"Conta-se que, há muito tempo, num pequeno vale abrigado por grandes pedras arredondadas, a que chamam agora barrocos, vivia uma pequena comunidade de gente corajosa, simples e afável." O companheiro António Bordalo conta este esboço de lenda de supetão, como o vento, murmurejando de mansinho entre as pedras do caminho o mito desgarrado da Cabreira, a aldeia, e da menina pastora a quem chamavam cabreira, ou com ternura cabreirinha, que percorria os caminhos de urzes e giestas apertados pelo caos sem fim de blocos graníticos pousados sobre os montes ondulantes que se estendem até ao horizonte e subia ao barroco mais alto para saudar o dia.
Na Beira Interior, na raia com Espanha, a oeste do Côa, no fim da estrada sem saída, naquele "sítio atrás do sol-posto", está a ser construída uma história bonita com obstáculos — e em boa hora houve obstáculos —, está a crescer uma aldeia, que fez pessoas, que fizeram uma aldeia, que molda pessoas, guias e mestres artesãos. E milagres e coisas que só existem aqui, barrocos colossais, movimentos tectónicos, fissuras, bolas de barro, bolas de lã de ovelha e bolas de pão que nunca saem iguais. Aqui, os dias fazem-se redondos, limam-se arestas, arredonda-se o que está bicudinho. Não se deixa ninguém para trás. Dá-se colo. Interpreta-se um lugar. E, quando a lenda se transforma num facto, imprime-se a lenda.
Dentro de um grande parêntesis — e gravada em todas as rochas — fica a história da ASTA, Associação Sócio Terapêutica de Almeida juridicamente fundada a 26 de Outubro de 1998 e que iniciou actividade dois anos depois na casa da fundadora, Maria José Dinis (mãe de Marco, que nasceu com deficiência mental), na sua aldeia de origem, Cabreira do Côa, concelho de Almeida. "Começou com pessoas da própria aldeia. Íamos e vínhamos num Opel Corsa velhinho, cinco, seis, sete dentro do carro. Foi assim que começámos, de uma forma bonita, fraterna e muito estimulante", conta à Fugas Maria José, que nasceu à lareira da sua casa de pedra. "Éramos muito artesanais até nisso."
Até hoje, o objectivo sempre foi oferecer às pessoas necessitadas de cuidados especiais (essencialmente jovens a partir dos 18 anos com deficiência intelectual e multideficiência) uma alternativa de vida válida e plena de sentido, contribuir para a sua integração social, humana e económica, criando condições de vida o mais "normais" e verdadeiras possíveis. E "em boa hora houve obstáculos, que às vezes nos decepcionam tanto. Que bom! Porque assim dinamizamos esta aldeia e não partimos para outra", recorda.
Engendrou-se muito. Inventaram-se soluções. A aldeia da Cabreira, com uns 40 habitantes fixos, foi-se transformando numa "casa grande" onde neste momento convivem 43 companheiros e 42 colaboradores da ASTA distribuídos entre a aldeia de pedra, onde foram criados gradualmente núcleos familiares, e o centro desenhado pelo arquitecto alemão Fritz Wessling, erigido em 2004 no alto da Fonte Salgueira, a dois quilómetros da aldeia, um equipamento constituído por três edifícios que permitem dinâmicas pedagógicas, terapêuticas e sociais: Casa Verde Pino (com oficinas, auditório e espaços administrativos e terapêuticos), Casa da Fonte (residência dos companheiros mais dependentes) e Oficina de Carpintaria.
A ASTA agarrou nos "costumes que existiam na aldeia" e nas "coisas endógenas", criando uma linha pedagógica muito própria que aproveita as "idiossincrasias" da própria aldeia, da região e "deste interior que tem culturas diferentes, coisas que só existem aqui e que não existem a cem quilómetros". "Tudo fazia sentido", explica Maria José Dinis, força tectónica, promotora de uma mudança de comportamento das pessoas da Cabreira e arredores em relação ao outro, de "despreconceito" em relação às pessoas com deficiência.
"E esta aldeia começou a mudar na sua forma de estar. Temos tudo aqui para fazer coisas boas, bonitas, sustentáveis e saudáveis. E não é uma sustentabilidade inventada, politicamente correcta só no papel. Somos capazes de sentir e de emanar coisas que outros seres não conseguem. Somos um manancial de coisas extraordinárias. Se estivermos atentos a elas, podemos percebê-las."
Maria José fala por todos os "companheiros, que aprenderam a fazer tanta coisa" e que o fazem com um olhar único e um toque singular. "E há tanta gente que não sabe como funciona um tear ou que nunca tocou na lã de ovelha... Eles conhecem e calcorreiam estes caminhos de cabras. Porque é que eles não podem ser guias e mestres?"
Turismo de quem não quer "ruídos habituais"
Dois dias depois, podemos dizer com segurança que são os melhores guias e mestres que já nos passaram pelas mãos. Os melhores do mundo. Na simplicidade com que nos explicam a paisagem. Na forma naïf e desarmante com que nos ensinam. "Mas que saboroso é não termos alguém cheio de pretensões. E termos alguém que, na sua naturalidade, espontaneidade e genuinidade, nos diz as coisas da forma mais simples que todos podem entender." E porque não gerar emprego, introduzindo os companheiros no mundo do trabalho e da profissionalização — algo tão difícil para muitos de nós; "imagine-se para eles..."
Contigo, Há Descoberta é um turismo que quer "transformar deficiências em eficiências", explica-nos Anémone Leton, promotora deste negócio de turismo inclusivo, social e de natureza integrado nas respostas sociais já dadas pela instituição e cuja identidade se reflecte num conceito de cinco S: silêncio, saberes, sabores, simplicidade e sustentabilidade. Turismo "de quem se quer descobrir através do outro", sugere Maria José. "De quem não quer os ruídos habituais e quer escutar e ser escutado e autenticidade sem subterfúgios".
Os companheiros, poucas palavras e muitos carinhos, "são muito dedicados", sorri Anémone, responsável por todas as peças deste puzzle dentro do puzzle, pela formação contínua de dez companheiros ao longo dos últimos três anos. Cada um tem a sua especialidade. Alguns são mestres nas suas oficinas, outros conduzem visitas guiadas às aldeias de Almeida e Castelo Mendo ou calcorreiam ao nosso lado os percursos pedestres da Cabreira. Aprendem e servem na cozinha profissional da Casa São Francisco (sob orientação de Paula Dente, a cozinha pedagógica que funciona numa casa velha doada à ASTA e recuperada dentro do contexto do Programa PRODER serve quase cem refeições duas vezes por dia e recolhe, transforma e conserva os produtos do atelier de agricultura biológica) e preparam a casa para os visitantes (a Fugas ficou na Casa Mateus, preparada com muito carinho pelas companheiras Sónia, Lurdes e Dulce). "São eles os nossos principais actores. Nós só apoiamos e damos segurança. Quem nos visita, aprende ao lado deles", diz Anémone Leton, explicando que o projecto ocupa "dez, quinze por cento" do tempo dos companheiros, que por este trabalho têm um contrato com remuneração justa.
A abertura do dia, a grande roda, faz-se no salão ou à volta de uma masseira cheia de matéria a levedar. O ritual assegura o ritmo e a segurança da rotina. Porque "às vezes esquecem-nos de respirar". Foco no presente. Na Carpintaria, todos vestiram a bata. "Faço questão de explorar as capacidades de cada um e de tentar atenuar as dificuldades", diz-nos Pedro Pimentel, monitor há 15 anos "sem dar por ela" ("o meu recorde do mundo num sítio era de um ano", sorri).
Atarefados, torno a postos, estão José Pereira, especialista em carrinhos e camiões, Nuno Marques, entalhador (são aqui fabricadas as placas de madeira que identificam os espaços pela Cabreira fora e muitas encomendas para fora), Sara Silva, João Coelho e Marco Dinis ("é graças ao Marco que estamos aqui todos"), a tornear uma tábua de queijo que nunca sai igual à anterior. "Das 40 e tal ferramentas, basta dominar três ou quatro. Os objectos saem todos diferentes, mas eles são capazes de começar e de acabar algo. Têm poder sobre a matéria. É óptimo assistir a milagres de companheiros que, de outra forma, estavam superprotegidos em casa."
Partiu-se o molde. São peças únicas. "São coisas fora do normal", descreve Elisabete Fonseca, 55 anos, monitora de Olaria há 20 anos. António Matias está a fazer uma bola bem redonda, trabalhando a motricidade fina e a concentração. Sente "a energia a passar na matéria", assim como António Bordalo e Filipe Tavares, também com os dedos espetados na argila, retirando as bolhas de ar, como se amassassem pão. "Às vezes passamos a bola de mãos em mãos e de olhos fechados para percebermos quando é que a nossa bola regressa às nossas mãos." Entretanto, Fátima Gonçalves, que só tem força numa mão, vai serrando pauzinhos para os espanta-espíritos. "Não temos que fazer tudo certinho. Gosto mais de coisas diferentes, coisinhas únicas. Nunca é nada igual. Nunca sai igual e isso é que é o bonito da olaria. O barro é terra", comenta Elisabete.
Na Tecelagem, Cristina Fonseca, na ASTA desde o início, trabalha um "material quente". "Muitos companheiros precisam desse ambiente acolhedor. Existe esse cuidado de ver o que é que cada companheiro mais necessita", aponta. "Fisioterapia natural", resume. Paulo Bulha está a dobar e Paula Filipe ao comando de uma carda terapêutica, enquanto Maria Lurdes tece mais um painel num tear vertical. Falta João Coelho, tecelão, que este ano decidiu fazer as manhãs na Carpintaria. "Usa a lançadeira com a única mão que usa." Vimo-la em acção com o formão. "Na Tecelagem usamos material reciclado, roupas velhas, coisas de lojas que vão fechar e de pessoas idosas que nos deixam a sua cestinha de fios. Transformamos em coisas bonitas."
"O trabalho é uma terapia", comenta Maria José Dinis. "Sentimo-nos úteis. Fazemos parte do enriquecimento humano de uma comunidade. Dizemos-lhes 'vocês são muito importantes, têm algo para dar'. Aumenta a auto-estima, a autodeterminação, a sua capacidade de saber fazer, de aquisição de competências. Normalmente as pessoas com deficiência são os coitadinhos 'deixa lá, eu faço'. Isso é discriminar pela positiva. Eles podem fazer coisas, cada um no seu tempo. Estão a contribuir para o crescimento de alguma coisa."
Até a natureza conspira
Cresce a identidade. "Aqui não são uns coitadinhos institucionalizados", sublinha a fundadora da ASTA que partiu da Cabreira aos dez anos e às tantas sentiu que "o sonho tinha que ser cumprido lá, naquele sítio atrás do sol-posto". "Quando o projecto é honesto e necessário, até a natureza conspira." Cresce a auto-estima. "Não têm noção de que sabem fazer tanto. Duvidam deles próprios. Graças ao Contigo, enfrentam pessoas de fora. Falam em público. Trabalham a postura, a endireitar a coluna, a dizer com as suas palavras", junta Anémone Leton, 32 anos, que deu a volta ao mundo (Interrail aos 18 anos, EUA e Canadá de mochila às costas, um ano pela Nova Zelândia na companhia de Tony Ladeiro numa autocaravana a aprender sobre os princípios da permacultura e da agricultura regenerativa).
"Quando voltámos já não queríamos viver numa grande cidade. Já não fazia sentido. Queríamos espaço." Por perto ficaram — e em casa, na Miuzela, já nasceu Rafael, dois anos em Março. "Assumi o papel de capacitar os companheiros a conduzir as actividades. Um desafio grande. Há dias em que parece que esqueceram tudo. Temos que gerir o dia-a-dia. É sempre uma surpresa. Sempre diferente. Nunca é igual."
Cresce a Cabreira. Multiplicam-se as placas de madeira talhadas que identificam casas de pedra renovadas e ocupadas. A Casa da Oliveira, a Casa Cristalina, estalactites de gelo a pingar na Rua do Tear, a Casa São Miguel, perto da antiga estrutura de madeira usada para ferrar os animais de uma aldeia com uma calçada de quartzo, pedras pousadas sobre as telhas, uma Rua da Música (os instrumentos do grupo filarmónico estão guardados no café), cheiro a flor de sabugueiro e vistas desafogadas para o grande barroco de formas mutantes. E uma estrada sem saída. "Só cá vem quem vem de propósito."
A meio da curta Rua do Filipe, junto aos tanques comunitários, a Oficina 3 Ofícios não pára. Aprendemos com Tânia Martins, mestre da lã, a moldar as bolas de lã de ovelha, adensando-as com uma agulha ("A bola de lã é o primeiro objecto de conquista. É o círculo. Faz muito sentido. Não deixamos ninguém para trás. Limamos arestas e arredondamos o que está bicudinho", explica Cristina Monteiro, monitora dos 3 Ofícios), e com Telmo Martinho, artesão de velas de cera de abelha com quem enrolamos o fio para o pavio, que mergulhamos na cera quente antes de o pendurar no gira-velas ("ou flor de velas", uma estrutura inventada na carpintaria). "Imperfeições da primeira vez", avisa Cristina. "Faz sentido criar coisas. Até o olhar deles brilha." Maria José concorda. "É uma alegria irem das suas casas para as oficinas. Eles já não poderiam viver sem isso."
A aldeia é como se fosse um colo
A última placa de madeira aponta a Quinta 3 Sóis (onde "conseguimos ver o sol a qualquer hora") no meio de uma paisagem deslumbrante de prados murados ao longo da Ribeira das Cabras e de pedras inclinadas que, diz-se, apontavam a direcção da aldeia mais próxima. Contam-se vinte ovelhas, dez cabras e as burras Georgina (o pai era o Jorge) e Natalina (nasceu no Natal) que João Pina foi arrear enquanto Carlos Rodrigues ensaca batatas e Sérgio Nunes apanha com cuidado os ovos dos ninhos das galinhas.
Distribuem-se tarefas desde cedo. Há quem participe na sessão de hipoterapia no picadeiro, na rega dos brócolos, nabiças, alfaces e repolhos na estufa, na preparação do pão no Cantinho do Artista e no "desamuar" do forno comunitário, que uma vez por semana volta a ter vida. "O forno era o sítio mais democrático e de maior igualdade da aldeia. Na igreja havia divisão de classes. A tasca era só para os homens. Aqui, conviviam todos os elementos das famílias. As crianças ficam à espera da bola, o resto da massa que raspavam da masseira, espalmavam e coziam no forno", conta à Fugas Luís Fonseca, 52 nos, presidente da Junta de Freguesia e fundador da ASTA ("É a família. Fui-me apaixonando") que por aqui cresceu e que foi assistindo à desertificação da aldeia. "Menos pessoas na aldeia, mais espaço no forno".
Muitos ajudaram a amassar na masseira construída na Carpintaria. Coube a Margarida Sousa traçar três cruzes na massa com a faca antes de a tapar com dois lençóis brancos. A massa só é transportada para o forno "quando as cruzes estiverem abertas", diz-nos Sílvia Firmino (há 15 anos com a ASTA), que ajuda a limpar o borralho do enorme forno no centro da aldeia. "O meu pai conta que dias depois da cozedura do pão jogavam às cartas lá dentro, onde estava quentinho."
Na véspera optáramos por conhecer a fundo uma aldeia histórica pela mão de Guilherme Anjos e de Tânia Martins, especialistas em Castelo Mendo e nas histórias das suas pedras sigladas e biseladas, nos enfeites das fachadas e nas argolas de ferro, nas lendas do Mendo e da Menda, carantonhas e gárgulas românicas — boa pontaria no barroco dos desejos. Hoje, temos tempo à risca para seguirmos a lenda da menina cabreira (e Milene Sieiro, António Bordalo e João Pina) através dos cinco quilómetros de prados e de alminhas que abençoavam as terras, das 14 noras e respectivos muros de regadio construídos pedra sobre pedra e dos abrigos dos pastores entre barrocos. Perdemo-nos por entre freixos e salgueiros, poejo e roseira brancas, amieiros e amoreiras do bicho-de-seda, silvas que dão amoras e folhas de videira que enriquecem um bom arroz malandro.
O percurso termina junto às éguas brancas Russa e Romana ao lado das oliveiras e amoreiras que se fundem com os muros de granito esculpido. O pão está a fumegar. "Desta vez, foram 54", contabiliza Luís Fonseca. "Às vezes são eles [os companheiros] a nossa terapia", sorri.
"Aqui sentimo-nos nós, sentimo-nos cada vez mais em paz. Aqui eu respiro", suspira Maria José Dinis. "A aldeia é como se fosse um colo."
Fonte: acesso livre da notícia, com fotos, em Público