“Em 2022, apenas 45 países faziam alguma referência a pessoas com deficiência, condições de saúde ou doenças crónicas nas suas políticas de adaptação climática. Esta é uma omissão flagrante em relação àquele que é
o maior grupo minoritário do mundo”, lê-se no
artigo assinado por quatro autores, entre eles o casal Penelope e Michael Stein, ambos afiliados à Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, em Cambridge, nos Estados Unidos.
Portugal está entre os países que estão a deixar a deficiência para trás no que toca à mudança do clima, de acordo com o
relatório Direitos da Pessoas com Deficiência nas Políticas Climáticas Nacionais, divulgado em Novembro de 2022 e citado na análise.
“A conclusão deste artigo não me surpreende minimamente. Nunca me senti considerada nos planos de evacuação em situações de emergência. Sabemos que as pessoas com deficiência ficam muitas vezes para trás em desastres naturais – e o furacão Katrina foi um exemplo disso”, afirma ao PÚBLICO Catarina Oliveira, nutricionista, activista pelas pessoas com deficiência e autora da página
@especierarasobrerodas.
Esta falha está longe de ser um problema português. Os especialistas que elaboraram o
relatório de 2022 do Painel Intergovernamental para as
Alterações Climáticas (
IPCC) procuraram informação relativa a este grupo vulnerável e, no fim, encontraram apenas dados “quase negligenciáveis de inclusão”.
As pessoas com deficiência são “excluídas de serviços humanitários e de saúde” durante eventos climáticos extremos como inundações, ondas de calor e fogos florestais, conclui a análise publicada na Nature Climate Change.
Esta exclusão assume várias formas e quase todas são pautadas pela carência. Falta acessibilidade. Faltam conteúdos informativos adaptados. Falta formação específica para os profissionais que vão prestar apoio ou cuidados. Falta compilar estatísticas de morbidade e mortalidade. Falta recolher e tratar dados sobre esta minoria (distribuição geográfica, por exemplo). E, por fim, falta representatividade nos próprios grupos de trabalho que definem a acção climática em cada país no globo.
“Infelizmente, esta é uma problemática transversal. Somos sempre mencionados nos relatórios como um grupo vulnerável, é referida a importância de proteger estes mesmos grupos, mas depois não são apresentadas medidas concretas. E faltam dados. Se não caracterizarmos este grupo, se não soubermos como estas pessoas estão distribuídas, como vamos desenhar políticas públicas para protegê-las?”, indaga Catarina Oliveira.
Sara Rocha, presidente da associação
Voz do Autista, dá como exemplo o facto de os últimos censos não fornecerem dados precisos e desagregados sobre deficiência. Ficámos a saber que Portugal têm mais de um milhão de
pessoas com incapacidade, mas “desconhecemos o número de autistas no país”, por exemplo.
Adaptar a informação
A análise publicada na Nature Climate Change sublinha a importância de haver informação em vários formatos acessíveis, ou seja, adaptados a pessoas com diferentes tipos de deficiência (sensorial, motora, cognitiva etc.). Uma pessoa autista, com limitações na comunicação verbal, pode beneficiar de conteúdos mais visuais. Já um indivíduo com baixa visão terá mais facilidade em aceder a formatos sonoros.
“Os investigadores podem contribuir garantindo que informações confiáveis relacionadas às mudanças climáticas sejam apresentadas em linguagem simples e acessível a pessoas com deficiência. Nos Estados Unidos, apenas 3,9% dos sites dos departamentos de saúde pública da cidade fornecem informações sobre mudanças climáticas”, refere a análise da Nature Climate Change.
A própria linguagem que emerge do domínio das alterações climáticas é complexa. Os conteúdos informativos usam muitas vezes palavras como adaptação e
mitigação – as duas frentes de combate contra a crise climática – sem dar exemplos concretos, sem recorrer a uma linguagem acessível. Para um público com deficiência intelectual, por exemplo, falar em “usar mais a bicicleta e menos o carro” pode ser mais eficaz do que falar em encorajar “medidas de mitigação”.
Quando os activistas falam em acessibilidade,
a ideia de acesso não se circunscreve apenas às rampas nas entradas de edifícios ou percursos sem barreiras. A acessibilidade pode ser um apoio financeiro para pessoas com deficiência poderem ligar o ar condicionado durante uma
onda de calor. E a inclusão pode traduzir-se num plano de evacuação que preveja zonas calmas, onde os estímulos sensoriais estão controlados, para melhor acolher pessoas autistas ou em estado de crise, confusão mental ou agitação motora.
Países desfavorecidos
“Com a inflação e o aumento do custo de vida, as pessoas com deficiência são as mais impactadas porque tendem a ser um grupo vulnerabilizado economicamente. Muitas pessoas não estão a conseguir aquecer a casa hoje. A maioria das pessoas com deficiência estão em países desfavorecidos – como podemos falar em ligar o ar condicionado com a crise energética?”, questiona a activista Sara Rocha, que trabalha como gestora de dados em investigação médica para a Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
As alterações climáticas afectam desproporcionalmente cerca de
mil milhões de pessoas com deficiência no mundo, sendo que 80 por cento desta população vive em países de rendimentos médios e baixos, incluindo
países insulares como Tuvalu e Kiribati. Por outras palavras, os grupos vulneráveis nestes países podem enfrentar diferentes camadas de dificuldade, incluindo o desafio de enfrentar desastres climáticos para os quais pouco contribuíram em termos de emissões de gases de efeito estufa.
A exclusão pode estar associada não apenas à deficiência, mas também à pobreza, à inacção climática e às alterações do clima. Estas mudanças nem sempre se traduzem em
eventos extremos; são muitas vezes lentas, quase invisíveis no dia-a-dia. É o caso da subida do nível do mar, que saliniza os solos, roubando território e prosperidade às populações. E
stas crises climáticas progressivas também “amplificam a exclusão” e acrescentam “barreiras”, refere o documento da
Nature Climate Change.
“Penso que ainda não chegamos ao ponto de olhar para as pessoas com deficiência porque, quando falamos de acção climática ou perdas e danos, ainda não conseguimos nem sequer chegar ao grande bolo da população vulnerável (do qual a deficiência faz parte)”, lamenta Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero.
Ondas de calor
O risco de saúde associado ao calor é influenciado não só por factores socioeconómicos, mas também por deficiências motoras, cognitivas e até por certos medicamentos. Isso quer dizer que além de idosos e doentes crónicos, pessoas com deficiência constituem um grupo muito vulnerável às ondas de calor.
“Ensaios clínicos incluindo pessoas com deficiência são, portanto, necessários para determinar os efeitos dos medicamentos na termorregulação durante o tempo quente. Taxas desproporcionais de pobreza entre pessoas com deficiência limitam a disponibilidade de electricidade ou ar condicionado. Investigações futuras devem considerar tipos específicos de deficiência ou subgrupos, bem como as preocupações cruzadas de género, raça e povos indígenas com deficiência”, recomendam os autores da análise.
Alguém que tenha uma lesão medular – paraplegia ou tetraplegia, por exemplo – tende a ser mais susceptível a variações térmicas, uma vez que têm “uma resposta fisiológica limitada para regular a temperatura corporal”, explica ao PÚBLICO David Peres, médico de saúde pública e provedor da pessoa com deficiência do município de Matosinhos.
“Nas lesões medulares, ocorrem alterações fisiológicas que afectam a produção de calor (devido à diminuição de massa muscular), assim como a dissipação de calor (alterações na perfusão dos tecidos e redução da capacidade de transpiração abaixo do nível da lesão)”, detalha David Peres, que se apresenta como um “cidadão com diversidade funcional (tetraplegia)”.
“Sinto quotidianamente esta limitação”, confessa o médico. Ele recorda-se de uma viagem exigente que fez entre o Porto e Lisboa, em pleno Verão, num carro sem ar condicionado. Quando chegou ao destino, David Peres estava em estado febril. “A minha temperatura corporal era de 38 graus Celsius, tendo necessitado de arrefecimento externo para conseguir reverter a situação”, conta.
Zonas verdes inclusivas
David Peres defende que os planos climáticos prevejam, entre outras coisas, “a existência de zonas verdes e com sombra acessíveis a todos”. Em Portugal, o Programa de Acção para a Adaptação às Alterações Climáticas (P-3AC)
determina a “prevenção de ondas de calor” através de medidas como a criação de “infra-estruturas verdes”, de áreas com sombra ou climatizadas artificialmente.
O arquitecto paisagista Paulo Farinha Marques acredita que há “cada vez mais há um esforço de inclusão quando se desenha um espaço verde”. Há, por exemplo, uma preocupação não só em adoptar pavimentos lisos, mas também em planear declives muito suaves (num ângulo inferior a cinco por cento), mesmo que isso obrigue a uma modulação do terreno.
“Nós desejamos que os espaços verdes tenham percursos que possam ser acedidos por toda a população”, garante o professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. “Com as contingências das ondas de calor, podemos apostar na criação de mais zonas de sombreamento, trabalhando com plantas que deixem cair as folhas durante o Inverno para permitir a passagem da luz nessa estação”, acrescenta.
Paulo Farinha Marques defende não só espaços públicos mais inclusivos, mas também biodiversos, permeáveis e de proximidade. Num mundo ideal, deveríamos todos ter uma zona verde a cerca de 500 metros de distância, o que também facilita o acesso a pessoas com dificuldade de locomoção. Estes pequenos “oásis” ajudariam refrescar em dias de calor extremo e a reter as águas pluviais das grandes chuvadas. Constituem medidas de adaptação climática e, simultaneamente, graças à multiplicação da cobertura vegetal, de mitigação da crise do clima.
E a mitigação?
A análise da Nature Climate Change afirma ainda que as pessoas com deficiência estão a ser excluídas nas medidas não só de adaptação, mas também de mitigação. E recorda este grupo não pode ser ignorado durante a elaboração dos planos de acção climática para ser “encaixado depois”, quando tudo já foi definido, sem pensar nas necessidades específicas desta minoria.
Os autores referem, por exemplo, a inexistência de soluções verdes para carregar aparelhos auditivos. As pessoas surdas são obrigadas a utilizar uma quantidade assinalável de pilhas quando, se houver investimento tecnológico, poderiam estar a participar nos esforços de mitigação.
“Não existem aparelhos auditivos carregados a energia solar. Só há a pilhas. Há agora um sistema de carregamento eléctrico mas que é estupidamente caro – e não são comparticipados pelo Estado. Tenho de usar muitas pilhas, mesmo muitas. Mesmo que quiséssemos ser mais amigo do ambiente, não nos dão opções”, lamenta Sara Rocha.
Os autores do estudo exortam os investigadores e os líderes a terem um papel mais activo na inclusão das pessoas com deficiência nos planos climáticos. Este esforço também passa por encontrar medidas, políticas públicas e soluções tecnológicas que permitam não só proteger e apoiar esta minoria face à crise do clima, mas também envolvê-la nos esforços de resolução deste problema global.
“A tecnologia é mais impactante quando atinge populações com deficiência que foram marginalizadas. As associações de pessoas com deficiência podem ajudar na distribuição equitativa de, por exemplo, fornos solares de baixo custo que mitiguem as emissões”, recomendam os autores da análise.
“Há uma pressão enorme para sermos todos amigos de ambiente, mas temos de ter consciência de que algumas pessoas vão sempre precisar de mais adaptações – o que não significa que não estejam a lutar pelo planeta”, garante Sara Rocha, presidente da associação Voz do Autista.