segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O Natal do tio Chedas


À medida que os anos se acumulam nos ossos, maior parece ser a necessidade que os Homens sentem em recordar a própria infância. Num mundo em que tudo muda tão depressa, parece ser fundamental acreditar que, pelo menos uma vez por ano, ainda subsiste uma noite em que quase tudo continua a ser igual, sem, no entanto, nunca se tornar banal. É a noite em que o Menino volta a nascer dentro de cada um de nós... 

Talvez por isso, agora que o Natal se aproxima uma vez mais, dou por mim a recordar aquela época da meninice em que a minha avó São me puxava para junto da lareira e me contava as histórias mais belas que algum dia pude ouvir. 

– O tio Chedas ― explicava-me a minha saudosa avó ― vivia numa gruta do Algar, bem lá no meio da floresta… 

― Numa gruta, avó?! 

― Sim, numa gruta, imagina! Não digas a ninguém, mas contava-se cá em Vila Franca que ele tinha ajudado a matar o rei Dom Carlos e, por isso, decidiu esconder-se por aqui. Quem me contou isto foi a tua bisavó Ana, pois eu ainda era muito pequenina quando tudo aconteceu … 

― A avó também já foi pequenina?! 

― Sim, meu tontinho, já fui. Há muitos, muitos anos… 

― Ó avó, os polícias nunca prenderam o tio Chedas? 

― Parece-me que não. A minha mãe contava-me que ele viveu cá até morrer e foi sepultado no nosso cemitério. 

― Mas ele estava sempre escondido na gruta? 

― Sim, sempre na gruta. Apenas existia uma altura do ano em que ele se arriscava a sair do covil… 

― Era a noite dos lobisomens, não era avó?! ― interrompia eu, de tão ávido que estava com a chegada do sempre surpreendente desenlace, que a minha avó dramatizava ainda mais com o enigmático olhar das videntes. 

― Não! Era a noite de Natal. Os lobisomens ficarão para outra história, uuuuuu… 

― A noite de Natal? ― perguntava eu, enquanto me continuava a desfilar pela imaginação aquele som do uuuuuu… Até hoje, nunca conheci ninguém que imitasse o vazio do medo tão bem como a minha avó. 

O tio Chedas ― como a avó São lhe chamava ― usava uma longa barba branca e coxeava ligeiramente. Embora eu nunca tivesse realmente acreditado que ele ajudou a matar o rei em 1908, certo é que ainda hoje, lá na minha aldeia nativa, existem pessoas que me asseguram que ele viveu na gruta do Algar, sempre escondido, tendo apenas como companhia os coelhos que ia criando e que depois se compadecia de matar para comer. 

Recordava-me a minha avó que todas as madrugadas do dia 25 de Dezembro o tio Chedas abandonava as galerias subterrâneas e vinha sentar-se junto à fogueira que ainda agora se acende no adro da capela. Depois de aquecer os pés e as mãos, caminhava solitariamente pelas gélidas ruas da povoação, revisitando cada casa adormecida na memória. 

Lá na aldeia, as pessoas passaram a conhecer-lhe esse ritual e habituaram-se a aguardar silenciosamente a sua passagem, espreitando-o por entre as frinchas das pedras. Nessa época de tanta fome, não havia iluminação, quer nas casas, quer nas ruas, e, por isso, apenas lhe pressentiam a sombra, cada vez mais contorcida e derreada pela caudalosa passagem dos invernos. 

Alguns conterrâneos, talvez porque a consciência lhes pesasse mais naquela altura do ano, começaram a deixar-lhe, pendurado nas portas, um saco com o pouco que lhes sobrara da ceia de Natal. A minha bisavó, que era forneira de profissão, guardava-lhe sempre uma côdea de pão de milho para que depois, algures pela madrugada dentro, ele pudesse fazer a consoada ao lado dos coelhos que criava, a única família que ainda lhe restava. 

Ao longo da meninice, ano após ano, fui ouvindo cada vez com maior espanto a fabulosa narrativa do tio Chedas e da sua enigmática gruta (ou mina, como tantas vezes ouvi dizer) no Algar. Ainda hoje, decorridas que são mais de três décadas, me arrepia só de pensar na imagem deste homem solitário a caminhar pelas ruas escuras da minha aldeia nativa, em busca do calor do Natal, para depois se refugiar nas intermináveis profundezas. E logo nessa noite tão transcendente, ao longo da qual todas as feridas se avivam e se revisitam intensamente alguns dos esqueletos que trazemos escondidos na alma… 

Este conto é dedicado a todos os anónimos da História que continuam a ajudar os seus semelhantes a encontrar a estrela de Natal, mesmo nas circunstâncias mais dramáticas desse profundo mistério cósmico ao qual damos o nome de vida. 

O brilho de Natal também faz parte dessas ilusões sem as quais a vida se tornaria insuportável. E escrever este conto é talvez a forma mais sentida que eu ainda possuo para desejar a todos os leitores um Santo e Feliz Natal. 

Renato Nunes 
(renato80rd8918@gmail.com)      

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