segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Paralisia cerebral: Diagnóstico não é destino

Cristiana Marques é exemplo de que um diagnóstico não é sinónimo de um caminho sem esperanças. A vimaranense tem paralisia cerebral e embora não se defina por esta condição, assume que teve que ultrapassar desafios acrescidos e que identifica ainda muitas barreiras e entraves à plena participação na sociedade. Obstáculos que o presidente da Federação das Associações Portuguesas de Paralisia Cerebral (FAPPC), Abílio Cunha, também reconhece e, por isso, sublinha a importância do Dia Nacional da Paralisia Cerebral, comemorado a 20 de outubro, para dar mais visibilidade às pessoas com paralisia cerebral. 

“Ela não vai andar, não vai falar e não vai fazer nada”. Foi a frase proferida por um médico há 29 anos para explicar aos pais de Cristiana Marques o que é que a filha tinha e o que podiam esperar deste diagnóstico: Paralisia Cerebral. A verdade é que a vimaranense consegue andar, embora utilize cadeira de rodas para distâncias mais longas, fala sem qualquer tipo de comprometimento da compreensão verbal, é atleta de boccia e é técnica de apoio ao cliente na empresa Primavera, em Braga. “Foi um choque e a partir daí [os meus pais] foram à procura de respostas porque não se conformaram. A única resposta que conseguiram foi da Associação de Paralisia Cerebral de Braga mas era um bocado longe e surgiu daí a ideia da fundação da Associação de Paralisia Cerebral de Guimarães com outros pais e outros familiares que ajudaram a reunir o maior número de clientes”, explica Cristiana Marques. Foi este percurso que muitos familiares e amigos de crianças com deficiência há algumas décadas fizeram para fintar diagnósticos médicos pouco promissores, apostando na criação de instituições focadas em todos os aspetos da habilitação possível dos respetivos filhos. Cristiana Marques teve que realizar muitas cirurgias e fazer fisioterapia diária para contrariar os efeitos desta lesão não progressiva que ocorre aquando o desenvolvimento do sistema nervoso central. 

A Paralisia Cerebral provoca, maioritariamente, descoordenação motora, rigidez e perda de força muscular, descontrolo da cabeça, dos membros e dos olhos e tremores, fazendo com que provoque problemas de marcha e dificuldades ao nível da utilização dos braços e das mãos. A lesão das regiões do cérebro responsáveis pelo movimento pode ser provocada por infeções congénitas, prematuridade, baixo peso ao nascer, hipoxia perinatal, citomegalovírus, entre outros. Podem ocorrer também comprometimentos auditivos ou visuais, além de alterações da linguagem, do comportamento e da aprendizagem mas é importante ter em consideração que a maioria das vezes a paralisia cerebral não está associada a qualquer incapacidade intelectual. No entanto, a verdade é que é frequente associar-se às pessoas com paralisia cerebral comprometimentos cognitivos o que faz com que muitas vezes se subestimem as competências sociais e profissionais de quem tem esta síndrome. “No início na primária foi muito complicado, a professora não estava preparada para uma criança como eu. Não se mostrou muito recetiva e até dizia que eu não tinha que andar numa escola de ensino regular porque eu não me sentava sozinha na cadeira, não segurava a cabeça e porque babava o caderno”, lembra Cristiana Marques. Nessa altura a jovem não participava em passeios da escola, nem desfiles de Carnaval. Com a entrada no segundo ciclo o contexto académico de Cristiana Marques melhorou, mas, ainda assim, a interação da turma não era a melhor. “Eu nunca tive muita convivência com a turma porque eles iam para as atividades deles e eu ficava na salinha do ensino especial. Embora não precisasse, ficava lá porque não tinha com que me entreter. Convivia mais com outras turmas”, refere. “Esta falta de alternativas é uma barreira à inclusão social”, afirmou o presidente da direção da Sociedade Internacional de Paralisia Cerebral e pai de uma criança com esta condição, John Coughlana, na comunicação que fez durante a Conferência “Inclusão social e o papel das organizações na sociedade civil”, realizada a 20 de outubro no Centro Cultural Vila Flor. 

Não foi fácil compreender este tratamento por parte dos colegas, mas Cristiana Marques diz que agora já não guarda qualquer tipo de ressentimento. A vimaranense encara as lembranças do secundário como as melhores que tem do tempo de escola. “Parte dos pais desde cedo não terem receio de interagir com miúdo que vejam na rua e que interajam de forma natural, sem nenhum olhar esquisito e sem falar ‘à bebé’ porque o miúdo pode perceber”, aconselha. Este foi um dos preconceitos existentes na sociedade também identificado por John Coughlana, nas comemorações do Dia Nacional da Paralisia Cerebral: “As pessoas têm o hábito de perguntar-me ‘Como é que se chama o seu filho? Quantos anos tem?’. E pensam que têm que falar com o pai e não com a criança”, exemplifca. O presidente da Federação das Associações Portuguesas de Paralisia Cerebral (FAPPC), Abílio Cunha, considera que os preconceitos se têm esbatido com o tempo e aponta a Lei 54/2018 sobre a educação inclusiva e que visa responder à diversidade das necessidades e potencialidades de todos e de cada um dos alunos, como sendo “a alavanca para esbater, no futuro, todos os preconceitos sobre a paralisia cerebral”. 

“Acredito que este decreto-lei, apesar de ainda ter muitos anticorpos, refiro-me a lóbis, no futuro terá certamente um impacto na vida das pessoas com paralisia cerebral”, defende Abílio Cunha. A Paralisia Cerebral afeta aproximadamente duas em cada mil pessoas e é um dos problema de desenvolvimento mais comum nas crianças. O presidente da FAPPC também tem paralisia cerebral e apesar de algumas dificuldades de controlo motor e de comunicação, a verdade é que sempre que dá a cara, também enquanto presidente da Associação do Porto de Paralisia Cerebral, consegue passar, perfeitamente, a mensagem de defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Abílio Cunha considera que as atuais evoluções da sociedade não ocorrem ao ritmo desejado. “Continuam a persistir os atropelos que violam todos os direitos plasmados na Constituição e nas diversas convenções – surgindo novas barreiras que condicionam muito mais as ‘tradicionais’ barreiras arquitetónicas contra as quais tanto lutamos. Refiro-me às barreiras digitais, barreiras tecnológicas ou barreiras de atitudes, entre outras”, enumera. São barreiras muitas vezes intransponíveis e que impedem as pessoas com deficiência de alcançarem os seus sonhos e concretizarem as suas realizações pessoais. Cristiana Marques tem conseguido ultrapassar estes obstáculos, atingindo dois objetivos importantes: trabalhar e ter carro próprio. ”Pelo que eles viram no currículo eu tinha pé e meio dentro da empresa. Foi engraçado que na entrevista perguntaram-me quantos hobbies é que tinha e eu disse que tinha a piscina, catequese e disse-lhes que queria voltar ao boccia. E ele diz ‘Eu tenho uma condição para tu entrares, ai de ti que deixes algum desses passatempos para te dedicares ao trabalho. Porque os passatempos é que te vão dar energia para encarares a semana inteira de trabalho’”, conta. Uma visão rara no mercado laboral mas que a empresa Primavera BSS, sedeada em Braga, demonstrou ter ao contratar Cristiana Marques. Outro sonho que, por diversas vezes, está mais distantes e torna-se mais difícil de alcançar quando se coloca na “equação”, do dia-a-dia de uma pessoa, uma incapacidade/deficiência é a autonomia na mobilidade. “Foi o ganhar asas. Tirar a carta não foi difícil da minha parte, foi difícil pelas burocracias que exigiam”, explica Cristiana Marques. “Em maio de 2009 comecei as aulas, em junho fiz exame a código, em agosto comecei as aulas de condução e em setembro estava aprovada à segunda por completa implicância do engenheiro. Mas pronto, já estava à espera: quando eles começam a olhar para nós de cima a baixo, a olhar para a muleta”, lembra. A distância entre ter carta e ter carro foi de sete anos e a partir do momento em que passou a conduzir criouse um antes e um depois na vida de Cristiana Marques impossível de ignorar. “Foi um ‘adeusinho pai’ porque agora vou onde quero. Mas eu dizia que quando tivesse carro não ia parar em casa, mas isso nem sempre acontece porque de cada vez que quero sair tenho que pensar duas vezes onde posso ir”, descreve. A faceta mais visível da vida de Cristiana Marques é enquanto atleta de Boccia, mas é também enquanto catequista que vai conseguindo junto dos mais novos naturalizar a diversidade funcional e contribuir para uma sociedade inclusiva. “Ainda há pessoas que ficam admiradas por ter tirado um curso, ter tirado a carta e por estar a trabalhar, parece um feito enorme e não é nada de especial. Colocam um rótulo e dizem esta pessoa é incapaz de tudo. Ainda ficam admiradas quando digo que faço tudo dentro de casa, arrumo o meu quarto, lavo a loiça, ajudo a limpar. Aos olhos dos outros sou uma heroína”, analisa. Cristiana Marques considera que tornar a sociedade mais inclusiva parte de cada um, uma opinião também partilhada por Abílio Cunha que defende que as pessoas, independentemente das suas diferenças, deveriam ser capazes de “assimilar a riqueza da diversidade humana e sentirem a obrigação de serem agentes dessas mudanças”. 

O dia 20 de outubro veio ajudar à sensibilização da sociedade civil para a importância do respeito pela inclusão e para a necessidade de apoio na defesa dos direitos das pessoas com paralisia cerebral. O Dia Nacional da Paralisia Cerebral veio para ficar, até não mais ser necessário. 

Comemorações do Dia Nacional da Paralisia Cerebral 

As Comemorações do Dia Nacional da Paralisia Cerebral e dos 25 anos da Associação de Paralisia Cerebral de Guimarães (APCG) tiveram a 19 de outubro o momento alto com a realização da Gala dos Afetos no Pavilhão Multiusos da Cidade Berço. “A direção da Associação de Paralisia Cerebral de Guimarães está de parabéns pelo riquíssimo programa onde todos tiveram a oportunidade de usufruir dos encantos e belezas da Cidade Berço, mas também pela conferência realizada no último dia – onde os vários intervenientes abordaram o tema da Inclusão”, elogiou o presidente da FAPPC em entrevista ao Fórum Municipal. Além de Abílio Cunha e de John Coughlana a conferência dedicada ao tema “Inclusão social e o papel das organizações na sociedade civil”, contou com a presença do presidente da Câmara Municipal de Guimarães, Domingos Bragança, do reitor da Universidade do Minho, Rui Vieira de Castro e do presidente do Instituto Nacional para a Reabilitação, Humberto Santos. Foi uma palestra moderada pela vereadora da Ação Social da Câmara Municipal de Guimarães, Paula Oliveira e que foi enriquecida ainda com a intervenção de vários participantes presentes na plateia. As comemorações tiveram início a 18 de outubro, sexta-feira, mas a realização de uma prova desportiva chamada Jogos com Barreiras que envolvia os alunos das escolas e os técnicos das associações nacionais de paralisia cerebral no Toural foi cancelada porque a chuva não deu tréguas. Para o ano há mais, certamente, noutra localidade do país, porque é importante enraizar a celebração do Dia Nacional da Paralisia Cerebral em jeito de “reconheci - mento de todas as associações de paralisia cerebral que, diariamente, estão no terreno para apoiar e serem agentes que proporcionam a cada um e a cada uma os meios e as ferramentas para que o próprio possa ter a possibilidade de escolher o seu próprio caminho”. “Mas este Dia é também importante para relembrar aos decisores que as suas orientações têm que passar pelo respeito e não discriminação das pessoas com paralisia cerebral em todas as áreas de intervenção”, concluiu Abílio Cunha.

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