a nascença e cresceu sempre com prognósticos de esperança de vida muito reduzidos. Quando era criança, não julgava chegar à idade adulta. "Naquela altura, em 1993-1994, a minha esperança de vida era até aos 10 anos." Tem agora 29 e é também rara a carreira que entretanto construiu no grupo Santander, já lá vão cinco anos. "Aconteceu graças à Associação Salvador. O queria mesmo era ser atriz, fazer novelas, trabalhar em televisão." Porém, não chegou a ingressar na Escola Superior de Teatro e Cinema por dois motivos: "Primeiro, porque as universidades não dispõem de auxiliares cuidadores, como tive sempre até ao secundário. Depois, uma das disciplinas era Expressão Corporal... não tinha hipótese". "Infelizmente, as novelas ainda não abordam este tema, cujos papéis eu poderia fazer", confessa Patrícia, que depende sempre de terceiros para fazer a maioria das ações da sua vida. No trabalho conta com uma cuidadora a tempo inteiro, que a ajuda, por exemplo, a ir à casa de banho e nas refeições. Em casa é o namorado (com quem vive em união de facto) o seu grande apoio.

Quando soube do projeto da Associação Salvador - que reúne num dia várias empresas abertas a empregar pessoas com deficiência - inscreveu-se. "Fui a esse bootcamp e passado uma semana ligaram-me. Já lá vão cinco anos." Patrícia trabalha na sede do banco, onde diz ter sido "muito bem integrada". A empresa estava equipada com todos os acessos, porque já tinha vários funcionários deficientes, "mas nenhum era tão dependente quanto eu", conta ao DN, para recordar o momento em que passou a contar com uma cuidadora. Ela e outros colegas, entretanto contratados, com semelhante grau de dependência.

Mas nos anos anteriores experimentou o outro lado, aquele que é mais conhecido da maioria dos portadores de doenças raras. "Eu ia às entrevistas e notava que as pessoas ficavam assustadas. Ficavam de dizer alguma coisa e nunca diziam. Porque, na verdade, há um tabu muito grande na forma como se lida com a deficiência. A sociedade associa deficiência a incapacidade cognitiva."

Na infância, lembra-se apenas de um episódio em que se sentiu discriminada na escola. De resto, colegas e professores da escola pública - e regular, sem nunca recorrer ao ensino especial - "foram sempre impecáveis". Sublinha que teve a sorte de contar com uma educação que lhe permitiu "fazer sempre tudo", com a ajuda dos pais e dos quatro irmãos. Terá sido essa ligeireza que lhe permitiu sempre "brincar com a minha situação", encarar os olhares alheios com naturalidade. Aos 16 anos já frequentava discotecas. "Eu nunca senti que a minha doença me impedisse de fazer seja o que for. Posso fazer de maneira diferente, mas faço. A única coisa que me deixa triste não fazer é trabalhar em televisão."

Do Canadá a Portugal, faltam oportunidades

A experiência de Margarida Marques, 47 anos, é outra. É portadora de distrofia muscular das cinturas, uma derivação da atrofia muscular espinal. Licenciada em Sociologia, frequenta agora o mestrado em Gestão e Planeamento em Turismo. Mora em Aveiro, com o companheiro, mas já viveu no Canadá durante duas décadas. É por isso que tem o termo de comparação no que respeita à empregabilidade também. A doença foi-lhe diagnosticada na adolescência, quando tinha 16 anos. A falta de força foi também um dos sintomas.

No país onde morava teve várias experiências profissionais (um call center, um gabinete de advogados, associações de apoio a imigrantes, como administrativa). Ao DN diz que aí nunca sentiu discriminação no local de trabalho. O regresso a Portugal coincidiu com o agravamento da doença, e aqui a experiência não tem sido a melhor. "Existem questões relacionadas com os preconceitos e estereótipos relativamente à capacidade produtiva, contributiva e decisiva da pessoa. Subsiste uma imagem social preconcebida sem nenhum fundamento", afirma ao DN. "Acredito que o mercado de trabalho pressupõe que somos incapazes de desempenhar tarefas e tomar decisões. Ou seja, existe uma lacuna enorme relativa às nossas capacidades." E fala de "uma mentalidade antiquada e que não vê que somos uma mais-valia ou mesmo um fator diferenciador para as empresas. Sinto que os empregadores e os departamentos de RH receiam a possível dificuldade de modificar os espaços de trabalho resultante das barreiras arquitetónicas e outras possíveis adaptações. Também me parece que os apoios são reduzidos. E por isso as empresas não são incentivadas a empregar". O que poderia, então, ser feito? "Em primeiro lugar, seria criar condições que permitissem às pessoas com deficiência exercer as tarefas diárias de um emprego, como dar formação para colegas de trabalho sobre inclusão, com ações internas de integração. Por outro lado, investir em equipamento ajustado, criar espaços projetados com um design universal para o uso e acesso para todos, que fosse para além dos WC."

Em Portugal, Margarida ainda não conseguiu trabalhar. "Prefiro não utilizar a palavra discriminação, mas sim, sinto que sou excluída de um emprego devido à minha situação atual."

O que é a SMA

A atrofia muscular espinal (SMA) é uma doença neuromuscular genética rara caracterizada pela degenerescência de neurónios motores na medula espinal (células responsáveis por regular a atividade muscular, nomeadamente ao nível da força e dos movimentos musculares). Perante um défice destes neurónios, os músculos deixam de receber sinais do sistema nervoso central, o que acaba por resultar na fraqueza e atrofia muscular progressivas (ou seja, na diminuição gradual da massa muscular e da força dos músculos), que, por sua vez, podem dar origem a paralisia progressiva e à perda de diversas capacidades motoras.

Consoante a idade de início da doença e o nível de capacidade funcional, a SMA pode dividir-se em quatro tipos: os primeiros três tipos com aparecimento de sintomas em idade pediátrica e um quarto tipo (que constitui cerca de 5% do total de casos) com aparecimento dos sintomas na idade adulta.

É importante salientar que a manifestação da doença varia de pessoa para pessoa, consoante o tipo de SMA e o seu nível de progressão. Embora o tipo 1 seja o que apresenta sintomas mais graves e o tipo 4 sintomas menos graves, a fraqueza e atrofia muscular são consideradas as manifestações mais comuns e transversais a todos os tipos. Nestes doentes verifica-se ainda que a fraqueza é geralmente igual nos dois lados do corpo e mais acentuada nas pernas do que nos braços. Os doentes com SMA mais severa também apresentam frequentemente dificuldades respiratórias, na mastigação e na deglutição, sendo que em idades mais avançadas podem apresentar adicionalmente escolioses acentuadas.

Fonte: DN

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

A intervenção precoce nas crianças com necessidades especiais: um desígnio social

Uma criança com necessidades especiais é, antes de mais, uma pessoa diferente, cuja intervenção precoce pode mudar radicalmente o seu futuro.

O mesmo estado que se arroga no direito de intervir em tantas questões, pondo em causa a liberdade individual e desafiando o estado de direito que tanto custou a construir, tem-se demitido de proteger os mais vulneráveis, em particular as crianças com deficiência.

Mas, porque é primordial a precocidade deste tipo de intervenções? De forma genérica, é nos primeiros meses e anos que a criança adquire a maior parte das competências que lhe vão permitir a autonomia na idade adulta. Ora, quanto mais precocemente auxiliarmos uma criança diferente a ganhar muitas dessas competências, mais exponencial vai ser o êxito resultante. Todos ganham: a pessoa em causa vai garantir a sua autonomia e, com isso, a sua valorização pessoal; a sociedade vai poder integrar este indivíduo mais facilmente e torná-lo útil de alguma forma; a Segurança Social vai diminuir drasticamente os encargos inerentes aos cuidados para com as pessoas com deficiência. Se nos quisermos despojar de juízos emotivos, encaremos este processo como um investimento no futuro, a nível social e económico.

A intervenção precoce já existe, sendo o seu processo bem delineado. Envolve a participação de uma equipa multidisciplinar que inclui os pais ou cuidadores, terapeutas especializados, de acordo com as necessidades da criança, assistentes sociais e profissionais de saúde. Estas equipas elencam os problemas da criança, definem objectivos e metas e delineiam uma estratégia. Contudo, devido à escassez de recursos humanos, o apoio dado a estas crianças é manifestamente insuficiente. Não por falta de empenho dos profissionais, que excedem em larga escala o que lhes é exigido, mas por notória insuficiência de recursos humanos e logísticos. É de igual modo importantíssimo garantir que as famílias e os cuidadores possam ser alvo de formação, apoio psicológico e dotação de meios técnicos. Os “terapeutas” mais diligentes são a própria família e os cuidadores, sobretudo em fases mais precoces da vida do deficiente.

Urge, portanto, agir, dotando as equipas de meios logísticos e humanos, para que o seu esforço possa ser útil e eficaz. Se o estado não consegue garantir a função de protecção e educação dos mais vulneráveis, então que nos libertemos de dogmas ideológicos e façamos o que tem de ser feito: aproveitar a capacidade instalada no sector privado, recorrendo a contratos-programa com instituições e clínicas de terapia à criança diferente. Esta medida visa sobretudo garantir a equidade no acesso a este tipo de intervenção. A desigualdade de oportunidades, cria crianças deficientes de primeira e de segunda, ou seja, os filhos dos pais com recursos financeiros que podem suportar os onerosos encargos da terapia de intervenção precoce e os outros, que se limitam a ver os filhos estagnar no seu processo de desenvolvimento. Pior do que isso, estamos a maniatar a oportunidade de sermos inclusivos na deficiência, gerando adultos incapazes de serem integrados na sociedade, apenas porque não fomos capazes de os capacitar de competências em tenra idade.

Não podemos aceitar que levianamente os sucessivos governos “sacudam a água do capote” e ignorem este problema social. Infelizmente não conseguimos “congelar” estas crianças e adiar medidas que tardam em ser tomadas.

É não só função do estado social, mas de toda a sociedade insurgir-se contra a displicência de quem pode fazer a diferença!

Jorge Carrapita

Fonte: Observador por indicação de Livresco

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Na aldeia da Cabreira, o turismo transforma deficiências em eficiências

"Conta-se que, há muito tempo, num pequeno vale abrigado por grandes pedras arredondadas, a que chamam agora barrocos, vivia uma pequena comunidade de gente corajosa, simples e afável." O companheiro António Bordalo conta este esboço de lenda de supetão, como o vento, murmurejando de mansinho entre as pedras do caminho o mito desgarrado da Cabreira, a aldeia, e da menina pastora a quem chamavam cabreira, ou com ternura cabreirinha, que percorria os caminhos de urzes e giestas apertados pelo caos sem fim de blocos graníticos pousados sobre os montes ondulantes que se estendem até ao horizonte e subia ao barroco mais alto para saudar o dia.

Na Beira Interior, na raia com Espanha, a oeste do Côa, no fim da estrada sem saída, naquele "sítio atrás do sol-posto", está a ser construída uma história bonita com obstáculos — e em boa hora houve obstáculos —, está a crescer uma aldeia, que fez pessoas, que fizeram uma aldeia, que molda pessoas, guias e mestres artesãos. E milagres e coisas que só existem aqui, barrocos colossais, movimentos tectónicos, fissuras, bolas de barro, bolas de lã de ovelha e bolas de pão que nunca saem iguais. Aqui, os dias fazem-se redondos, limam-se arestas, arredonda-se o que está bicudinho. Não se deixa ninguém para trás. Dá-se colo. Interpreta-se um lugar. E, quando a lenda se transforma num facto, imprime-se a lenda.

Dentro de um grande parêntesis — e gravada em todas as rochas — fica a história da ASTA, Associação Sócio Terapêutica de Almeida juridicamente fundada a 26 de Outubro de 1998 e que iniciou actividade dois anos depois na casa da fundadora, Maria José Dinis (mãe de Marco, que nasceu com deficiência mental), na sua aldeia de origem, Cabreira do Côa, concelho de Almeida. "Começou com pessoas da própria aldeia. Íamos e vínhamos num Opel Corsa velhinho, cinco, seis, sete dentro do carro. Foi assim que começámos, de uma forma bonita, fraterna e muito estimulante", conta à Fugas Maria José, que nasceu à lareira da sua casa de pedra. "Éramos muito artesanais até nisso."

Até hoje, o objectivo sempre foi oferecer às pessoas necessitadas de cuidados especiais (essencialmente jovens a partir dos 18 anos com deficiência intelectual e multideficiência) uma alternativa de vida válida e plena de sentido, contribuir para a sua integração social, humana e económica, criando condições de vida o mais "normais" e verdadeiras possíveis. E "em boa hora houve obstáculos, que às vezes nos decepcionam tanto. Que bom! Porque assim dinamizamos esta aldeia e não partimos para outra", recorda.

Engendrou-se muito. Inventaram-se soluções. A aldeia da Cabreira, com uns 40 habitantes fixos, foi-se transformando numa "casa grande" onde neste momento convivem 43 companheiros e 42 colaboradores da ASTA distribuídos entre a aldeia de pedra, onde foram criados gradualmente núcleos familiares, e o centro desenhado pelo arquitecto alemão Fritz Wessling, erigido em 2004 no alto da Fonte Salgueira, a dois quilómetros da aldeia, um equipamento constituído por três edifícios que permitem dinâmicas pedagógicas, terapêuticas e sociais: Casa Verde Pino (com oficinas, auditório e espaços administrativos e terapêuticos), Casa da Fonte (residência dos companheiros mais dependentes) e Oficina de Carpintaria.

A ASTA agarrou nos "costumes que existiam na aldeia" e nas "coisas endógenas", criando uma linha pedagógica muito própria que aproveita as "idiossincrasias" da própria aldeia, da região e "deste interior que tem culturas diferentes, coisas que só existem aqui e que não existem a cem quilómetros". "Tudo fazia sentido", explica Maria José Dinis, força tectónica, promotora de uma mudança de comportamento das pessoas da Cabreira e arredores em relação ao outro, de "despreconceito" em relação às pessoas com deficiência.

"E esta aldeia começou a mudar na sua forma de estar. Temos tudo aqui para fazer coisas boas, bonitas, sustentáveis e saudáveis. E não é uma sustentabilidade inventada, politicamente correcta só no papel. Somos capazes de sentir e de emanar coisas que outros seres não conseguem. Somos um manancial de coisas extraordinárias. Se estivermos atentos a elas, podemos percebê-las."

Maria José fala por todos os "companheiros, que aprenderam a fazer tanta coisa" e que o fazem com um olhar único e um toque singular. "E há tanta gente que não sabe como funciona um tear ou que nunca tocou na lã de ovelha... Eles conhecem e calcorreiam estes caminhos de cabras. Porque é que eles não podem ser guias e mestres?"

Turismo de quem não quer "ruídos habituais"

Dois dias depois, podemos dizer com segurança que são os melhores guias e mestres que já nos passaram pelas mãos. Os melhores do mundo. Na simplicidade com que nos explicam a paisagem. Na forma naïf e desarmante com que nos ensinam. "Mas que saboroso é não termos alguém cheio de pretensões. E termos alguém que, na sua naturalidade, espontaneidade e genuinidade, nos diz as coisas da forma mais simples que todos podem entender." E porque não gerar emprego, introduzindo os companheiros no mundo do trabalho e da profissionalização — algo tão difícil para muitos de nós; "imagine-se para eles..."

Contigo, Há Descoberta é um turismo que quer "transformar deficiências em eficiências", explica-nos Anémone Leton, promotora deste negócio de turismo inclusivo, social e de natureza integrado nas respostas sociais já dadas pela instituição e cuja identidade se reflecte num conceito de cinco S: silêncio, saberes, sabores, simplicidade e sustentabilidade. Turismo "de quem se quer descobrir através do outro", sugere Maria José. "De quem não quer os ruídos habituais e quer escutar e ser escutado e autenticidade sem subterfúgios".

Os companheiros, poucas palavras e muitos carinhos, "são muito dedicados", sorri Anémone, responsável por todas as peças deste puzzle dentro do puzzle, pela formação contínua de dez companheiros ao longo dos últimos três anos. Cada um tem a sua especialidade. Alguns são mestres nas suas oficinas, outros conduzem visitas guiadas às aldeias de Almeida e Castelo Mendo ou calcorreiam ao nosso lado os percursos pedestres da Cabreira. Aprendem e servem na cozinha profissional da Casa São Francisco (sob orientação de Paula Dente, a cozinha pedagógica que funciona numa casa velha doada à ASTA e recuperada dentro do contexto do Programa PRODER serve quase cem refeições duas vezes por dia e recolhe, transforma e conserva os produtos do atelier de agricultura biológica) e preparam a casa para os visitantes (a Fugas ficou na Casa Mateus, preparada com muito carinho pelas companheiras Sónia, Lurdes e Dulce). "São eles os nossos principais actores. Nós só apoiamos e damos segurança. Quem nos visita, aprende ao lado deles", diz Anémone Leton, explicando que o projecto ocupa "dez, quinze por cento" do tempo dos companheiros, que por este trabalho têm um contrato com remuneração justa.

A abertura do dia, a grande roda, faz-se no salão ou à volta de uma masseira cheia de matéria a levedar. O ritual assegura o ritmo e a segurança da rotina. Porque "às vezes esquecem-nos de respirar". Foco no presente. Na Carpintaria, todos vestiram a bata. "Faço questão de explorar as capacidades de cada um e de tentar atenuar as dificuldades", diz-nos Pedro Pimentel, monitor há 15 anos "sem dar por ela" ("o meu recorde do mundo num sítio era de um ano", sorri).

Atarefados, torno a postos, estão José Pereira, especialista em carrinhos e camiões, Nuno Marques, entalhador (são aqui fabricadas as placas de madeira que identificam os espaços pela Cabreira fora e muitas encomendas para fora), Sara Silva, João Coelho e Marco Dinis ("é graças ao Marco que estamos aqui todos"), a tornear uma tábua de queijo que nunca sai igual à anterior. "Das 40 e tal ferramentas, basta dominar três ou quatro. Os objectos saem todos diferentes, mas eles são capazes de começar e de acabar algo. Têm poder sobre a matéria. É óptimo assistir a milagres de companheiros que, de outra forma, estavam superprotegidos em casa."

Partiu-se o molde. São peças únicas. "São coisas fora do normal", descreve Elisabete Fonseca, 55 anos, monitora de Olaria há 20 anos. António Matias está a fazer uma bola bem redonda, trabalhando a motricidade fina e a concentração. Sente "a energia a passar na matéria", assim como António Bordalo e Filipe Tavares, também com os dedos espetados na argila, retirando as bolhas de ar, como se amassassem pão. "Às vezes passamos a bola de mãos em mãos e de olhos fechados para percebermos quando é que a nossa bola regressa às nossas mãos." Entretanto, Fátima Gonçalves, que só tem força numa mão, vai serrando pauzinhos para os espanta-espíritos. "Não temos que fazer tudo certinho. Gosto mais de coisas diferentes, coisinhas únicas. Nunca é nada igual. Nunca sai igual e isso é que é o bonito da olaria. O barro é terra", comenta Elisabete.

Na Tecelagem, Cristina Fonseca, na ASTA desde o início, trabalha um "material quente". "Muitos companheiros precisam desse ambiente acolhedor. Existe esse cuidado de ver o que é que cada companheiro mais necessita", aponta. "Fisioterapia natural", resume. Paulo Bulha está a dobar e Paula Filipe ao comando de uma carda terapêutica, enquanto Maria Lurdes tece mais um painel num tear vertical. Falta João Coelho, tecelão, que este ano decidiu fazer as manhãs na Carpintaria. "Usa a lançadeira com a única mão que usa." Vimo-la em acção com o formão. "Na Tecelagem usamos material reciclado, roupas velhas, coisas de lojas que vão fechar e de pessoas idosas que nos deixam a sua cestinha de fios. Transformamos em coisas bonitas."

"O trabalho é uma terapia", comenta Maria José Dinis. "Sentimo-nos úteis. Fazemos parte do enriquecimento humano de uma comunidade. Dizemos-lhes 'vocês são muito importantes, têm algo para dar'. Aumenta a auto-estima, a autodeterminação, a sua capacidade de saber fazer, de aquisição de competências. Normalmente as pessoas com deficiência são os coitadinhos 'deixa lá, eu faço'. Isso é discriminar pela positiva. Eles podem fazer coisas, cada um no seu tempo. Estão a contribuir para o crescimento de alguma coisa."

Até a natureza conspira

Cresce a identidade. "Aqui não são uns coitadinhos institucionalizados", sublinha a fundadora da ASTA que partiu da Cabreira aos dez anos e às tantas sentiu que "o sonho tinha que ser cumprido lá, naquele sítio atrás do sol-posto". "Quando o projecto é honesto e necessário, até a natureza conspira." Cresce a auto-estima. "Não têm noção de que sabem fazer tanto. Duvidam deles próprios. Graças ao Contigo, enfrentam pessoas de fora. Falam em público. Trabalham a postura, a endireitar a coluna, a dizer com as suas palavras", junta Anémone Leton, 32 anos, que deu a volta ao mundo (Interrail aos 18 anos, EUA e Canadá de mochila às costas, um ano pela Nova Zelândia na companhia de Tony Ladeiro numa autocaravana a aprender sobre os princípios da permacultura e da agricultura regenerativa).

"Quando voltámos já não queríamos viver numa grande cidade. Já não fazia sentido. Queríamos espaço." Por perto ficaram — e em casa, na Miuzela, já nasceu Rafael, dois anos em Março. "Assumi o papel de capacitar os companheiros a conduzir as actividades. Um desafio grande. Há dias em que parece que esqueceram tudo. Temos que gerir o dia-a-dia. É sempre uma surpresa. Sempre diferente. Nunca é igual."

Cresce a Cabreira. Multiplicam-se as placas de madeira talhadas que identificam casas de pedra renovadas e ocupadas. A Casa da Oliveira, a Casa Cristalina, estalactites de gelo a pingar na Rua do Tear, a Casa São Miguel, perto da antiga estrutura de madeira usada para ferrar os animais de uma aldeia com uma calçada de quartzo, pedras pousadas sobre as telhas, uma Rua da Música (os instrumentos do grupo filarmónico estão guardados no café), cheiro a flor de sabugueiro e vistas desafogadas para o grande barroco de formas mutantes. E uma estrada sem saída. "Só cá vem quem vem de propósito."

A meio da curta Rua do Filipe, junto aos tanques comunitários, a Oficina 3 Ofícios não pára. Aprendemos com Tânia Martins, mestre da lã, a moldar as bolas de lã de ovelha, adensando-as com uma agulha ("A bola de lã é o primeiro objecto de conquista. É o círculo. Faz muito sentido. Não deixamos ninguém para trás. Limamos arestas e arredondamos o que está bicudinho", explica Cristina Monteiro, monitora dos 3 Ofícios), e com Telmo Martinho, artesão de velas de cera de abelha com quem enrolamos o fio para o pavio, que mergulhamos na cera quente antes de o pendurar no gira-velas ("ou flor de velas", uma estrutura inventada na carpintaria). "Imperfeições da primeira vez", avisa Cristina. "Faz sentido criar coisas. Até o olhar deles brilha." Maria José concorda. "É uma alegria irem das suas casas para as oficinas. Eles já não poderiam viver sem isso."

A aldeia é como se fosse um colo

A última placa de madeira aponta a Quinta 3 Sóis (onde "conseguimos ver o sol a qualquer hora") no meio de uma paisagem deslumbrante de prados murados ao longo da Ribeira das Cabras e de pedras inclinadas que, diz-se, apontavam a direcção da aldeia mais próxima. Contam-se vinte ovelhas, dez cabras e as burras Georgina (o pai era o Jorge) e Natalina (nasceu no Natal) que João Pina foi arrear enquanto Carlos Rodrigues ensaca batatas e Sérgio Nunes apanha com cuidado os ovos dos ninhos das galinhas.

Distribuem-se tarefas desde cedo. Há quem participe na sessão de hipoterapia no picadeiro, na rega dos brócolos, nabiças, alfaces e repolhos na estufa, na preparação do pão no Cantinho do Artista e no "desamuar" do forno comunitário, que uma vez por semana volta a ter vida. "O forno era o sítio mais democrático e de maior igualdade da aldeia. Na igreja havia divisão de classes. A tasca era só para os homens. Aqui, conviviam todos os elementos das famílias. As crianças ficam à espera da bola, o resto da massa que raspavam da masseira, espalmavam e coziam no forno", conta à Fugas Luís Fonseca, 52 nos, presidente da Junta de Freguesia e fundador da ASTA ("É a família. Fui-me apaixonando") que por aqui cresceu e que foi assistindo à desertificação da aldeia. "Menos pessoas na aldeia, mais espaço no forno".

Muitos ajudaram a amassar na masseira construída na Carpintaria. Coube a Margarida Sousa traçar três cruzes na massa com a faca antes de a tapar com dois lençóis brancos. A massa só é transportada para o forno "quando as cruzes estiverem abertas", diz-nos Sílvia Firmino (há 15 anos com a ASTA), que ajuda a limpar o borralho do enorme forno no centro da aldeia. "O meu pai conta que dias depois da cozedura do pão jogavam às cartas lá dentro, onde estava quentinho."

Na véspera optáramos por conhecer a fundo uma aldeia histórica pela mão de Guilherme Anjos e de Tânia Martins, especialistas em Castelo Mendo e nas histórias das suas pedras sigladas e biseladas, nos enfeites das fachadas e nas argolas de ferro, nas lendas do Mendo e da Menda, carantonhas e gárgulas românicas — boa pontaria no barroco dos desejos. Hoje, temos tempo à risca para seguirmos a lenda da menina cabreira (e Milene Sieiro, António Bordalo e João Pina) através dos cinco quilómetros de prados e de alminhas que abençoavam as terras, das 14 noras e respectivos muros de regadio construídos pedra sobre pedra e dos abrigos dos pastores entre barrocos. Perdemo-nos por entre freixos e salgueiros, poejo e roseira brancas, amieiros e amoreiras do bicho-de-seda, silvas que dão amoras e folhas de videira que enriquecem um bom arroz malandro.

O percurso termina junto às éguas brancas Russa e Romana ao lado das oliveiras e amoreiras que se fundem com os muros de granito esculpido. O pão está a fumegar. "Desta vez, foram 54", contabiliza Luís Fonseca. "Às vezes são eles [os companheiros] a nossa terapia", sorri.

"Aqui sentimo-nos nós, sentimo-nos cada vez mais em paz. Aqui eu respiro", suspira Maria José Dinis. "A aldeia é como se fosse um colo."

Fonte: acesso livre da notícia, com fotos, em Público

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Contra a criminalização do autismo

“Os portugueses podem e devem considerar-se seguros”, diz Marcelo Rebelo de Sousa, após o impedimento do presumível atentado à FCUL que ocupou os media nos últimos dias. Mas a comunidade portuguesa de autistas não tem as mesmas razões para estar tranquila. Uma vez mais, pessoas autistas e as suas famílias tiveram de assistir à associação nefasta e estigmatizante da sua condição a comportamentos agressivos e anti-sociais.

Tendo em conta que a população autista é desproporcionalmente sujeita a violência e abusos de todo o tipo ao longo da sua vida, e tal ser reconhecido pela comunidade clínica e científica, a associação do autismo a comportamentos violentos promovida pelos media constitui em si mesma, além duma gigantesca campanha de desinformação, uma forma de estigmatização em que as pessoas autistas se tornam num outro monstruoso, contra quem toda a violência é justificada.

É este enquadramento que motiva todas as tentativas de curar, corrigir e erradicar à nascença uma condição que faz parte da diversidade humana. “Agora muitos pais vão resistir a diagnosticar as suas crianças ou a revelar publicamente os diagnósticos”, lia-se numa rede social. Todos os passos dados no sentido da inclusão social de pessoas autistas por parte das associações de autismo têm agora de responder a este espaço público enviesado pela produção e reprodução continuada de estereótipos.

“Conheceste um autista, conheceste um autista”, repete Rick Glassman, actor e comediante autista, para falar da série As We See It. É verdade. Mas o estereótipo negativo do autismo, associado principalmente a rapazes, cala as nossas vozes e põe-nos, mais uma vez, a falar sós.

A falta de voz de autistas nos media portugueses é gritante pela utilização dos mesmos moderadores políticos para falar de uma comunidade a que não pertencem, o que, claro, origina mal-entendidos e desinformação passada a milhões de portugueses. São também convidados profissionais que não têm qualquer experiência com autistas adultos, a defender ideias ultrapassadas, que não são apenas erradas, mas perigosas.

Ser autista não é crime, mas, segundo as estatísticas, somos mais vítimas.

No meio da histeria a nível nacional, esqueceram-se que existiam autistas no dia do eventual atentado no local, como tivemos a oportunidade de saber. Estes portugueses não só têm agora que lidar com o medo que o evento lhes causou, mas com o medo criado pela comunidade onde se inserem, por terem a mesma condição que a pessoa que iria ser o agressor e, por tal, serem considerados inerentemente perigosos.

No próximo ano assinalam-se 80 anos desde que o autismo foi diagnosticado por Kanner pela primeira vez. A ideia de que profissionais de saúde sabem tudo sobre o autismo, não só é errada, como continua a remover-nos como especialistas das nossas próprias experiências.

Convidamos a ouvirem e a partilharem vozes autistas, como no Monólogos de Mulheres Autistas – uma iniciativa do Centro de Estudos Sociais (CES) e da Associação Portuguesa Voz do Autista (APVA), onde, como estamos habituados em locais públicos, fazemos monólogos sobre as nossas experiências. Esperemos que um dia se torne uma conversa. Convidamos também a conhecer a APVA, uma associação de auto-representação portuguesa, que dá casa segura a autistas para desenvolverem os seus projectos para a sua própria comunidade e, com isso, poder ter voz na mesma.

A voz de cada pessoa autista é única e alargar o espectro do autismo é alargar o espectro da humanidade. Precisamos de recursos onde a comunidade de pessoas autistas se possa reconhecer a si mesma, aberta às pessoas que nos acompanham ao longo da vida. Claro que diversos profissionais podem ir lá espreitar. Sem o entendimento mútuo entre pessoas com cérebros diferentes, existe uma paz podre, que explode a cada novo incidente. Que possamos caminhar juntos para maior conhecimento, respeito e aceitação da diversidade humana, em detrimento da sua estigmatização e normalização.

Sara Rocha e Rita Serra

Fonte: Público

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

O problema da autoestima

Nas últimas décadas, a autoestima tornou-se num dos conceitos mais populares da psicologia. Milhares de artigos, livros e oradores motivacionais informam-nos que devemos gostar de nós próprios e que, se não gostarmos, podemos aprender a fazê-lo. Acontece que estes conselhos, presumivelmente sensatos, podem estar a criar mais problemas do que aqueles que resolvem.

É preciso dizer que o conceito se tornou tão falado por boas razões: a investigação mostra que as pessoas com uma boa autoestima são mais felizes, mais bem-sucedidas, têm melhores relações interpessoais e menos probabilidade de ficarem deprimidas. Mas, se gostar de nós próprios é saudável, o dever de o fazer e o caminho para lá chegar podem não ser.

A definição de autoestima parece bastante inofensiva à superfície: ter confiança no próprio valor. Mas como é que definimos habitualmente o nosso valor? “Desde cedo vamos formando uma avaliação de nós próprios a partir daquilo que vão sendo as mensagens dos outros sobre nós e a forma como nos fazem sentir”, explica a psicóloga clínica Carla Cunha, professora da Universidade da Maia, onde coordena o mestrado em Psicologia Clínica e da Saúde. Ou seja, valorizamo-nos “na medida em que ‘encaixamos’ ou não na prescrição social” e “nas expectativas dos outros, que depois se tornam nossas”.

Estabelecemos então, desde novos e quase sempre sem dar conta, uma série de condições para nos sentirmos dignos de valor: ser filhos obedientes, amigos disponíveis, bons profissionais, companheiros pacientes, pessoas com sentimentos nobres. Condições, convenhamos, pouco compatíveis com a realidade do que somos tantas vezes: filhos que dão preocupações, amigos demasiado ocupados, profissionais que cometem erros, companheiros irritáveis, pessoas que sentem raiva do próximo. E o que é que acontece nessas alturas em que não cumprimos com as expectativas? Temos menos confiança no nosso próprio valor.

“É por isso que o conceito de autoestima pode ser prejudicial: porque implica corresponder a uma condição ou exigência ”, refere a psicóloga clínica e psicoterapeuta Cláudia Madeira Pereira. “Ficamos dependentes dos julgamentos e avaliações acerca dos nossos ‘sucessos’ ou ‘insucessos’ por comparação – seja com outras pessoas, seja connosco próprios no passado”, detalha.

Paradoxalmente, quando nos dizem insistentemente que ‘devíamos’ ter autoestima, está em jogo a mesma dinâmica: sentimos que acreditar no nosso valor é, em si, uma condição para termos valor. Parece uma subtileza de linguagem, mas é um problema profundo: a valorização social da autoestima tornou o amor-próprio em mais um bem que devemos possuir a todo o custo. Que nos sentimos obrigados a ter. Então, somos infelizes se não o temos.

Nós e os outros

Nas últimas décadas têm surgido vozes que apontam para a promoção excessiva da autoestima, não apenas como uma fonte de disfuncionalidade individual, mas também social, nomeadamente, como uma das origens do narcisismo e da desvalorização dos outros.

Porque a mesma sociedade que valoriza a autoestima, também valoriza a competitividade e o sucesso. “Somos seres sociais, produtos de sociedades que estão muito assentes em mecanismos de comparabilidade social, em que o estatuto e o valor individual se medem por aquilo que se tem e pelas experiências às quais conseguimos, ou não, aceder – especialmente quando nos comparamos com os outros”, sustenta Carla Cunha. E comparamo-nos com os outros não é novidade, mas a forma como o fazemos é, vivendo nós na era de redes sociais. “Escolhe-se seletivamente o que se mostra das nossas vidas e somos expostos a momentos particulares, também eles selecionados e editados, por isso estamos provavelmente mais expostos do que nunca aos efeitos da comparabilidade social.”

Na comparação com os outros, para sentirmos que temos valor, frequentemente, precisamos de nos sentir melhores ou especiais. Mas, como defende nos seus livros e apresentações Kristin Neff, investigadora e autora na área da autocompaixão, da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, ser mediano é hoje considerado um insulto: ninguém quer ser um profissional mediano ou uma mãe mediana. Mas estarmos todos acima da média é, por definição, uma impossibilidade.

Isso leva-nos a arranjar atalhos pouco saudáveis para resolver essa dificuldade. Em vez de suportarmos a dor de estar aquém das expectativas, criamos mecanismos de distorção da realidade: um é valorizarmo-nos em excesso, caindo no narcisismo, o outro é depreciando os outros. “A extrema importância que se tem dado ao aumento da autoestima tem contribuído para um fenómeno psicológico que se manifesta na necessidade, geralmente inconsciente, que as pessoas têm em julgar negativamente ou diminuir outras para se sentirem superiores ou melhores consigo próprias”, constata Cláudia Madeira Pereira. Isto é um problema individual, mas também social, porque na origem deste mecanismo estão fenómenos como o preconceito, o bullying e a intolerância.

“Ainda faz sentido refletir sobre os aspetos da autoestima, dada a forma como este conceito penetrou os nossos discursos quotidianos, tornando-se uma referência também para as pessoas que atendemos em consulta”, defende Carla Cunha, “quanto mais não seja, será útil para refletir com as pessoas acerca da forma como se autoavaliam e como foram formando o cálculo do valor próprio”. No entanto, a professora da Universidade da Maia e formadora da Sociedade Portuguesa de Terapia Focada nas Emoções, explica que, de acordo com vários modelos de psicoterapia e intervenção psicológica mais recentes, que subscreve, prefere outros construtores como a autoaceitação ou a autocompaixão. “Porque enfatizam mais a relação connosco próprios e direcionam-nos para aquilo que precisamos de mudar internamente.”

Aceitar para mudar

Ao consultório de Cláudia Madeira Pereira chegam com frequência pessoas que procuram ajuda por não se sentirem bem com características físicas, de personalidade, com pensamentos, sentimentos ou situações que veem como fracassos. “Embora as pessoas procurem ajuda para mudar todas essas condições com a finalidade de se sentirem melhor consigo próprias e aumentar a sua autoestima, na verdade, precisam primeiro de aprender a acolher-se e aceitar-se, tal como são”, garante.

Na verdade, a maioria das teorias psicológicas têm mostrado que é a aceitação – e não a autoestima – uma das condições essenciais da mudança. Carl Jung, o fundador da psicologia analítica, dizia que “aquilo a que se resiste, persiste”. Carl Rogers, um dos pais da terapia humanista, assegurava que “o curioso paradoxo é que, quando nos aceitamos como somos, podemos finalmente mudar”. E no centro da Terapia Focada nas Emoções está a frase “não se pode sair de um lugar sem antes lá ter chegado”.

E aceitar significa conseguir pôr de lado a ideia de julgar o valor. “A autoestima é o nível de avaliação positiva que atribuímos a nós próprios, (…) a autocompaixão não é um processo avaliativo, mas sim de uma atitude e de uma forma de nos relacionarmos connosco próprios, baseada na empatia, aceitação e bondade, sem julgamentos, avaliações ou comparações”, esclarece Cláudia Madeira Pereira. “Desta forma, não precisamos de nos sentir superiores ou melhores do que as outras pessoas, ou do que nós próprios no passado, para nos sentirmos bem connosco.”

É isso que nos permite mudar: só com a tranquilidade de aceitar o que somos – agora – podemos avançar para o que queremos ser. “A autocrítica e o julgamento negativo deixam a nossa mente deprimida, insegura, ansiosa, irritável e revoltada, o que destrói a motivação e a resiliência necessárias a qualquer mudança positiva e sustentável a longo prazo”, resume a psicóloga.

Então, voltando ao princípio: milhares de artigos, livros e oradores motivacionais informam-nos que devemos gostar de nós próprios e que, se não gostarmos, podemos aprender a fazê-lo. O que não dizem é que isso implica, em primeiro lugar, estar em paz com todos os momentos em que não gostamos.

Sofia Teixeira

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Investigadores criam programa para melhorar competências de crianças com autismo

Investigadores do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços da Saúde (CINTESIS) desenvolveram um programa para melhorar as competências de crianças com perturbações do espetro do autismo ou de linguagem, foi esta segunda-feira anunciado.

Em comunicado, o centro esclarece que o estudo, publicado na revista científica 'Brain Sciences', visava "promover a melhoria das competências programáticas" de crianças com perturbações do espetro do autismo ou de linguagem.

Focada em crianças com dificuldade em "olhar nos olhos, pedir algo ou exprimir emoções", a equipa de investigadores - coordenada por Marisa Lousada do CINTESIS@RISE e da Universidade de Aveiro - desenvolveu, validou e testou o novo programa, que "já está a ser aplicado em dezenas de jardins-de-infância" do país.

O programa tem por base um estudo experimental, realizado com 20 crianças, em idade pré-escolar, com perturbação do espetro do autismo, perturbação do desenvolvimento da linguagem e problemas de aprendizagem e de socialização.

As sessões decorreram em 16 jardins-de-infância do distrito de Aveiro, sendo que cada criança frequentou 24 sessões.

Para a criação de "uma intervenção personalizada", os investigadores contaram com a ajuda das educadoras de infância, pais e encarregados de educação, bem como das outras crianças do jardim-de-infância que "foram envolvidas em algumas sessões".

De acordo com o CINTESIS, os resultados do estudo mostraram uma "melhoria significativa em diferentes competências programática", em particular ao nível da linguagem.

"Esta melhoria foi observada quer através da avaliação das crianças, quer através da opinião dos pais e das educadoras de infância", acrescenta.

Citada no comunicado, a investigadora Marisa Lousada salienta que este "é o primeiro estudo experimental realizada com este problema no país".

"Os terapeutas da fala podem utilizá-lo com outras crianças para uma prática clínica informada na evidencia científica", acrescenta.

Para responder às solicitações de educadores de infância e terapeutas da fala, os investigadores fizeram uma "edição de autor", estando a ferramenta -- que inclui um manual com todas as atividades e um conjunto de 300 cartões em papel com ilustrações coloridas - disponível para os profissionais.

Além do CINTESIS@RISE e da Universidade de Aveiro, o estudo contou com a colaboração do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa.

Fonte: DN

O desafio de sabermos que escola queremos e que país desejamos

Escreverei as próximas linhas assumindo-me como ator de um processo e enquanto professor que sou há quase duas décadas. Focar-me-ei na questão da escola que quero e da escola que considero necessária para que possamos ter um país melhor.

A situação educativa atual requer uma contextualização e para isso devemos recuar um pouco na história, mais precisamente ao ano de 2005, visto por muitos como o princípio do fim da escola pública, como elevador social. Quase dezoito anos passados, posso dizer, sem ficar longe da verdade, que batemos no fundo!

Foi esse o resultado das políticas das últimas décadas. Ninguém quer saber se os professores estão académica e intelectualmente aptos, exemplo disso é o último Despacho n.º 10914-A/2022, de 8 de setembro, que revê os requisitos mínimos para a docência.

A escola transformou-se num enorme centro social de dia para crianças e jovens! As escolas não podem fechar porque a sua função assistencial se tornou tão grande que se sobrepôs à educativa.

Isso foi notório durante toda a época da pandemia e volta a sê-lo agora, com as greves e a necessidade de decretar serviços mínimos. Na realidade, os serviços mínimos decretados não são mais do que o assumir por parte da tutela que o estado social faliu. Faliu porque se esgota na escola toda a oferta social.

Por isso, hoje, pouco importa se os professores são competentes, académica e pedagogicamente, porque o que lhes é pedido é que sejam guardadores em centros de dia, que sejam administrativos e que informem os pais das faltas dos filhos, que aceitem, sem levantar questões, as justificações, a bem dos números para o abandono escolar.

Que sejam capazes, em turmas numerosas ou de multinível, de detetar a dislexia, os défices cognitivos, os abusos familiares, a violência doméstica, o bullying, que referenciem à Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), que escrevam os relatórios, que recolham evidências daquilo que afirmam. Sempre as evidências que funcionam como garante da idoneidade. Pedem-lhes que façam quase tudo, que os meios são poucos, e no final, se houver um tempinho, que ensinem qualquer coisinha. Sim, qualquer coisinha é aquilo a que se resumem as aprendizagens essenciais. Mas também lhes pedem que não sejam demasiado exigentes. Nada de grandes exigências, para evitar o insucesso escolar.

Insucesso que se deve, dizem, à inépcia dos professores, pois reina a ideologia de que nunca será exigido à criança ou jovem de hoje qualquer esforço suplementar para que consiga passar obstáculos.

O decreto de lei 54/2018 tratará de adaptar aos mínimos para que o sucesso seja alcançado.

Também pedem que lidemos com a indisciplina escolar, que aceitemos o perturbador, prejudicando os demais, que sejamos inclusivos e que por isso sejamos capazes de captar a atenção de duas dezenas de alunos e ainda atender ao que é autista e acaba de agredir o colega, ou à que tem trissomia 21 mas não comunica convenientemente.

Pedem que aceitemos a inclusão candidamente, quando sabemos que é altamente prejudicial, excluindo duplamente. Exclui aquele que carecia de cuidados específicos e aqueles que são prejudicados pela presença do primeiro.

Pedem que simulemos sucesso, que evitemos abandono, que ensinemos poucochinho, que avaliemos assim-assim. O importante é garantir a permanência de todos dentro do estabelecimento escolar, o importante é a escola continuar a fazer o papel social de alimentar quem vê na escola a sua única fonte de sustento.

Ninguém quer saber se os alunos têm falta de aulas por falta de professores, se perdem aprendizagens porque ninguém mais quer ser professor, se perdem aprendizagens porque os professores entram em depressão devido à sobrecarga de trabalho estupidificante e de competência alheia, que os impede de serem intelectuais, de serem ativamente evolutivos, de serem professores!

Por tudo isto, temos novamente os professores na rua. No passado dia 11, no espaço de dois meses, participei na minha quarta manifestação, fora as vigílias à porta da escola ou os plenários em frente ao Ministério.

Ter os professores na rua é uma das consequências das políticas implementadas nas últimas décadas. Para entendermos a consequência temos de fazer uma análise das causas que nos trouxeram aqui. Temos, devia ser, têm. Aqueles que nos governaram estas última duas décadas.

Mas, a ouvir o que disse a ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues, “não sei nem quero saber como aqui chegámos”, percebe-se que ou somos nós, professores e sociedade civil, a lançar estas discussões publicamente ou ficaremos órfãos de discussões sérias, apesar de complexas.

É inegável que as reivindicações dos professores são justas – o andar com a casa às costas 15 ou 20 anos, os baixos salários, a proletarização da profissão, a burocracia estupidificante, a inexistência de carreira real, com os congelamentos e quotas. Mas o que se passa atualmente é muito mais do que as simples, permitam-me que assim as apelide, reivindicações profissionais dos professores. Digo isto porque elas já são antigas e então fica difícil para muitos perceber porquê agora? Porque é que, se são reivindicações antigas, estão agora na mó de cima?

Porque a perceção que tenho do terreno, das inúmeras conversas que vou tendo com centenas de colegas, e daquilo que vou lendo, é que essas, não sendo de somenos importância, são a gota que faz transbordar o copo.

Certamente concordarão que é reconhecido que os professores são uma classe profissional academicamente formada, intelectualmente apta. Só assim faz sentido serem professores. Uma classe que não seja intelectualmente ativa, que não veja necessidade de aprofundar o seu conhecimento, que não seja capaz de refletir práticas, que não busque constantemente a evolução, seja no conhecimento, seja na sua prática pedagógica, não é uma classe de professores, é um aglomerado de proletários.

É desta escola que os professores reclamam hoje na rua, é esta a escola que os professores sabem que não querem. A escola dos mínimos, a escola que, orgulhosa e propositadamente, ignora a intelectualidade dos seus atores, olha-os com suspeita, desconfiança e por isso burocratiza-os e proletariza-os.

Não é esta a escola que os professores querem, não é esta a escola que eu quero, não é esta a escola que devemos querer.

É urgente debater estas questões publicamente, a urgência deste debate deve-se, sobretudo, ao facto de estarmos com uma carência sistémica de professores. Os que já o são estão na rua, exigindo melhor educação, os que não são não vão querer ser, e mesmo aqueles que um dia pensaram em seguir a profissão estão, agora que veem os professores na rua, a recuar.

Só teremos melhor educação quando conseguirmos aproveitar os bons professores e, ao mesmo tempo, captar os melhores estudantes para esta profissão. Esse feito só se consegue quando formos capazes de tornar a carreira atrativa. Não há jovem hoje que ao escolher a sua profissão não preveja o futuro e a forma de progressão profissional.

Dignificar a profissão, tornando a carreira mais atrativa, passa em primeiro lugar por devolver alguma respeitabilidade aos professores, devolvendo o tempo de serviço efetivamente trabalhado para efeitos de progressão. É desonesto subtraí-lo. Valorizar o conhecimento, apostando no rigor e na exigência da formação inicial de professores, valorizar a experiência e a formação académica, bonificando aqueles com maior grau académico e eliminando os garrotes economicistas, as malfadadas quotas, que desvirtuam o empenho, desmoralizam a aquisição de conhecimento e deterioram o clima organizacional.

Dignificar é pagar vencimentos condignos, que permitam que os professores possam viver com dignidade cultural e intelectual, que possam ter acesso à cultura, à formação relevante, que possam aprender ao longo da vida.

Dignificar é garantir que não seja por falta de capacidade financeira que faltam professores em várias zonas do país, subsidiando se necessário. Criar condições organizacionais promotoras de ambientes saudáveis de aprendizagem, começando desde logo por rever o modelo de gestão dos estabelecimentos de ensino, recuperando a sua democraticidade. Revalorizando o currículo, que tem sofrido demasiadas alterações de eficácia pedagógica questionável, de que são exemplo as já referidas aprendizagens essenciais, dar autonomia às escolas para que, mediante os contextos onde se inserem, possam reduzir o número de alunos por turma e definir o máximo de alunos por professor. Escolher que modelo de avaliação se quer e qual o seu propósito, rever o diploma de inclusão entre tantas outras questões que tem trazido retrocesso às escolas e à educação.

É esta a revolta dos professores que os levaram novamente às ruas. Esta é, ou pelo menos deveria ser uma luta do país, uma luta de todos nós. Devemos estar todos revoltados com o estado a que a Educação do país chegou, não só os professores, não só as pessoas que trabalham nas escolas, não só os alunos ou aqueles que são pais, a revolta deve ser de todos, por uma educação de qualidade, custe o que custar.

Alberto Veroseni

Fonte: Observador por indicação de Livresco

domingo, 19 de fevereiro de 2023

A motivação é importante... mas não chega!

Numa conhecida fábula de Esopo, uma tartaruga ganha uma corrida a uma lebre. Nada fazia prever que a tartaruga sequer terminasse a corrida, mas o seu esforço constante e a sua motivação compensaram a desvantagem inicial. Esta fábula ilustra como factores psicossociais, tais como o esforço continuado, a autorregulação do comportamento, e a motivação podem levar a resultados positivos. Será que estes factores também podem prever o sucesso escolar? Parece que sim, mas apenas quando os alunos já apresentam algum nível de sucesso, ou seja, se a tartaruga nunca tivesse corrido anteriormente, provavelmente não teria ganho à lebre.

Num recente artigo publicado no Journal of Educational Psychology, Yi-Lung Kuo e outros investigadores acompanharam o progresso de mais de 3 000 alunos do 7.º ao 12.º ano, medindo o seu desempenho escolar e diversos factores psicossociais. Os alunos americanos, com idades entre os 12 e os 15 anos, quando foram testados pela primeira vez, responderam a escalas nas quais pontuavam quanto concordavam com diversas afirmações. Estas escalas mediam três factores: motivação (incluindo disciplina para estudar, compromisso para com a escola, e optimismo), controlo social (incluindo atitudes da família quanto à educação, envolvimento da família com a escola, relações com os empregados da escola e clima de segurança na escola) e autoregulação (incluindo gestão de sentimentos, conduta ordeira, e pensar antes de agir). Os alunos fizeram também testes de escolha-múltipla em Inglês, Matemática, Leitura, e Ciências.

Os resultados obtidos indicaram que, do 7.º ao 9.º ano, as alunas do sexo feminino tinham resultados mais elevados em motivação e controlo social do que os alunos do sexo masculino. A evolução dos resultados escolares indicou que tanto o sucesso escolar dos anos anteriores como o nível de motivação e controlo social previam o sucesso escolar no 11.º e 12.º anos. A contribuição da motivação e do controlo social para o sucesso escolar foi para além da contribuição do sucesso escolar anterior, mas apenas para os alunos que já tinham melhor aproveitamento escolar. Os alunos com pior aproveitamento escolar aparentemente não foram beneficiados por terem maior motivação ou controlo social. Isto é, os efeitos positivos da motivação e do controlo social no aproveitamento escolar parecem ser maiores para os alunos com melhor rendimento escolar. No caso da autoregulação, também se verificou que alunos com melhor aproveitamento beneficiaram mais de uma elevada autoregulação do que alunos com pior aproveitamento, mas apenas quando estes eram do sexo feminino. Neste caso, as alunas com pior aproveitamento e com maior autoregulação apresentaram mesmo piores resultados escolares. Este é um exemplo do efeito de Mateus, um fenómeno observado em várias intervenções educativas que beneficiam os alunos que já tinham melhor aproveitamento escolar, mas não ajudam ou chegam mesmo a prejudicar os alunos com pior desempenho. Este efeito explica como, em diversos casos, estratégias educativas, mesmo quando parecem aumentar o desempenho escolar em média, acabam por aumentar as diferenças entre os alunos com melhor e pior aproveitamento, uma vez que os alunos com melhor rendimento escolar ganham mais com a intervenção do que os alunos com pior rendimento escolar.

Estes resultados são semelhantes aos resultados obtidos em estudos anteriores, indicando um pequeno mas identificável efeito da motivação no desempenho escolar (por exemplo, Hustinx et al., 2009; Steinmayr & Spinath, 2009). Também a importância da família e do contexto social dos alunos para o desempenho escolar já tinha sido apontada noutros estudos—por exemplo, alunos cujos pais se envolvem mais na suas actividades escolares parecem ter melhores resultados do que alunos cujos pais apresentam menor envolvimento (ver Hill & Tyson, 2009).

Os resultados deste estudo indicam que alunos do secundário que já tenham desenvolvido uma base de conhecimentos sólida poderão beneficiar de intervenções que aumentem a sua motivação, controlo social, e auto-regulação. É, no entanto, importante que os educadores compreendam que trabalhar estes factores psicossociais não trará necessariamente benefícios para os alunos que apresentam um desempenho escolar negativo. Também os pais têm um papel relevante na educação e é importante que reconheçam que atitudes positivas em relação à escola e envolvimento na educação dos seus educandos poderão melhorar o seu desempenho escolar, quando já existe uma base de conhecimentos sólida.

Em suma, factores psicossociais parecem ter alguma importância no sucesso escolar, mas, como vimos, este estudo deixa em aberto a questão de como fazer com que alunos com pior sucesso escolar possam beneficiar também de maior motivação, de uma boa gestão dos seus sentimentos e comportamentos, e do envolvimento da família e da comunidade. Os investigadores não respondem a esta questão, mas podemos pressupor que é necessária uma boa preparação dos alunos desde os níveis mais básicos de educação e que envolvam o uso de estratégias de ensino que parecem beneficiar todos os alunos, como a utilização da prática de recuperação, o uso de feedback, e o espaçamento das sessões e matérias de estudo. Como na fábula da lebre e da tartaruga, não terá sido apenas a motivação da tartaruga que lhe garantiu a vitória na corrida, mas, provavelmente tratava-se de uma tartaruga que passou muito tempo a treinar até conseguir correr, mesmo que mais lentamente do que a lebre.

Referências

Hill, N. E., & Tyson, D. F. (2009). Parental involvement in middle school: A meta-analytic assessment of the strategies that promote achievement. Developmental Psychology, 45, 740 –763.

Hustinx, P. W. J., Kuyper, H., van der Werf, M. P. C., & Dijkstra, P. (2009). Achievement motivation revisited: New longitudinal data to demonstrate its predictive power. Educational Psychology, 29, 561–582.

Kuo, Y. L., Casillas, A., Allen, J., & Robbins, S. (2021). The moderating effects of psychosocial factors on achievement gains: A longitudinal study. Journal of Educational Psychology, 113(1), 138–156.

Steinmayr, R., & Spinath, B. (2009). The importance of motivation as a predictor of school achievement. Learning and Individual Differences, 19, 80–90.

Ludmila Nunes

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Nas mulheres o diagnóstico de espectro de autismo chega tarde: "A pessoa que procurei definir durante 21 anos apareceu à minha frente"

Chamavam-lhe “drama queen”, chegou a estar medicada para uma depressão. Sara, como Carolina, precisou de mais de 20 anos para receber um diagnóstico de Perturbação do Espetro do Autismo. No dia em que lhes deram os diagnósticos tudo fez mais sentido: "Estou a tentar desfazer a minha máscara, mas leva tempo"


Carolina Silva tem 24 anos, mas só há três é que lhe foi identificada uma Perturbação do Espetro do Autismo (PEA). “De repente tudo passou a fazer sentido.” Já Sara Rocha, de 32 anos, recebeu o diagnostico aos 29: “Foi uma descoberta enorme, tive que reavaliar a minha vida”. A elas juntam-se outros adultos, especialmente mulheres. Mas porquê?

“O viés de género faz com que os traços particulares femininos de autismo sejam subvalorizados ou confundidos com outras patologias”, explica Adriana Sampaio, professora e investigadora da Universidade do Minho com foco nos processos de neurodesenvolvimento. Assim, surge também um diagnóstico mais tardio: “As raparigas são diagnosticadas significativamente mais tarde do que os rapazes, em cerca de 20 meses.” A perturbação é diagnosticada em raparigas, em média, aos 81,26 meses, ou seja, perto dos sete anos de idade. Apesar de não haver dados sobre isso - uma vez que os estudos são por norma realizados em idade escolar ou infantil – “sabe-se que muitas mulheres só vão receber este diagnóstico mais tarde, no final da adolescência ou início da vida adulta”.

Ao longo de 21 anos, Carolina Silva viveu com “vergonha de ser autêntica.” A confirmação médica de que se encontrava no espetro do autismo fez com que se sentisse “finalmente livre para agir naturalmente.” O nome atribuído ao que sentia funcionou como “uma peça do puzzle.”

Apesar da identificação tardia, Carolina passou a ter um nome para dar à forma como via o mundo. Antes da PEA, já tinha sido referenciada com Perturbação de Défice de Atenção e Hiperatividade. Numa consulta de psiquiatria para esta patologia, a “médica comentou que talvez tivesse autismo.” Contudo, a profissional considerou que Carolina “não seria ‘autista que chegue’.” A opinião da psiquiatra fez com que Carolina mudasse para uma terapeuta com especialização na área.

Agora, o diagnóstico fez com que conseguisse olhar para si mesma fora das normas sociais. “Finalmente tive o à-vontade para fazer uma introspeção acerca de vários aspetos pessoais e intrínsecos à minha noção de “eu”, desde a minha identidade e expressão de género aos meus hobbies e gostos pessoais.”

“O diagnóstico de PEA é três a quatro vezes mais frequentemente em rapazes do que em raparigas”, refere Adriana Sampaio. Este número, na ausência de défice intelectual, pode chegar a um rácio de 10 rapazes para uma rapariga. De acordo com Nuno Lobo Antunes, neurologista e diretor do PIN - Centro para as Perturbações do Desenvolvimento, a PEA é definida através do DSM-5. “Um manual de diagnóstico e estatística que foi criado nos Estados Unidos para definição dos sintomas característicos das perturbações relacionadas com a saúde mental. Este manual defende que a PEA é uma perturbação do neurodesenvolvimento. Tem uma base biológica e inclui sempre dificuldades na interação social e interesses restritos ou necessidade de rotinas ou comportamentos ritualizados/repetitivos”.

“DEPAREI-ME COM O FACTO DE QUE O AUTISMO SÓ FOI INVESTIGADO EM MENINOS”

A professora universitária esclarece que “as mulheres parecem ser protegidas por mecanismos biológicos e hormonais, parecem ser mais empáticas. Possivelmente, devido a mecanismos compensatórios e de utilização de estratégias de ‘camuflagem’ dos sintomas que caracterizam a perturbação”. A camuflagem social, também conhecida como ‘masking’, é um conjunto de estratégias que os indivíduos com a patologia usam para esconder comportamentos próprios da perturbação.

Carolina sente que sempre foi esperado dela um “comportamento de menina”, que envolvia “falar de uma forma passiva e bem-educada, uma postura perfeita, um comportamento exemplar”. Sente “sorte” porque estas expectativas nunca vieram da parte dos pais. “Assim fui tendo espaço para ser o meu “eu” estranho e livre. Mesmo assim, ainda hoje a minha voz muda quando falo com figuras de autoridade. Estou a tentar desfazer a minha máscara, mas leva tempo. Acho que isto é uma coisa que todas as mulheres sentem, mas as pessoas autistas que cresceram como raparigas sentem-no a dobrar.”

Foram os comportamentos mais sociáveis que deixaram Sara sem diagnóstico. Procurava dar um nome àquilo que, segundo a mãe, a “tornava diferente das outras crianças”. Quando era mais nova conseguia fazer “check” nos “traços típicos de autismo”, mas o psicólogo achou que “não podia ser autista porque tinha amigos”. Procurou um diagnóstico em adulta porque leu num livro que “havia falta de investigação focada nos problemas das mulheres”.

“A investigação científica tem avançado algumas hipóteses explicativas do subdiagnóstico de PEA em mulheres. Uma das hipóteses que tem reunido algum consenso na literatura é a de que a PEA no sexo feminino se manifesta de forma diferente da que é observada no sexo masculino”, esclarece Adriana Sampaio. Sabe-se que, “historicamente, o modelo masculino tem sido a referência para as questões de saúde humana”. E, por isso, “tanto os critérios como os instrumentos de diagnóstico têm sido baseados numa apresentação masculina do que é o autismo.”

Com 29 anos, na altura, passou a ter de “reavaliar a vida”. “Nós temos uma perceção sensorial diferente, sentimos o som, a luz, o cheiro de forma diferente e isso tem impacto na socialização. Podemos ter dificuldades de comunicação não verbal, ou seja, haver comunicação errada por não entendermos a comunicação”.

Considera que é uma perturbação que “historicamente tem muita desinformação” e, por achar que “existe falta de conhecimento sobre o que é que é o autismo na vida adulta”, Sara fundou a associação “Voz Autista”. “Eu e mais alguns adultos com autismo achámos que fazia sentido criar uma associação feita por nós. Somos uma associação totalmente gerida por pessoas com perturbação do espetro do autismo, apesar de termos especialistas e pais a trabalhar connosco. O nosso intuito é realmente desenvolver projetos de educação, empregabilidade, saúde e dar apoio a autistas.” A associação pretende passar a mensagem que “cada autista é um autista” e, por isso, pretendem “mudar a perspetiva do que é realmente a PEA.”

Uma das maiores dificuldades que as mulheres com PEA sofrem, segundo Sara, é a sensibilidade sensorial. “Somos por vezes chamadas de drama queens e pedem-nos para parar de fazer birra. Não é uma birra, mas é uma reação neurológica”.

"FICAM BASTANTE MAIS ALIVIADAS AO SABEREM QUE EXISTE UM NOME PARA O QUE SENTEM”

Além da ausência de um tratamento adequado, o diagnóstico tardio pode ter diversas consequências. “Algumas das estratégias documentadas que são utilizadas pelos indivíduos do sexo feminino, como a ‘camuflagem social’, têm um custo. São processos altamente exigentes que as fazem mais vulneráveis a experienciarem emoções negativas. Como é o caso da ansiedade, dos sintomas depressivos, das perdas de identidade e da baixa autoestima, dos comportamentos autoinfligidos e dos pensamentos suicidas”, explica a investigadora Adriana Sampaio.

Devido a esses sintomas, Carolina chegou a estar medicada para uma depressão. "Na altura eu apresentava sintomas de depressão, mas sinto que nunca me foi permitido explorar o que realmente estava a dar aso a esses sintomas. O médico já tinha um plano para mim, e mesmo quando eu mencionei a possibilidade de um diagnóstico de neurodivergência, isso foi desvalorizado. Não parecia autista que chegue.”

“Cada vez mais vejo as pessoas de meia-idade, sobretudo mulheres, mas não só, que me procuram para saber se muitas das dificuldades que têm tido na vida e da sensação de indiferença que têm em relação às outras pessoas, se resulta da possibilidade de terem uma alteração de espectro de autismo. Portanto, muitas dessas pessoas sofrem ao saber que há algo nelas que é diferente dos restantes, sem saberem exatamente o que é que têm de errado, ou se é da responsabilidade delas, ou, enfim, qual a causa das suas dificuldades. E ficam bastante mais aliviadas ao saberem que existe um nome”, refere o neurologista Nuno Lobo Antunes.

Os sintomas acabam por ter uma “manifestação única nas mulheres, sobretudo naquelas que apresentam discurso mais fluente e melhores capacidades intelectuais, comunicativas e sociais”, explica a professora universitária. Isto pode levar a que, para além do diagnóstico tardio, este esteja incorreto ou não aconteça.

Com o diagnóstico correto, Carolina destaca a importância que as “rotinas” passaram a ter no seu dia a dia. “Tenho algumas dificuldades em perceber as necessidades básicas do meu corpo: muitas vezes esqueço-me de comer porque raramente sinto fome. O mesmo acontece com dormir e idas à casa de banho. Se não fizer um esforço para me lembrar, estas necessidades passam ao lado.”

Mas as dificuldades não ficam por aí. “Aquilo que sempre me afetou mais, e continua a afetar, são as questões sensoriais: certos tecidos fazem-me ficar enjoada, certos ambientes com barulho e/ou luz intensa fazem-me desesperar.” Quando era mais nova sentia “dificuldade em ler situações sociais” e a relacionar-se “com pessoas neurotípicas” (pessoas sem nenhum distúrbio neurológico). Agora assume ter “truques” que a ajudam a “navegar pelo mundo.”

Fonte: Expresso por indicação de Livresco